18 Outubro 2022
O filósofo Rodrigo Nunes (Rio de Janeiro, 1978) publicou neste ano um dos ensaios sobre o bolsonarismo mais bem recebidos pela imprensa brasileira. Nunes, professor de filosofia da Pontifícia Universidade do Rio de Janeiro – PUC-Rio, analisa em Do transe à vertigem (Editora Ubu) detalhes que passam despercebidos à primeira vista.
Se a esquerda costuma estigmatizar o bolsonarismo como um espectro político associado ao ódio e às paixões tristes, Nunes o define como um fenômeno interclassista que acerta ao diagnosticar que “as coisas vão muito mal”, embora suas explicações sobre a crise múltipla que o Brasil e o mundo atravessam estejam “distorcidas” e sejam “fantasiosas”.
Rodrigo Nunes, historicamente ligado aos movimentos do ecossistema do Fórum Social Mundial, também publicou neste ano Neither Vertical nor Horizontal, com a prestigiada Verso Books, livro em que expõe uma teoria da organização política na era da rede. Em questões organizacionais, Nunes não considera o bolsonarismo um movimento de massas disciplinado, mas uma espécie de “enxame de empreendedores buscando um nicho de mercado”.
Em Do transe à vertigem, o autor explica como é o núcleo duro do bolsonarismo (“uma baixa alta classe média”) e as razões das pessoas que ascenderam socialmente durante os governos petistas virarem as costas para a esquerda. Para o filósofo, as fake news nas quais o bolsonarismo se apoia e a nova extrema-direita global respondem a uma necessidade inconsciente de negar os profundos problemas que o mundo atravessa. A extrema-direita, segundo ele, oferece a promessa de que “há respostas relativamente simples para grandes problemas”.
Esta entrevista começou como uma conversa presencial no Rio de Janeiro, antes do primeiro turno das eleições, e foi concluída por e-mail.
A entrevista é de Bernardo Gutiérrez, publicada por Ctxt, 17-10-2022. A tradução é do Cepat.
Jair Bolsonaro conseguiu um resultado melhor do que o esperado no primeiro turno: 43,20% dos votos. Conseguiu um grande resultado no Congresso (98 deputados) e no Senado. As pesquisas não souberam ver essa força. Por quê?
Esse fenômeno de antecipação do segundo turno, nos últimos dias do primeiro, já havia sido observado em 2018. Houve uma migração de talvez 3% dos votos de Ciro Gomes, candidato de centro-esquerda cuja campanha foi muito mais dura contra Lula do que contra Bolsonaro. E o resto, de onde viria? Há hipóteses, mas não respostas claras.
Pode ser que haja problemas metodológicos com as pesquisas, que muitos bolsonaristas se recusem a participar das pesquisas, que consideram fraudulentas. Pode ser que tenha havido um “voto envergonhado” em Bolsonaro.
Antes das eleições, alguns especialistas diziam que, se houvesse um voto envergonhado, seria para Lula. Confesso que a ideia me pareceu contraintuitiva. Após quatro anos desastrosos em muitos aspectos, parece haver muito mais razões para que alguns de seus eleitores não reconheçam ser...
Se Bolsonaro perder no segundo turno, como apontam todas as pesquisas, o que acontecerá com o “bolsonarismo”? The Economist recentemente deu a entender que “Bolsonaro could be Trump”. Em outras palavras, a justiça poderá complicar sua vida, como a de Trump. Haverá bolsonarismo por um tempo? É possível haver bolsonarismo sem Bolsonaro?
Embora devamos considerar o resultado como uma vitória da esquerda, tanto em termos totais (ao menos na eleição presidencial) quanto em termos relativos a 2018 (Lula quase dobrou o resultado de Fernando Haddad), trata-se de uma demonstração de pujança do bolsonarismo. Isso prova que o bolsonarismo continuará sendo uma força política por bastante tempo.
Se Bolsonaro perder, a grande questão é se ele e seus filhos responderão a processos judiciais e se poderão continuar na política. Se assim, o mais provável que que continuem exercendo seu considerável capital político.
Caso contrário, pode ser que se abra uma luta para decidir quem herdará o capital político de Bolsonaro, o que pode enfraquecer o bolsonarismo. O que parece certo é que, aconteça o que for, a elite econômica e a direita tradicional tentarão usar essa força a seu favor.
Em seu livro "Do transe à vertigem", você explica que nem todos os eleitores de Bolsonaro são bolsonaristas. Uma porcentagem pode ser antipetista (como é conhecido o detrator do Partido dos Trabalhadores, PT). Outra parcela é formada por eleitores pontuais. Com a hipótese de uma derrota eleitoral de Bolsonaro, quais de seus eleitores poderiam abandonar o projeto? Quais os tipos de perfis continuarão no barco?
Efetivamente, é preciso distinguir quem vota em Bolsonaro por motivos circunstanciais (o principal é justamente a rejeição ao PT) e um voto de identificação mais profunda com a figura do presidente. Em 2018, o sentimento antipetista era muito forte devido à combinação da crise econômica e dos escândalos de corrupção. Além disso, o bolsonarismo foi extremamente eficaz em criar uma cadeia de associações entre recessão, corrupção, investimento em programas sociais e um suposto projeto comunista que faria do Brasil uma nova Venezuela.
Mas agora, após quatro anos desastrosos, a comparação com os governos anteriores favorece o PT. O voto de identificação se consolidou porque, ao longo de seu governo, a atividade fundamental de Bolsonaro não foi governar, mas manter essa base social ativa e mobilizada. Como no caso de Trump, aí residem uma força e uma fraqueza: essa base é um capital político muito poderosíssimo, mas o custo de sustentá-la pode fazer com que ele perca os eleitores circunstanciais que precisa para vencer as eleições.
A vitória do PT no primeiro turno é um sinal de que Bolsonaro já perdeu parte desses eleitores. Para muitos, o PT, embora não seja o ideal, agora parece a opção menos ruim. O problema é que aqueles que permanecem com o atual presidente tendem a constituir uma identidade cada vez mais fixa e radicalizada. E como nos Estados Unidos, se seu candidato não vencer, muitos se convencerão de que foram vítimas do establishment.
Em seu ensaio, defende que o bolsonarismo é interclassista. Ou seja, não é um projeto exclusivo da classe média, da classe alta, das elites... que é uma das teorias da esquerda...
O bolsonarismo deve ser compreendido como a convergência de um conjunto de elementos preexistentes que já estavam bastante disseminados por diferentes setores da sociedade brasileira – militarismo, anti-intelectualismo, empreendedorismo, conservadorismo social, o discurso anticorrupção, liberdade de mercado e anticomunismo – e que encontram identidade e direção política pela primeira vez na campanha presidencial de 2018. Bolsonaro é mais um catalisador do que um demiurgo. O fato de que seja ele ou outro é relativamente contingente. Por isso, é possível imaginar um bolsonarismo sem ele ou para além dele.
Estamos falando de algo que recebe uma costura política de cima, mas que está fundado desde baixo sobre as afinidades fortes entre esses elementos. Como esses elementos estão difundidos por toda a sociedade, permitem uma aproximação entre setores bastante díspares, dos mais populares ao 1%. Eu o descrevo como o encontro entre aqueles que desistiram de esperar as promessas não cumpridas de modernização (das relações sociais, trabalhistas, institucionais, políticas) e aqueles que sabem que essas promessas não permanecem disponíveis.
Ou seja, uma situação em que o Estado não cumpre mais nenhuma função de proteção das relações de poder existentes, e cada um é livre para exercer o poder que possua na esfera em que o possua, mesmo que seja apenas na família, sobre sua mulher e filhos. Para muitas pessoas nas periferias do Brasil, a luta constante de todos contra todos já é uma realidade vivida cotidianamente, e a ideia de que nada vai intervir pode soar não como uma ameaça, mas como libertação.
O voto da classe chamada working poor, os perdedores da globalização, é usado para justificar o trumpismo ou fenômenos como Le Pen na França, apesar de existirem estudos que contradizem essa explicação. Em seu ensaio, resgata o conceito de “baixa alta classe média”, utilizado por George Orwell em A caminho de Wigan (1937), para tentar encontrar o núcleo duro do bolsonarismo. Quais são as características dessa elite lumpen?
Se Bolsonaro obteve muitos votos entre os estratos sociais mais populares em 2018, as eleições atuais indicam que talvez tenham sido eleitores muito mais circunstanciais. Nas pesquisas de quatro anos atrás, ficava claro que o primeiro setor conquistado por Bolsonaro foram os 10 ou 12% mais ricos da população, o que em um país de classe média muito pequena como o Brasil reúne de pessoas que possuem ilhas e helicópteros a pessoas que têm uma boa renda, mas não possuem ativos financeiros ou capital cultural e social.
Estes últimos não se saíram mal durante os governos do PT, mas viram os mais ricos se tornarem muito mais ricos e os mais pobres se tornarem menos pobres e começarem a ameaçar seus marcadores de status social. Este setor combina ideias de empreendedorismo e meritocracia e uma experiência de relativo fracasso ou insegurança e, portanto, também muito ressentimento. Como esse ressentimento não consegue identificar as condições estruturais do fracasso ou da insegurança, pois as únicas explicações admitidas têm a ver com o esforço individual, então procuram identificar “quem são aqueles que estão recebendo ajudas indevidas para que eu não consiga o que mereço”.
O discurso da extrema-direita entra nessa brecha para dizer que o problema é um establishment de esquerda que tira direitos de uns para dar privilégios a outros: pobres, indígenas, negros, mulheres, LGBTQIA... O coração do voto de identificação com Bolsonaro está aí. Não me parece que seja uma análise que cabe somente ao Brasil.
Como explica que muitos dos pobres que melhoraram sua situação durante os governos do PT viraram as costas para a esquerda nas eleições, fato constatado em 2018? Bolsonaro tem a preferência da classe média baixa...
O boom das commodities permitiu aos governos petistas oferecer mais inclusão social e reconhecimento do que qualquer governo anterior. Mas isso ocorreu porque a economia estava em crescimento acelerado, não porque os gargalos estruturais tivessem sido tocados, como o mercado financeiro, a injustiça do sistema tributário, a baixa prestação de contas do sistema político, a propriedade da terra, os oligopólios em áreas como o transporte urbano...
Quando o crescimento diminui, esses limites voltam a ficar evidentes. A crise chega e muitas pessoas que tinham começado a ter expectativas mais altas durante os governos petistas experimentam uma súbita redução de seus horizontes. Isto produz o mesmo tipo de ressentimento que a “baixa alta classe média” acumulou ao longo de uma década. E esse ressentimento se conecta com o fato de que mesmo que tenha havido inclusão e reconhecimento com o PT, as relações de precariedade, individualismo e concorrência produzidas por um longo período de neoliberalização da economia não foram transformadas.
“Neoliberalismo de baixo”, um conceito que tomo da cientista social argentina Verónica Gago, expressa a ideia de que, nessas condições, o “empreendedorismo de si mesmo” se torna a forma espontânea pela qual as pessoas compreendem seu lugar no mundo e desenvolvem estratégias de vida. Foi assim que o PT, que havia incentivado o “empreendedorismo popular” nos anos de boom, viu como essa ideia acabou se voltando contra o partido.
Quando as pessoas que tinham conseguido obter um diploma ou abrir um negócio de repente se veem forçadas a ser motoristas da Uber, começam a interpretar seu sucesso anterior como individual e o fracasso presente como culpa de uma crise causada por essas mesmas políticas. Nasce daí um espírito igualitário perverso que é muito característico do nosso tempo: se eu me vejo em condições cada vez mais brutais de trabalho e vida, quero que ao menos sejam válidas para todos sem exceção, e é por isso que sou contra qualquer proteção e a favor da exploração, porque mantenho a ilusão de que um dia serei um vencedor.
Em seu ensaio, aponta uma diferença importante entre Trump e Bolsonaro e o fascismo histórico, já que o fascismo tinha organizações de massa altamente disciplinadas e o trumpismo e o bolsonarismo parecem, segundo suas próprias palavras, “um enxame de empreendedores descobrindo um nicho de mercado”. Existem mais diferenças?
Em geral, a discussão sobre se podemos ou não falar de fascismo hoje não me interessa tanto porque como não existe um conceito consensual de fascismo, não há solução. Um argumento muito utilizado é que não podemos falar de fascismo porque ele só existe quando há um movimento organizado segundo um modelo paramilitar.
Então, sim, deveríamos falar de fascismo no caso do Bharatiya Janata Party (BJP) / Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS) na Índia. Mas o critério me parece equivocado. Se a forma como a vida social é organizada hoje é tão diferente de como era organizada nos anos 1920, não deveríamos esperar que o fascismo também tivesse outras formas de organização?
É nesse sentido que digo que Trump e Bolsonaro terceirizaram boa parte de seu trabalho de organização para “empreendedores políticos” dos meios de comunicação e das plataformas digitais, em cuja atividade se misturam a agitação e seus próprios interesses econômicos. Mas também as estruturas paramilitares foram terceirizadas nos Estados Unidos e no Brasil. Bolsonaro tem relações muito estreitas com as milícias do Rio, grupos de policiais militares que estabelecem um controle territorial sobre regiões da cidade.
Existem elementos comuns entre o fascismo histórico e a nova extrema-direita?
Eu destacaria que em ambos os casos temos uma crise econômica e uma crise de legitimidade do sistema político, bem como uma intensificação da concorrência entre indivíduos e países. A diferença é que hoje as coisas se apresentam muito mais terminais, porque no horizonte está a crise ambiental e a perspectiva de se viver em um mundo onde cabem cada vez menos pessoas.
Em circunstâncias assim, a mensagem da extrema-direita faz muito sentido: os recursos se tornam escassos, chega uma guerra de todos contra todos, é preciso atacar primeiro aqueles que não são como nós (migrantes, negros, muçulmanos, indígenas, LGBTQIA etc.). Por isso, funciona.
Algo que tem ao mesmo tempo semelhança e diferença é a duplicidade de figuras como Bolsonaro e Trump. Alguém como Hitler era ao mesmo tempo excepcional e ordinário (“King Kong e o barbeiro da esquina”, escreveu Adorno) e encarnava tanto a lei quanto sua suspensão. Contudo, essa suspensão era exercida em nome da pátria, do destino da nação.
Trump e Bolsonaro são figuras da ordem e da disciplina, mas também da permissividade. Contra o aborto, mas a favor de grabbing pussy (Trump defendeu que as mulheres tinham que ser agarradas pela buceta). A favor da brutalidade policial, mas o tempo todo fugindo da lei. E isso marca uma distinção radical entre os dois períodos.
Enquanto nos anos 1920 e 1930, buscava-se fortalecer a nação para enfrentar a concorrência entre impérios, agora a concorrência também se acirra entre os indivíduos da sociedade. A duplicidade contemporânea aponta para esse estado de natureza em que lutar significa operar no limite do direito e da moral, e vencer equivale a alcançar uma posição em que não se está mais submetido às leis. Aí se compreende a obsessão de Bolsonaro e da direita norte-americana pela liberalização do porte de armas, que nada mais é do que a privatização do direito soberano do Estado sobre a vida e a morte.
Uma das narrativas da esquerda é que Bolsonaro só chegou ao poder por causa das fake news. Conforme com suas próprias palavras, “as fantasias da extrema-direita são uma resposta razoável”. Essas fake news estão em consonância com frustrações, mal-estares e desejos mais profundos?
Parece essencial compreender a extrema-direita não como negatividade ou falta de racionalidade, de sentido, mas como algo que possui uma realidade positiva. Não é ausência de nada, funciona e se conecta aos desejos e interesses de forma bastante objetiva, ainda que complexa. O que pode explicar que exista tanta adesão a discursos que negam a pandemia ou o aquecimento global? De onde vem essa demanda?
Existe uma necessidade inconsciente amplamente compartilhada de negar o que temos diante de nós, porque é muito difícil de suportar: a perspectiva de extinção da vida na Terra, o fato de que há uma década o neoliberalismo não funciona mais nem em seus próprios termos, mas nada tomou o seu lugar, nossa incapacidade coletiva de forçar nossas instituições políticas a enfrentarem essas questões. É o que Freud chamou de Verleugnung, a renegação.
O establishment político, inclusive boa parte da esquerda, prefere fingir que se trata de uma fase ruim, que depois tudo voltará à normalidade, que é possível seguir sem mudar nada. A extrema-direita faz algo diferente. Suas narrativas reconhecem que as coisas vão muito mal e por isso se comunicam com o sentimento antissistêmico que está no ar desde a crise de 2008, mas de maneira distorcida e fantasiosa: “Sim, há algo muito grave acontecendo, é uma grande conspiração de bilionários pedófilos.” Oferece a promessa de que há respostas relativamente simples para problemas tão grandes. É irracional? De certa forma, sem dúvida. Mas ao mesmo tempo faz todo o sentido.
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“A atividade fundamental de Bolsonaro não foi governar, mas manter a sua base social ativa e mobilizada”. Entrevista com Rodrigo Nunes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU