11 Outubro 2022
Para Tarson Núñez, projeto plural e inclusivo deve ser capaz de dialogar com eleitorado evangélico.
A entrevista é de Ayrton Centeno, publicada por Brasil de Fato, 09-10-2022.
Na visão de Núñes, a esquerda precisa de um esforço de diálogo que tome como ponto de partida as questões concretas do povo
Foto: Reprodução
Doutor em Ciência Política pela UFRGS, Tarson Núñez adverte que “a ampliação da votação de Lula depende de um esforço para conversar com o povo das periferias”. Para ele, “é necessário um esforço de diálogo que tome como ponto de partida as questões concretas do povo”.
Ex-participante de gestões do PT na prefeitura de Porto Alegre e no governo estadual, Núñez sugere que a esquerda faça “uma reavaliação de seu modelo de atuação das últimas duas décadas”, quando se afastou das ruas em favor da disputa institucional - período em que a direita se organizou nos espaços públicos para mobilizar os seus adeptos.
É o que conta nesta conversa com o Brasil de Fato RS, na qual aborda o avanço da ultradireita e as opções da esquerda nos dias que vem pela frente.
O que está acontecendo com o Rio Grande do Sul, sede de tantas inovações como o Orçamento Participativo, de políticas de inclusão, que sediou tantas edições do Fórum Social Mundial e que hoje elege uma sequência de personagens de ultradireita?
Creio que uma parte importante das esquerdas precisa fazer uma reavaliação do seu modelo de atuação nas últimas duas décadas. Neste período, o crescimento eleitoral das forças progressistas impulsionou as forças de esquerda para uma atuação política que privilegiou os espaços institucionais: eleições, participações em governos, em gabinetes parlamentares.
São espaços importantes, mas que se transformaram no seu principal espaço de atuação. As forças políticas de esquerda, que nas décadas de 70 e 80 trabalhavam para organizar e mobilizar os trabalhadores, passaram a se preocupar mais em representar os interesses dos trabalhadores nos espaços da política tradicional.
Ainda que mantenham laços políticos e afinidades com os movimentos sociais, as principais forças de esquerda foram perdendo os contatos com a sua base social. Nossa linguagem, nossas práticas foram se tornando cada vez mais parecidas com a dos partidos tradicionais, enquanto a extrema direita tem uma interpelação mais direta, mais popular.
A esquerda privilegiou os espaços institucionais enquanto a direita vem ocupando as ruas.
No período de maior força eleitoral e política da esquerda, nas primeiras décadas deste século, o centro de gravidade da ação política da esquerda foi se deslocando para dentro do Estado, enquanto a direita direcionou seus esforços para o âmbito da sociedade civil. A direita vem ocupando as ruas, organizando movimentos, formando novos quadros, fazendo um debate ideológico capaz de coesionar uma base social.
Além disso, é importante considerar também que a direita conta ainda com um importante reforço, que é o alinhamento da grande maioria da mídia às ideias e valores neoliberais, o que reforça e legitima o discurso da direita. Ao mesmo tempo há um outro elemento importante: a maioria da esquerda partidária não apenas tem privilegiado os espaços institucionais da política como, via de regra, consome uma parte importante das suas energias em disputas internas entre as distintas forças políticas que a compõe.
As disputas entre os partidos, as disputas internas dos partidos, as disputas no âmbito do movimento sindical, elas geram uma cultura política desagregadora, que reduz a solidariedade e a capacidade de ação coletiva. Em suma, a esquerda se distanciou das suas bases sociais, privilegiou a ação institucional e suas disputas internas e precisa agora reverter este processo.
O desafio neste momento é o de voltar às bases, ouvir o povo, aprender com as comunidades. É um esforço deste tipo que vai permitir que sejamos capazes de retomar uma disputa mais ofensiva pela hegemonia na sociedade.
A direita tradicional tende a desaparecer com a ultradireita ocupando o campo conservador.
Aqui e no país – vide as agruras do PSDB – está havendo um processo de canibalismo no campo da direita, com esta sendo devorada pela ultradireita. Por qual motivo acontece e em que medida isso te parece assustador?
Do ponto de vista do modelo econômico defendido, existe uma convergência muito profunda entre a direita moderada e a extrema direita. Ambos defendem o desmonte do Estado, as privatizações e o alinhamento com o capital financeiro internacional.
No entanto, enquanto a direita moderada segue ainda o modelo de atuação da política tradicional, a extrema direita atua nas redes e na sociedade, utilizando uma linguagem mais simples e direta, mais adequada à comunicação com os cidadãos comuns. E tem uma postura mais combativa, ofensiva, com mais capacidade de mobilização dos eleitores. Isso torna a extrema direita muito mais eficiente em termos políticos do ponto de vista do projeto conservador.
Na minha opinião, os partidos da direita tradicional, como o PSDB e o MDB, tendem a desaparecer, com a extrema direita ocupando todo este espaço político no campo conservador.
Com quem a esquerda precisa conversar? Em outros termos, até onde deve ir a ampliação da frente de Lula para vencer no segundo turno?
A preocupação com a ampliação das alianças é importante, pois o momento é de unir todas as forças políticas contra o fascismo. Mas esta ampliação tem um valor muito mais simbólico do que prático. A ampliação necessária para vencer é uma ampliação de nosso diálogo com as comunidades, com os trabalhadores nos seus locais de trabalho e de moradia.
A ampliação das alianças no âmbito da política institucional tem, na minha opinião, um impacto eleitoral bastante restrito, influindo basicamente no eleitor de classe média. A ampliação da votação de Lula depende muito mais de um esforço por conversar com o eleitor comum, com o povo nas periferias, com os trabalhadores em um esforço de diálogo que tome como ponto de partida as questões concretas do povo.
O diálogo tem que sair do debate moralista para discutir a fome, o emprego e o desmonte dos serviços públicos.
Como um projeto de governo que se propõe democrático, plural e inclusivo vai conseguir dialogar com o eleitorado evangélico neopentecostal?
Se o projeto das esquerdas é plural e inclusivo ele deve ser capaz de dialogar com todos os grupos da sociedade. Mas é preciso respeitar os seus valores, ser capaz de ouvir e de construir pontes de interlocução. Este diálogo é possível se o eixo dos debates for deslocado para temas mais concretos de políticas públicas, saindo do debate ideológico e moralista.
É preciso discutir a fome, o emprego, a situação da economia, o desmonte dos serviços públicos, temas concretos a partir dos quais se pode fazer a crítica ao governo de Bolsonaro. Essas questões atingem a todos, independente de religião, e é esse esforço que a esquerda precisa fazer. Neste momento é fundamental tirar a dimensão religiosa da disputa política e tratar dos temas da cidadania como um todo.
No passado, nem mesmo os generais da ditadura militar se diziam “de direita”. Dizer-se direitista significava colocar-se à sombra de Hitler e do genocídio. Agora, no RS, acaba de ser eleito senador o general Mourão que, em debate, reivindicou a condição de “único candidato de direita”. Esta identificação veio para ficar?
Sim, sem dúvida. O fortalecimento da ultradireita radical veio para ficar e é um fenômeno mundial. A crise do modelo de desenvolvimento capitalista contemporâneo vem gerando este fenômeno de uma nova direita radical.
Figuras como Trump nos Estados Unidos, Orbán na Hungria, Duterte nas Filipinas e Bolsonaro no Brasil são exemplos desta tendência. Todos são parte de um mesmo movimento, que vem demonstrando força crescente. Os recentes resultados das eleições na Itália e na Suécia mostram isso. A extrema direita tende a se tornar a principal força política no campo conservador.
A politização das forças armadas e policiais é uma das maiores ameaças à democracia.
Um elemento preocupante é a ascensão do chamado Partido Militar, especialmente se levarmos em conta a histórica ambição de tutela das forças armadas sobre governos civis. De 2018 para cá, a militarização da política avança por dentro dos partidos – sempre de direita – onde surgem candidatos cujos nomes são antecedidos de “general”, “comandante”, “coronel”, “capitão”, “delegado”, “inspetor”, etc. Acha que esse é um elemento apenas conjuntural ou algo já estruturado na nossa débil democracia?
Esta é uma das maiores ameaças à democracia, a politização das forças armadas e das forças de segurança pública. O seu engajamento em um projeto político precisa ser estancado.
O Brasil foi um dos únicos países da América Latina em que os militares conseguiram impedir que houvesse uma punição, e até mesmo alguma discussão séria, em relação ao papel cumprido pelos militares durante a ditadura. A timidez dos governos democráticos e a omissão e conivência da mídia em relação a estes temas abriu espaço para que os militares se sentissem seguros para invadir o espaço da política.
O pequeno contingente de indecisos terá nos debates o instrumento para sua definição.
Um dado positivo do segundo turno é que os debates acontecerão apenas com dois contendores, quando se poderá avaliar melhor cada um deles e seus projetos. Porém, com a ascensão das redes os debates não possuem mais o impacto que possuíam no passado. Qual é a sua expectativa?
Os debates no segundo turno tendem a ser mais politizados e esclarecedores, uma vez que teremos apenas os dois candidatos se confrontando. No primeiro turno a forma dos debates e a multiplicidade de candidatos reduzia em muito o potencial de esclarecimento do eleitor.
Quanto ao peso das redes, me parece que elas polarizam os eleitores que já estão posicionados, de ambos os lados. Mas o pequeno contingente de eleitores ainda indecisos vai ter nos debates um instrumento importante para definir o seu posicionamento.
Além disso há também uma sinergia entre as redes e os debates, com cada lado reproduzindo a sua versão do debate, que contribui para a mobilização das bases de ambos os candidatos.
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“É fundamental tirar a dimensão religiosa da disputa política”, afirma cientista político - Instituto Humanitas Unisinos - IHU