15 Julho 2022
"A literatura não é sociologia. Os escritores deformam a realidade, transformam-na e reinventam-na infinitamente. Leiam Borges. Causa tontura. É um grande mentiroso. Por omissão ou por vontade. Eis o que ele diz: 'Sou uma covarde: não lhe dei meu endereço para me poupar a angústia de esperar suas cartas.' É importante, de fato, não mentir para si mesmo e não colocar a omissão na cripta do esquecimento", escreve Tahar Ben Jelloun, escritor franco-marroquino, em artigo publicado por La Repubblica, 13-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A vida seria mais simples se o diabo ou um seu parente próximo não tivesse inventado esse pecado que não diz seu nome, mas que pode causar o mal. A vida amorosa seria ladrilhada de flores e pequenas alegrias de todas as cores. A infidelidade seria cometida em paz. Os amantes não teriam que inventar estratagemas para se encontrar e justificar sua ausência do lar conjugal.
A confissão seria mais saudável e arriscada. A verdade nem sempre é agradável de se dizer. Vocês conseguem imaginar um marido perguntando à esposa: "Onde você esteve, querida?" e ela que responde: "Com meu amante, querido." E ele, continuando a ler o seu jornal, acrescentando “desculpe a curiosidade, era só para saber”.
São Paulo é quem melhor definiu a omissão: "Faço o mal que não quero fazer e não faço o bem que gostaria de fazer." Eu sou inocente. Sou um espectador da vida e não posso ser culpado de nada. É fácil assim. Mas a religião cristã considera a omissão um pecado, um pecado cometido com uma inação voluntária.
Vejo uma injustiça e não falo nada. Não reajo. Eu me afasto. Viro de lado. Com minha consciência, eu me acerto. Invento histórias. Para um escritor é fácil, porque seu trabalho é apenas contar histórias e fazer crer que sejam verdadeiras ou contem fatos reais.
A omissão é uma forma de covardia. Às vezes, no entanto, pode salvar vidas. Imagine a cena anterior: "Onde você estava, querida?"; e a esposa que responde: "Estava com minha mãe, que está doente." Seu marido: "Mas eu vi sua mãe na joalheria da rue Siaghine." A partir daqui, entra em cena a mentira que introduz a culpa, o pecado, a ofensa. O marido começa a cavar um pouco mais fundo. No fim se dirá que sua esposa mentiu e o traiu.
Outra situação: eu poderia fazer o bem e não faço. Perco a oportunidade de ser bom, disponível, humano, generoso. É uma escolha.
Há muitos mendigos no meu país. Alguns são profissionais, outros realmente precisam de ajuda para viver. Sei reconhecer mulheres e homens que fazem da esmola um ofício. E sou capaz de reconhecer quem realmente precisa. Posso pôr a mão no bolso e dar dez ou vinte euros ao mendigo. Não vai me arruinar, nem vai mudar nada na minha vida. Mas mesmo assim não o faço. Por que não faço isso? Por omissão.
Vá explicar à mulher faminta que por omissão não lhe dei dinheiro para comprar comida! Ela não entenderia.
Outro exemplo: a mídia está repleta de informações sobre imigração ilegal. Estou muito informado sobre o tema. Mas fico sentado confortavelmente no meu sofá sem fazer nada. Sei que não há muito que eu possa fazer em relação à imigração ilegal, mas meu dever como cidadão é fazer todo o possível para mudar as coisas. Escrever, explicar, propor soluções.
Eu escolho não fazer nada. A omissão paira sobre minha cabeça e consciência, de férias. Na amizade, a omissão é bem-sucedida.
A omissão é uma mentira (um silêncio) que não é tal. Evito dizer uma verdade que poderia incomodar, magoar ou deixar meu amigo desconfortável. Distorço a realidade, eu a puxo para lá e para cá. Cometo a transgressão de um preceito ou uma abstenção no cumprimento de uma ação em razão de uma lei moral.
Exemplo: uma amizade forte e duradoura. Um é médico, o outro é jornalista.
O jornalista consulta seu amigo médico. O médico descobre um tumor. Ele deveria contar-lhe a verdade ou tranquilizá-lo não dizendo nada? Contar a verdade. Duas reações do paciente:
1. Concorda ouvir a verdade e a aceita. Agradeça ao seu amigo por lhe contar a verdade sobre sua condição. Decide procurar tratamento.
2. Ele se recusa a aceitar e fica bravo com o amigo por lhe dar uma má notícia. Ele o culpa a ponto de pensar: "Ele está feliz porque eu vou morrer antes dele", ou "Ele é um sádico, sempre soube disso e hoje tenho a prova". "Ele é um péssimo amigo; eu me enganei sobre nossa amizade.”
Essa segunda atitude poderia ter outra interpretação: sou tão amigo desse homem que não quero que ele me veja definhando aos poucos, por isso vou romper o relacionamento e prefiro não o ver mais, para não lhe causar dor. A omissão é problemática nesse caso. É uma questão de esconder a verdade ao amigo, a custo de causar-lhe um mal. É um caso de consciência e de escolha dolorosa.
É necessário dizer a uma pessoa condenada pela doença que lhe restam poucas semanas de vida? Não tem sentido fazê-lo. Neste caso, a omissão torna-se um dever. Quem pratica omissões em profusão são os políticos. Se eles dissessem a seus eleitores toda a verdade, nunca seriam eleitos.
A política é a arte da mentira, que se expressa em frases ou promessas feitas de palavras vazias. A sociedade do espetáculo, descrita em 1967 por Guy Debord, foi encenada na Itália por Berlusconi, e depois inspirou muitos outros na Europa e até nos EUA. O resultado é um país fragmentado e partidos políticos desprovidos de legitimidade.
A literatura não é sociologia. Os escritores deformam a realidade, transformam-na e reinventam-na infinitamente. Leiam Borges. Causa tontura. É um grande mentiroso. Por omissão ou por vontade. Eis o que ele diz: Sou uma covarde: não lhe dei meu endereço para me poupar a angústia de esperar suas cartas. É importante, de fato, não mentir para si mesmo e não colocar a omissão na cripta do esquecimento.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Não fazer o bem é o nosso maior pecado. Artigo de Tahar Ben Jelloun - Instituto Humanitas Unisinos - IHU