“Se o Estado não se comprometer agora, teremos grupos armados na fronteira controlando territórios inteiros.” Entrevista com Aiala Colares

Aeronaves sobrevoam área de garimpo ilegal na Amazônia. PCC e Comando Vermelho se aproximam também apostam na atividade | Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real

11 Julho 2022

 

Especialista em crimes transfronteiriços, o professor de geografia Aiala Colares, da Universidade Estadual do Pará, não tem dúvidas: na Amazônia, vista pelo Brasil como uma "região-problema", há uma verdadeira fragmentação do território nacional. Facções criminosas como o Comando Vermelho e o PCC, que aumentam sua escala de produção envolvendo-se também no contrabando de madeira, ouro e minérios como manganês, já se sobrepõem aos Estados. Esse é o caso de Manaus, onde as facções criminosas já têm inclusive capacidade técnica de governar, e se matam às dezenas sem que o governo estadual e suas forças de segurança pública consigam retomar. 

 

"O desmonte do Estado, provocado pelo governo Bolsonaro, é central nessa fragmentação territorial", explica Colares. Ele observa que, na Amazônia, os fluxos de comércio, tráfico e contrabando misturam-se e se utilizam dos mesmos canais para chegar a destinos iguais: outras regiões do Brasil, a África e a Europa. Entretanto, observa Colares, esses crimes são tratados pela legislação e pelos órgãos de segurança pública como casos isolados, o que dificulta a compreensão dos meios que os criminosos utilizam e quais são os grupos que se beneficiam desses crimes.

 

Nos seus estudos, Colares, que coordenou a pesquisa Cartografias das Violências na Região Amazônica, lançada em junho como parte do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, trabalha o conceito de "governança criminal" para explicar o avanço das facções criminosas do Sudeste sobre a Amazônia. Em especial, ele observa como estas conseguem aumentar muito a escala de seus crimes, a ponto de impor ao estado nacional a legalização de atividades ilícitas. Esse é o típico caso do garimpo em terras indígenas, que gera muitos recursos. "À medida que o crime se fortalece financeiramente, ele se fortalece também politicamente", explica.

 

Colares adianta que o próximo estágio de sua pesquisa é investigar as conexões de grupos criminosos sediados no Brasil com outras facções que operam em países fronteiriços, especialmente Bolívia, Colômbia, Peru e Venezuela.

 

A entrevista é de Carlos Tautz, jornalista e doutorando em História Contemporânea no Programa de Pós-Graduação em História/UFF, enviada pelo jornalista.

 

Eis a entrevista.

 

Nos seus trabalhos, o senhor afirma que há risco real de acontecer na Região Amazônica aquele é o principal problema que pode atingir uma Nação: a fragmentação territorial, em função do crime internacional. Em que grau está esse perigo? O que deve ser feito para reverter essa situação?

 

Temos de considerar elementos importantes em relação a problemas antigos que a região enfrenta. Historicamente, a região padece frente aos interesses do grande capital, e quem mais sofre são os povos tradicionais: indígenas, quilombolas, ribeirinhos. Eles sempre estiveram na zona de conflitos com madeireiros, garimpeiros, grileiros, dentre outros, e, mais recentemente, passaram a conviver com o a presença do crime organizado. Desde os anos 80 o crime organizado já utilizava a Amazônia como um grande corredor para o tráfico de cocaína, todavia, facções criminosas vêm se relacionando com crimes ambientais, sobretudo, grupos que outrora atuavam apenas no sudeste do Brasil. Por isso, a presença das facções do crime organizado torna-se uma ameaça em potencial para os povos da Amazônia, pois possibilita uma possível fragmentação do território. Ainda mais se considerarmos a conexão com grupos que atuam nos países vizinhos do outro lado da fronteira com o exemplo de Bolívia, Colômbia e Peru na tríplice fronteira.

 

Qual a extensão dessas conexões internacionais?

 

Até encerrarmos a pesquisa, procurávamos entender a conexão do tráfico de drogas com os crimes ambientais no Brasil. A transnacionalização do crime e de grupos armados na fronteira é o desafio do próximo momento da pesquisa. Queremos entender até que ponto essa ameaça é real. Identificamos a conexão de grupos locais com grupos do Peru e Colombia e há grupos que se espalharam, a partir de grupos que vieram do Sudeste e se associaram, como o Comando Vermelho (do Rio de Janeiro) e o Primeiro Comando da Capital (o PCC, de São Paulo). Eles têm conexões com grupos peruanos, colombianos, bolivianos e venezuelanos e com grupos que já atuavam tanto na Amazônia Legal quanto na extensão da floresta. Agora, planejamos analisar o quanto a fragmentação avançou e quais áreas territoriais já estão sob controle.

 

Na sua pesquisa, o senhor usa a nomenclatura "governança criminal". O que significa?

 

É um conceito da Geografia, em que tratamos territórios como uma rede e também como territórios reticulados. A rede é um fenômeno muito bem estruturado e que ultrapassa os limites do Estado nacional. O território é reticulado quando está sob controle desses grupos, e um bom exemplo é Manaus, a capital do Estado do Amazonas. É uma cidade que enfrenta problemas de fragmentação territorial. O Estado está ali, mas também está o crime organizado, para além do território institucional. Na cidade existem outros territórios que se sobrepõem a esta dimensão política.

 

Governança quer dizer direção, é o sentido, uma direção. Governança criminal é a direção que o crime vem dando na Amazônia e que vem ganhando um fortalecimento político devido às frágeis governanças institucionais e, caso no futuro aconteça, a perda da governabilidade se dará se o Estado perder controle de fato e de direito. A legalização de garimpo já é um tipo de governabilidade que se anuncia. Hoje, nos garimpos, ainda temos uma governança em meio ao conflito e à tentativa de forçar o Estado a alterar essa governabilidade.

 

Esse processo é reversível?

 

O que se pode dizer é que qualquer governo que assumir a partir de janeiro de 2023 vai ter dificuldade para resolver esse problema, mesmo no médio e no longo prazos, porque já temos uma presença destes conflitos de forma mais organizada e efetiva. Isso requer acordos, ações, capacitações das populações tradicionais, e tudo isso não vai acontecer do dia para noite. A governança é a capacidade política de governar. Hoje, nessas regiões, quem tem a capacidade técnica de apresentar uma governança são esses grupos criminais. Eles se fortaleceram economicamente e politicamente, em especial durante o governo Bolsonaro.

 

É uma situação semelhante ao que ocorre no Rio de Janeiro com milícias, principalmente, mas também com o tráfico de drogas?

 

O que se percebe é o fortalecimento do crime organizado de forma ampla. Quando pensamos em crimes, geralmente só pensamos em produtos proibidos, como a cocaína. Mas, este tipo de crime aqui na Amazônia está associado ao contrabando de madeira e ao contrabando de ouro, por exemplo. O avanço é um fato e se o Estado não tomar uma medida mais eficaz e não se comprometer com as populações de indígenas, ribeirinhos e quilombolas em seu território, no futuro poderemos falar de grupos guerrilheiros na fronteira que controlarão territórios. Se não houver agora uma intervenção mais eficaz e permanente por parte do Estado, futuramente, sim, poderemos falar dessa situação. À medida que o crime se fortalece financeiramente, ele se fortalece também politicamente, como aconteceu nos países da fronteira.

 

A grande questão agora é que já temos grupos locais conectados a grupos transfronteiriços, e é assim que essa situação se expande. São atividades que em seu início são ilícitas, mas, à medida que ganham expressão econômica, passam a reivindicar a legalização. A conexão com crimes transfronteiriços possibilita isso. Um bom exemplo é o garimpo ilegal em terras indígenas, que gera muita capacidade econômica e agora demanda ser legalizado.

 

Precisamos observar a enorme diversidade da natureza na Região Amazônica, o que torna esses problemas ainda mais complexos. Há cidades no meio da floresta, pistas de pouso clandestinas ou com autorização do Estado para funcionar em fazendas e a fronteira. É por aí, por exemplo, que entra a cocaína que depois é exportada em direção à Europa e articulada com contrabando de madeira. Tudo isso, ainda por cima, com o aumento da demanda e da queda do valor real em relação ao dólar, o que faz aumentar a demanda. Há uma verdadeira ânsia por madeira, que passa a ser suprida com o contrabando de manganês, em associação com um tipo de garimpo que é o narcogarimpo.

 

Uma situação aprofundada com o desmonte dos órgãos de fiscalização ambiental e a Funai...

 

O desmonte do Estado, provocado pelo governo Bolsonaro, é central nessa fragmentação! Foi organizada uma estrutura para pensar a obtenção do lucro com atividades ilegais que geram muitos recursos. A fragilidade por parte do Estado em manter a regularização das fronteiras e das terras indígenas fez com que esses grupos criminosos percebessem quais são as atividades que melhor proporcionam a acumulação de riquezas e aí esses grupos passaram a se conectar justamente onde o Estado se fragilizou. É só pegar as últimas apreensões de drogas nos portos do Pará. É madeira com cocaína e manganês no porto de Barcarena... Minério contrabandeado, cocaína e madeira ilegal têm as mesmas rotas e destinos. É dessa forma que o crime organizado vai fazendo uma poderosa base econômica, porque junta três atividades ilegais para aumentar o rendimento com o aumento da escala e essa associação de produtos.

 

O Sr. também trata em suas pesquisas do papel que, neste cenário, é desempenhado por algumas cidades-chave.

 

São algumas cidades-chave, que se diferenciam pelo grau de complexidade nessas redes criminosas. Manaus é um exemplo porque é um dos nós do tráfico de drogas e é o principal entreposto comercial de toda a cocaína que passa pela região e que depois vai para outras regiões do Brasil e também é exportada para a África e a Europa. Altamira, no Pará, um dos mais violentos municípios do Brasil, é outro entreposto importante nessa conexão Amazonas - Pará. É uma área em disputa por grupos criminosos. Belém é outro nó importante dessa rede. Tem apenas um grupo hegemônico, o Comando Vermelho, que inclusive ajuda a reduzir os níveis de criminalidade localmente.

 

Sempre que acontecem na região amazônicas assassinatos de não indígenas e de não negros, em crimes com repercussão internacional, como esses de Bruno Pinheiro e Dom Philips e antes os de Chico Mendes e Dorothy Stang, há incursões de instituições do Estado aos territórios onde os crimes ocorreram. Mas, essas incursões são temporárias e só atendem a momentos de pressão internacional. Isso seria um sinal de que já existe a perda da soberania brasileira sobre esses territórios?

 

O que se pode afirmar é que a Região Amazônica é a mais perigosa do mundo para ativistas dos movimentos sociais e ambientais e também para jornalistas. Isso mostra a situação de ingovernabilidade. A grande repercussão que esse crime mais recente tomou aconteceu somente devido à presença de um cidadão europeu. Isso mostra muito bem o que é a Amazônia. Porque, na prática, toda semana uma nova liderança dos movimentos indígenas e quilombola é ameaçada e assassinada, e o caso não tem nem de longe a mesma repercussão. O agronegócio, os madeireiros e garimpeiros se sentem representados pelo governo federal de Bolsonaro e essa ausência das instituições de Estado fortaleceu ainda mais esses grupos. Não é uma política apenas. É um verdadeiro projeto de desenvolvimento que tem na política de morte um elemento central. Infelizmente, é necessário dizer que os assassinatos de Bruno e Dom faziam parte desse projeto de desenvolvimento e por isso a morte deles aconteceu.

 

Nesse sentido, qual a validade e o resultado de operações de Garantia da Lei e da Ordem, que foram utilizadas como único meio de intervenção do Conselho da Amazônia?

 

Temos uma fragilidade no ponto de partida desse conceito: entender a capacidade gerencial e organizacional das forças de segurança pública na região. As Forças Armadas na região são um ponto de presença física em uma fronteira complexa que se conecta e tem extensão que permite essas diversidade de relações sociais e econômicas lícitas e ilícitas. Só demonstra a incapacidade do Estado na gestão dos conflitos. Precisamos pensar modelos sustentáveis que não coloquem o Estado em conflito com as populações tradicionais e não tradicionais. A Funai é um exemplo. Transformou-se em um balcão de negócios com garimpeiros. Quem ainda exerce na Funai no papel precípuo do órgão é afastado. É o caso do Bruno e o caso semelhante de um ex-superintendente da Polícia Federal no Amazonas que combatia o o contrabando de madeiras e também foi afastado.

 

Especialistas em defesa nacional argumentam que as Forças Armadas não são adequadas para guardar e fiscalizar fronteiras, e que outra instituição estatal deveria fazê-lo. Qual a sua opinião sobre isso?

 

A primeira questão é repensar o conceito de ameaça externa. As Forças Armadas estão ainda voltadas às ameaças estrangeiras, como na Guerra Fria. Temos de considerar as novas ameaças e conflitos do século 21. Ameaças agora são terrorismo, tráfico de pessoas. Em segundo lugar, temos de observar que as Forças Armadas têm uma capacidade técnica que a Polícia Federal não tem. Precisamos de um pacto federativo que junte estados e União na defesa da fronteira, e não como é hoje. Por exemplo, se em um mesmo carregamento são descobertos cocaína e manganês contrabandeado, provavelmente o registro da apreensão da droga será feito em um órgão estadual e do manganês, em um órgão federal. É necessária uma integração legal e operativa. Estamos falando de uma fronteira que é complexa. Quando se apreende cocaína e madeira, desmembram-se os crimes e não se vê a complexidade e o volume de riqueza que se gera a partir desse crime, nem quem tem capacidade de cometê-lo.

 

Em 2017, houve justamente no Vale do Javari, onde Bruno e Dom foram assassinados, um exercício conjunto dos Exércitos de Brasil, Peru, Colômbia e o Comando Sul do Exército dos EUA. Eles treinaram o enfrentamento a uma suposta crise humanitária. Essa foi a primeira vez que o Exército dos EUA entrou oficialmente na porção brasileira da bacia amazônica. Deve-se considerar isso apenas uma coincidência, ou os assassinatos de Bruno e Dom exatamente no mesmo Vale do Javari apontam que já existe perda de soberania e que esse fenômeno já foi detectado pelas forças armadas?

 

A região do Vale do Javari historicamente tem problemas transfronteiriços, problemas econômicos e de instabilidade social que vêm se intensificando. Em verdade, essa situação do Vale do Javari é apenas a ponta do iceberg que igualmente atinge outras fronteiras com problemas muito similares e complexos, e que se conectam com cidades no interior da Região. Pode-se mencionar Roraima, onde facções de crime organizado estão dentro de terras indígenas na região da Cabeça do Cachorro e se conectam com grupos na fronteira na Venezuela. Em Rondônia e no Acre, igualmente há a presença de várias facções em terras indígenas e no Mato Grosso, na semana passada, esses conflitos resultaram em mortes de indígenas Guarani. Há uma flagrante incapacidade de os governos do Brasil resolverem os conflitos na região. Na América do Sul em seu todo há a necessidade de integração das forças de segurança pública, mas em especial com a Bolívia, Peru e Colômbia, os três maiores produtores de coca, onde a produção da folha é cultural, ao contrário do Brasil.

 

A solução passa por criar possibilidades de desenvolvimento na região, com respeito do Estado em relação às populações tradicionais e não tradicionais, de tal forma que a Região Amazônica deixe de ser vista pelo País como uma região-problema, papel que antes era ocupado pelo Nordeste.

 

 

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