Registro de armamento pesado aumenta 574% no país. “Há um verdadeiro estímulo ao comércio ilegal de armas”. Entrevista especial com Carlos Tautz

O estímulo ao armamento pode ter como consequência a expansão de grupos milicianos para todo país, diz o jornalista

Foto: Tânia Rego | Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | 25 Abril 2022

 

Segundo dados do Ministério Público Federal - MPF, o aumento na importação de armas no Brasil no ano passado foi de 33% em comparação com o ano de 2020. Igualmente, aumentou em 574% o registro de armamento pesado, como fuzis, carabinas, metralhadoras e submetralhadoras. Esses dados e as mudanças recentes em normas de acesso a armas e munições a partir da revogação de portarias que estabeleciam regras mais rígidas para a marcação, controle e rastreamento destas têm um impacto direto na "estrutura de fiscalização" e é um "verdadeiro estímulo ao comércio ilegal de armas", afirma o jornalista Carlos Tautz na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

 

Segundo ele, as mudanças em curso estão diretamente relacionadas ao apoio do presidente Jair Bolsonaro ao armamento da população. "Este governo, vinculado, sustentado e apoiado por milicianos, deliberadamente facilitou a importação de armas e a instituição de inúmeros novos protocolos para esse mercado, tornando a fiscalização um emaranhado de protocolos, leis e decretos que inviabilizam ela própria por parte da polícia federal e do Ministério da Defesa, através do Exército. A fiscalização já era falha e ficou ainda pior".

 

De acordo com Tautz, as facilidades em relação ao armamento e as dificuldades acerca da fiscalização podem ter como consequência a expansão das milícias por todo o território nacional. "A situação de milícias que observamos no Rio de Janeiro tende a se expandir para o país inteiro", adverte.

 

Na entrevista a seguir, o entrevistado também comenta a atuação de grupos criminosos que atuam no interior do Estado no Rio de Janeiro e interferem diretamente na investigação do caso Marielle, contaminando não só a política atual, mas inviabilizando alternativas políticas para as próximas eleições. "Tudo indica que há um modo de operar que sinaliza a participação das milícias porque elas entram por dentro do Estado e fazem as investigações andarem muito lentamente ou não andarem, como é o caso Marielle. Cinco delegados já passaram pelo caso e a Delegacia de Homicídios somente agora está enviando para o MP provas de um homicídio que aconteceu quatro anos atrás. Além disso, não há qualquer sinal de resolução deste caso".

 


Carlos Tautz (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Carlos Tautz é jornalista e doutorando em História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense - UFF.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Como avalia a nota técnica do Ministério Público Federal - MPF sobre o acesso a armas e munições? Segundo a nota, o MPF e outras instituições receiam a nacionalização de milícias. Quais os riscos?

 

Carlos Tautz – O título da nota é autoexplicativo, mas vou mencionar alguns dados apresentados nela. Ela foi escrita pelo Grupo de Trabalho de Defesa da Cidadania, que é coordenado pelo MPF, e 11 instituições estatais e não estatais do Rio de Janeiro, que afirmam o seguinte: “O novo marco regulador beneficia o crime organizado e exigirá outras ações de controle, investigação e repressão”. O Grupo de Trabalho que reage a casos de violência de policiais e militares desde 2019 concluiu a nota com propostas contra a nacionalização das milícias. Entre elas, o grupo diz que a revogação das portarias que estabeleciam regras mais nítidas para a marcação e controle de rastreamento de armas e munições adiciona dificuldades ao sistema de fiscalização e controle, revelando-se um verdadeiro estímulo ao comércio ilegal de armas. Ou seja, este governo, vinculado, sustentado e apoiado por milicianos, deliberadamente facilitou a importação de armas e a instituição de inúmeros novos protocolos para esse mercado, tornando a fiscalização um emaranhado de protocolos, leis e decretos que inviabilizam ela própria por parte da polícia federal e do Ministério da Defesa, através do Exército. A fiscalização já era falha e ficou ainda pior.

 

 

Expansão das milícias

 

Essa situação foi provocada deliberadamente pelo presidente Bolsonaro para criar uma confusão e colocar armas na mão de qualquer pessoa, como se já não fosse muito fácil comprar armas em qualquer parte do estado do Rio de Janeiro ou do país como um todo. Segundo a nota técnica do MPF, a situação de milícias que observamos no Rio de Janeiro tende a se expandir para o país inteiro. O PCC, a facção criminosa hegemônica no Estado de São Paulo, opera numa lógica miliciana, de controle do território. O PCC, como já observou um delegado do Rio de Janeiro, é um grupo que vive do tráfico de drogas, mas adota uma estratégia miliciana de controle do território e de todas as atividades econômicas que acontecem sobre o território. Ou seja, a forma miliciana de pensar e controlar o território está se expandindo pelo país inteiro de forma muito rápida e foi beneficiada deliberadamente por este desqualificado presidente da República e sua organização criminosa. Ela envolve notórios pastores e bandidos que negociam escolas a troco de ouro no Ministério da Educação, generais, como [Eduardo] Pazuello, desqualificados moralmente, tecnicamente e profissionalmente, vários outros coronéis apaniguados, que recebem salários altíssimos em função exclusivamente da farda que vestem e não por conta de uma formação técnica e profissional adequada para atender a população e os aparelhos do Estado. Isso tudo se manifesta de forma dramática no comércio de armas, conforme aponta o MPF.

 

 

Aumento da importação de armas

 

Na mesma nota técnica, o MPF apresenta dados impressionantes, como o aumento de 33% na importação de armas no Brasil em 2021, comparando com 2020, somando cerca de 52 milhões de dólares. O aumento registrado de fuzis, carabinas, metralhadoras e submetralhadoras, ou seja, armamento pesado, foi de quase 600% - 574%, sem que o Exército diagnosticasse as causas do aumento ou seu impacto na estrutura de fiscalização. Ou seja, sem que houvesse fiscalização – é isso que o MP quis dizer.

Portanto, eu temo que neste momento todos os estados já tenham suas estruturas milicianas mais armadas do que estavam antes. Esse não é um privilégio do estado do Rio de Janeiro; existe no país inteiro. A expansão do modo miliciano de atuar teve um grande avanço com Bolsonaro, mas não começou com ele. Bolsonaro é um produto dessa expansão miliciana e produto do Exército, que é o principal culpado – a Marinha e a Aeronáutica também participaram da criação desse projeto Bolsonaro, que posteriormente se transformou em um programa Bolsonaro de apaniguamento amplo, geral e irrestrito de oficiais de nível superior em troca da proteção a criminosos como Bolsonaro, seus filhos, [Fabrício] Queiroz, pastores e essa malta que tomou conta do Estado brasileiro e que espero que seja defenestrada o quanto antes.

 

 

IHU - Em que consiste a “ordem criminosa” que hegemoniza o Rio de Janeiro hoje? Que grupos a compõem?

 

Carlos Tautz – A ordem criminosa a qual me referi no artigo recentemente diz respeito ao fato de que deixou de existir uma indistinção nas forças políticas que disputam o Estado do Rio de Janeiro. De um lado, tem o crime, que tomou conta do PMDB, atual MDB, a tal ponto de que dois ex-governadores do partido foram condenados. Um deles, Sérgio Cabral Filho, está preso, e o outro, [Luiz Fernando de Souza] Pezão, está preso em casa, usando tornozeleira eletrônica. Isso não se manifesta somente no executivo, mas em outras instâncias do sistema de governo como um todo e na justiça em particular.

 

MP e a missão constitucional

 

O Ministério Público não é capaz de cumprir o mínimo da sua missão constitucional, que é fiscalizar as polícias – a civil em especial. Tanto a polícia civil quanto a militar, no Rio de Janeiro, são um poder sem controle, que responde às suas necessidades próprias; são elas que definem os rumos do funcionalismo estadual. As polícias estão a ponto de criar uma previdência própria. O governador do estado do Rio de Janeiro é alguém de uma fraqueza política um tanto evidente e faz acordos espúrios, inclusive com várias lideranças políticas da Baixada Fluminense acusadas de terem ligações com as milícias. Por exemplo, ele foi acusado recentemente de ter feito acordos com o prefeito de Belford Roxo que já foi denunciado anos atrás pelo MP como membro de milícia.

 

 

Falta de alternativas políticas

 

Além do MP e do executivo, há, de outro lado, as divisões entre esquerda e direita, que antigamente eram mais claras do que são hoje. Para se ter uma ideia, há algumas semanas, em sua festa de aniversário, o presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, André Ceciliano, que vem a ser de um partido muito minoritário no estado, o PT, supostamente vinculado à esquerda, juntou todas as pessoas da esquerda e da direita, além de representantes do crime, como Pezão. Ou seja, não temos uma alternativa de poder suficiente para governar o Rio de Janeiro e fugir da estrutura que foi sendo montada e entranhou na estrutura do Estado ao longo dos anos. Essa é uma herança direta da ditadura empresarial-militar.

A ditadura empresarial-militar no Rio de Janeiro proporcionou o meio de cultura para que florescessem as milícias armadas. Houve todo tipo de bandidagem na ditadura, que depois foi para o crime aberto e começou a prestar serviços para o Jogo do Bicho. A cúpula do Jogo do Bicho recebe a proteção de organizações e empresas criminosas montadas por antigos membros da repressão política.

Diante desse quadro, não há uma alternativa viável à vista. Como escrevi naquele artigo, nem mesmo o deputado federal Marcelo Freixo, do PSB, me parece em condições de superar essa lógica. Ao contrário, ele tem um vínculo muito grande com o Sistema de Segurança Pública, está tentando se aproximar e construir pontes com o setor e não denuncia sequer a falta de investigações do assassinato da sua própria assessora e, segundo ele diz, amiga, Marielle. O caso Marielle é emblemático dessa nova ordem que tomou conta e entrou na política nos três poderes e de onde não vemos alternativas.

 

 

IHU – Neste artigo, o senhor comentou sobre a participação de milícias no controle da investigação do caso Marielle. Qual é o "peso político" desse e outros grupos neste processo?

 

Carlos Tautz – Não disse que as milícias controlam a investigação do caso Marielle. O que eu quis dizer é que tudo indica que há um modo de operar que sinaliza a participação das milícias porque elas entram no Estado e fazem as investigações andarem muito lentamente ou não andarem, como é o caso Marielle. Cinco delegados já passaram pelo caso e a Delegacia de Homicídios somente agora está enviando para o MP provas de um homicídio que aconteceu quatro anos atrás. Além disso, não há qualquer sinal de resolução deste caso. É o crime político de maior repercussão no Rio de Janeiro e no Brasil desde a bomba no Riocentro em 1981. Este caso não anda.

 

Peso político

 

Há vários grupos milicianos no estado do Rio de Janeiro e eles se organizam de acordo com o território que controlam, com as brechas que encontram para entrar no aparelho do Estado. Há, por exemplo, outro grupo miliciano muito próximo da família do presidente Bolsonaro. Na semana passada saiu mais uma denúncia de uma das irmãs do ex-capitão Adriano da Nobrega, um notório assassino de aluguel no Rio de Janeiro, que foi assassinado supostamente no confronto com o Batalhão de Operações Policiais da Bahia. Na denúncia vazada ao jornal Folha de S. Paulo, a irmã do Adriano atribui o crime ao círculo próximo de Bolsonaro. Ela disse, inclusive, que a morte de Adriano foi decidida dentro do Palácio do Planalto. Precisamos de mais investigações tanto do ponto de vista da polícia civil, do MP, quanto da imprensa, que não pode se basear apenas em vazamentos. O vazamento é um ponto de partida e não um ponto de chegada. Esse caso carece de mais apuração, mas o fato é que a família Bolsonaro é ligada a milicianos, assassinos, como Queiroz, que vai se candidatar a deputado federal pelo partido de Bolsonaro. Eles também são vinculados a Flávio Bolsonaro, que foi deputado estadual pelo Rio de Janeiro e hoje é senador da República. Ele não explica uma série de repasses que seus funcionários fizeram para suas contas em um claro crime de peculato. Mas enfim, são vários os grupos milicianos que controlam de 60% a 70% do Estado do Rio de Janeiro. São grupos armados, violentos e que estão espalhados pelo território de todo o estado.

 

 

IHU - Como o caso Marielle interfere na política carioca, particularmente neste ano eleitoral?

 

Carlos Tautz – O caso é emblemático e enquanto ele não for resolvido, não há condições de se retomar um estado de direito pleno no Rio de Janeiro. Não é possível que se deixe passar quatro anos de um assassinato sem que a investigação vá adiante. O MP já se mostrou incapaz de dar andamento às investigações.

O Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado – Gaecos, formado para acompanhar o caso, encobria a presença de uma militante bolsonarista dentro dele. Ou seja, quando as investigações chegaram próximas ao presidente Bolsonaro, indicando que o assassino morava no mesmo condomínio de Bolsonaro e que a filha do provável assassino havia namorado o filho do presidente, aí é que veio à tona a atuação político-partidário da militância e das ideias antidemocráticas de Bolsonaro. Quando a imprensa deu publicidade, esse grupo tomou a atitude de afastar essa senhora. Se o caso não tivesse vindo a público por denúncia do site The Intercept, provavelmente ainda hoje o Gaecos estaria encobrindo de forma corporativista esta pessoa.

 

 

IHU - No mesmo artigo, o senhor disse que "o que se verifica no Rio é um altíssimo grau de condensação de várias forças políticas – da extrema-direita bolsonarista até a esquerda congressual". Pode nos dar exemplos de como isso tem ocorrido na prática?

 

Carlos Tautz – Há, sim, um altíssimo nível de condensação de várias forças políticas no Rio de Janeiro. As condensações acontecem desta forma: as forças políticas não se diferem fundamentalmente, fazem um acordo dando conta de que a direita não quer a investigação desse caso para não ser atingida e a esquerda também não quer investigá-lo porque não tem força política e está interessada em outras pautas, como a pauta identitária. Essa pauta, por exemplo, dá um resultado eleitoral imediato e, por isso, a esquerda congressual acha viável colocar peso político nela. Por esquerda congressual me refiro àquele agrupamento que se reivindica de esquerda, mas, no entanto, só tem base no Congresso; não tem base e atuação no movimento social nem enraizamento nos bairros pobres do Rio de Janeiro, não toma a iniciativa de liderar a classe trabalhadora propondo ações de resistência a uma série de problemas, a começar pela carestia, mas também pela inflação e os crimes que são cometidos. A esquerda não tem essa atuação e não tem por que não quer ter, não tem capacidade e não quer criar essa capacidade. É uma esquerda que se limita a bradar nos palanques, em cima dos carros de som, mas que não toma a iniciativa de liderar a classe trabalhadora na construção de uma alternativa política viável no Rio de Janeiro.

 

IHU - Há outra esquerda, na qual é possível apostar nestas eleições?

 

Carlos Tautz – Existem grupos muito pequenos, sem qualquer relevância no quadro político eleitoral. O Partido Comunista Brasileiro - PCB, por exemplo, lançou um candidato para o governo do estado. No entanto, as pesquisas de opinião dão para este nome não mais que 5% das intenções de voto. Os dois candidatos que estão na frente têm intenções de votos na ordem de 30%. Ou seja, não há alternativa eleitoral viável do ponto de vista da esquerda no Rio de Janeiro.

 

  

IHU - Que pautas são urgentes de serem discutidas no país, especialmente neste ano eleitoral, considerando os efeitos da pandemia de Covid-19?

 

Carlos Tautz – No plano nacional são várias as pautas urgentes, como, por exemplo, o fim do governo Bolsonaro. Isso é urgente porque ele representa o fim de tudo que diz respeito à nacionalidade e às políticas públicas. É um governo profundamente corrupto e a corrupção envolve pessoalmente o presidente e seus filhos, que atuam como uma organização criminosa. O mais jovem já está sendo investigado pela polícia por tráfico de influência. Então a primeira pauta é retirar esse cidadão do poder, porque ele também é o principal responsável pelas mais de 660 mil mortes por Covid-19, por ter negado a existência da doença e ter negado e fraudado – como apontou a CPI da Covid – todos os esforços preliminares que poderiam ter evitado uma quantidade imensa de mortes.

Também tem as pautas mais gerais. No campo da economia, por exemplo, é impossível continuar pagando a dívida pública, que é ilegítima e não cumpre a obrigação da Constituição, segundo a qual a dívida precisa ser auditada. A dívida não é auditada e, enquanto isso, mais da metade do orçamento brasileiro vai para o pagamento dos juros dessa dívida. Enquanto essa sangria não for parada, não haverá recursos para se aplicar naquilo que deve ser aplicado: saneamento, cultura, educação, saúde e desenvolvimento econômico para a produção de empregos.

Outra pauta importante é suspender a privatização das empresas estatais, nomeadamente o Serviço Federal de Processamento de Dados - Serpro, o Dataprev, a Casa da Moeda, os Correios, a Eletrobras, a Petrobras, a Caixa Econômica Federal, que estão na pauta de reeleição de Bolsonaro, mas também de outro liberal fascista, que é o Doria. Essas candidaturas têm suas ligações com o mercado petroleiro internacional, com os fundos financeiros internacionais e com os atravessadores que os controlam. Esses candidatos prometeram a privatização urgente da Petrobras para que o passo seguinte seja a privatização do acesso ao pré-sal, que é a grande riqueza do Brasil. Essas são algumas das pautas urgentes e que não serão resolvidas por Bolsonaro.

 

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