04 Julho 2022
No Brasil, o preconceito diante da pobreza e da fome faz parte da desigualdade social e econômica e se agiganta juntamente com o agravamento da crise, a escalada do desemprego e o aumento de pessoas em situação de rua, escreve Regina Angela Landim Bruno, professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação de C. Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - CPDA/UFRRJ, enviado pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra - MST, 03-07-2022.
São cada vez maiores as filas para receber “doações de ossos” e mais frequentes gentes com cartazes pedindo comida. Aquela mãe e seu filho pequeno mal recebem o copo industrializado com a sopa e imediatamente saem à procura de água quente. Minutos depois retornam felizes e caminhando rentes um ao outro, cada um comendo sofregamente o seu quinhão de sopa. O rapaz em pé, próximo ao balcão sorve tudo da quentinha, sem tempo para sentar-se, equilibrando o corpo entre uma perna e outra como fazem os goleiros quando atentos aos lances e chutes dos atacantes.
Enquanto o povo passa fome vemos a multiplicação não de pães, mas de milionários e milhonetes brasileiras(os) novos integrantes da lista da revista Forbes sobre as pessoas mais ricas do planeta. Pessoas para quem a “fome é apenas um problema de produção”.
Descortina-se então um contraste gritante entre pobreza e riqueza que alimenta o preconceito e manifesta-se de vários modos e significações. Uma discriminação repetidamente anunciada no balançar recriminador da cabeça e o tratamento diferenciado e diferenciador, quase sempre acompanhado pelo olhar de medo, de desdém ou de indiferença dissimulada.
Além disso, pesa sobre as pessoas em situação de rua uma pressão draconiana sobre como comportar-se. Normas e regras tomadas de empréstimo dos dicionários ao definirem mendigar como: “solicitar alguma coisa com extrema humildade”, “suplicar”, “implorar” ou “valer-se da caridade alheia”.
É terminantemente proibido gritar a sua fome como forma de protesto. Tolera-se tão somente o olhar contrito, o corpo encurvado e a postura eternamente agradecida diante de doações, de apoios e de políticas públicas paliativas de combate à pobreza.
“ - Para essa gente qualquer coisa serve”, comenta o homem bem vestido.
“- Vejam a mãe deles, é gorda! Gordos não passam fome. Só os magros”. Avalia a jovem e esbelta senhora em seu terninho creme protetor do frio, ao apontar para o grupo de mulheres e crianças postado à porta do supermercado.
Só é autorizado pedir o mais barato ou os produtos no limite do prazo de validade. Não se deve desejar a lata de leite Ninho nem o sonhar com sucrilhos ou o prazer de abocanhar um pedaço de carne suculenta!
É vedado sentir inveja, revolta, desejar aquele tênis da moda ou sentir-se indignada após ter sido assediada. É considerado uma grosseria dizer que falta o purê de batatas do PF gratuitamente recebido e “por acaso esquecido” de ser colocado na quentinha que deveria chamar-se friinha.
“- É gente incapaz de solidariedade e de compaixão” dizem mesmo quando ajudam uma jovem estudante a levantar-se do tombo que levou justamente por ter apressado o passo com medo “dos mendigos”.
A algazarra de alunos e de alunas nos pátios recreio das escolas é vista como parte do aprendizado, o que é correto. No entanto, a algazarra das crianças em situação de rua, nas praças, chafarizes e calçadas é condenada e classificada como gritaria e desrespeito.
O nariz empinado e a roupa de marca definem as pessoas “de bem e de berço”, incapazes de fazerem o mal. Os de roupa puída e pés descalços são invisibilizados como sujeitos de direitos e frequentemente são vistos e (des)classificados como gente de má fé, inferior e sub-humanos (Norbert Elias).
“É gente violenta!”, apagando da memória o massacre da Candelária e quando foram jogados no rio Guandú. São ladrões, vagabundos e drogados. Como se a droga não fosse um problema maior também presentes nos iates, nas mansões e nos clubes privados. E ricos não roubassem.
Gerentes, colaboradores e funcionários do comércio mesmo vivendo uma situação difícil, mesmo exaustos com a intensificação da jornada de trabalho e temerosos diante de demissões e da redução de diretos muitas vezes fazem muxoxo e olham com reprovação para as pessoas em situação de rua e quem os ajuda.
Exige-se das pessoas em situação de rua, um comportamento exemplar: não mentir nem recorrer a artifícios para sobrevivência, mas se aceita “a mentira na política” sob o argumento da proteção do povo como diz Hanna Arendt. Driblar a lei e ser perdoado só para quem detém o poder do dinheiro e da política.
Banhos, só nos chafarizes da cidade e de preferência ao raiar do dia para não agredir as pessoas de bem. Ou então quando baixa um temporal na cidade. Alguns eventualmente se aventuram escalar os muros do rio Carioca próximo ao Largo do Boticário e mergulhar nas águas barrentas e sujas.
Os bebês nascem acalentados pelos sons das sirenes das ambulâncias, do corpo de bombeiros, da policia e dos seguranças protetores das autoridades. As vezes as vozes do vendedor de pamonha e comprador de ferro velho.
É gente preguiçosa. São incapacitados(as) para o trabalho. Não conhecem a palavra poupança. Não são vocacionados, argumentam as “pessoas de bem” de comum acordo com as elites patronais rurais e empresários do agronegócio.
Uma superioridade que se afirma pela submissão, domesticação e sujeição.
Preconceitos tão internalizados pelo poder da dominação simbólica (Bourdieu) dificulta-nos perceber que o “- Vá com Deus” dito simboliza o desalento, a revolta e cansaço diante tanto não.
Mas as pessoas em situação de rua nem sempre conseguem ou aceitam cumprir o manual de comportamento estabelecido sobretudo as crianças – aliadas e aprendizes na luta contra a fome e pela sobrevivência. Conhecedoras de cada produto da gôndola do supermercado elas seguram a sua mão para se protegerem da fiscalização e orientá-la sobre o que comprar: o arroz o mais barato. O feijão, o da promoção. De repente a pequerrucha olha para você e anuncia:
“- Hoje eu quero provar o biscoito mais caro para ver se é mesmo gostoso na boca e no bucho”.
Dentre as estratégias, os defeitos físicos transformam-se em proteção ou instrumentos de sobrevivência. Do mesmo modo que o pequeno mico emaranhado nos cabelos daquele moço faz sucesso e garante-lhe a passagem de ônibus.
Algumas políticas públicas. O apoio das comunidades. As inúmeras iniciativas de movimentos sociais populares, grupos, coletivos são importantes, bem o sabemos, Sobretudo quando o afeto acompanha as doações: “mulher tu olha como se nóis fosse gente”, diz alguém. São importantes, mas não bastam. São insuficientes.
Fome visível. Fomes invisíveis.
Fome historicamente atravessada por questões raciais e de gênero.
Fome?!.
Só se for fome de mais alegria e de felicidade diante da igualdade.
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Pobreza, fome e preconceito. Cenas do cotidiano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU