22 Junho 2022
"A intervenção de Francisco revela a falta de uma verdadeira iniciativa do governo italiano e da troika Draghi-Macron-Scholz. Quem, onde, quando autorizou a presidente da União Ursula von der Leyen a falar de 'vitória' como objetivo da aliança OTAN-UE-Ucrânia? Que vitória, com que elementos? Seria errado subestimar que Francisco também esteja em sintonia com a compacta maioria da população italiana, que não quer mais remessas de armas para Kiev. O povo não é estúpido, as pesquisas são ferramentas imperfeitas, mas a intuição popular entendeu perfeitamente que o governo italiano não está definindo claramente os objetivos da ajuda militar, econômica e política prestada a Kiev", escreve Marco Politi, jornalista, ensaísta italiano e vaticanista, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 21-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
As palavras do Papa Francisco são agora indeléveis. Sua frase de que a guerra na Ucrânia não deve ser julgada segundo o esquema de que "Chapeuzinho Vermelho era boa e o Lobo era mau" está destinada a pesar na opinião pública. Seria errado arquivar suas palavras como o tuite de um político qualquer. Porque elas agora acompanharão - como a sombra de Banquo em Macbeth - todas as fases que se seguirem do debate sobre os objetivos do conflito, seus efeitos e seus custos.
Não é mais possível bancar os ingênuos escondendo-se atrás de slogans. Ao afirmar que "aqui não há bons e maus em sentido metafísico, em modo abstrato", mas está ocorrendo um evento global "com elementos que estão muito entrelaçados entre si", o Papa Bergoglio quebrou o feitiço do clima de marketing que envolve o conflito desde o primeiro momento.
Não há outra guerra, de fato, em que 24 horas por dia a grande imprensa e os canais de televisão tenham despejado sobre a opinião pública uma "verdade oficial" da qual é proibido desviar. Nenhuma matança de inocentes, nenhuma criança sufocada sob os escombros, nenhuma mulher metralhadora, nenhum idoso morto nos bombardeios no Iraque, Iêmen, Afeganistão, Gaza ou em qualquer outro lugar, na que Francisco chamou de "Terceira Guerra Mundial em pedaços", jamais recebeu similar contínua exposição na mídia.
Ao mesmo tempo, a máquina de marketing político rotula como putiniano qualquer um que apresenta uma análise do conflito desalinhada em relação à verdade oficial. Henry Kissinger é um putiniano? Invoca-se o “partido da rendição” toda vez que se perfila o que acontece desde que as guerras entre os estados foram inventadas: colocar os respectivos interesses das partes na mesa e buscar uma composição possível.
Desmontar a fábula simplista do conflito na Ucrânia, como fez o pontífice, significa colocar de lado a falsa narrativa de que as Termópilas da Europa estão localizadas na Ucrânia, onde a batalha é travada para impedir que os exércitos russos cheguem ao Lago de Como. Historiadores e analistas políticos sabem que, nos últimos trinta anos, Moscou nunca pensou em agredir os estados bálticos ou a Polônia, muito menos ameaçou a neutralidade de Suécia e Finlândia.
As referências do pontífice ao contexto em que amadureceu o conflito são pertinentes. Por que os Estados Unidos e a União Soviética evitaram o confronto na crise cubana de 1962? Porque ambas as potências reconheceram como legítimos seus respectivos "interesses de segurança nacional" (a expressão é estadunidense). A URSS desistiu de instalar mísseis em Cuba, nas fronteiras dos Estados Unidos, e os EUA retiraram os mísseis Júpiter da fronteira turco-soviética.
Quando Francisco fala sobre os latidos da OTAN toca em um ponto preciso. A neutralidade da Ucrânia era e é considerada por Moscou como uma questão de segurança nacional e, como todos sabem, deveria fazer parte de um futuro acordo de paz.
Por que então, nos meses anteriores ao conflito, a OTAN e Washington se opuseram tenazmente a garantir a neutralidade de Kiev e sua não entrada na Aliança Atlântica? Chama a atenção o fato de que a "verdade oficial" se esforce para desqualificar o conceito de áreas sensíveis à segurança de Moscou, enquanto dispara imediatamente o alarme estadunidense se a China fecha um acordo com as Ilhas Salomão. Os EUA aceitariam o México como membro de uma aliança militar estrangeira, questionou Bernie Sanders?
Quando França e Alemanha em 2008 se opuseram ao alargamento da OTAN à Ucrânia, sabiam o que estavam fazendo. Porque um bloco político-militar não é um clube de tênis ao qual você se associa pagando a mensalidade. É um instrumento de poder geopolítico. Sua extensão ou estreitamento responde a precisos interesses militares e de influência política.
A história tem seus arquivos. Quando, após a queda do franquismo, os socialistas espanhóis estabeleceram como meta a não entrada da Espanha na OTAN, foram submetidos a tamanhas pressões e chantagens diplomáticas que tiveram que mudar de linha. Da mesma forma, quando os socialistas gregos, após a fim do regime dos coronéis, quiseram sair da OTAN, foram enfaticamente desaconselhados.
No Vaticano, as declarações sobre a situação internacional não são improvisadas. O Não de João Paulo II à invasão do Iraque decretada por Bush foi inicialmente comentado com descaso pelos líderes políticos e militares da operação ("as palavras de Wojytla não mudaram nem de uma vírgula os acontecimentos", costumava-se dizer nos primeiros tempos de 2003). No entanto, no decorrer dos eventos revelou ser um lúcido alerta, que evidenciava a catástrofe da aventura militar.
Da mesma forma, a advertência de Francisco lança luz sobre a escolha irrefletida de seguir a lógica da escalada pela inércia. O Papa Bergoglio nessa atitude coloca-se em sintonia com a opinião pública mundial. Os estados que representam mais da metade da população do planeta não compartilham a agressão russa contra a Ucrânia, mas não concordam com a guerra santa, que anima os falcões da facção ocidental.
A ideia de que tenha chegado a hora de colocar a Rússia de joelhos e reduzi-la a uma potência de segunda ordem simplesmente não é compartilhada pela maioria do planeta. A ideia de novas regras para governar a coexistência e a colaboração internacional - o novo Pacto de Helsinque defendido por Bergoglio – encontra o favor da maior parte do mundo. O pontífice nada tira das responsabilidades russas. Sua denúncia da “brutalidade e ferocidade com que esta guerra é conduzida pelas tropas, geralmente mercenárias, utilizadas pelos russos” é muito clara. Igualmente clara é sua convicção de que prolongar o conflito só trará mais ruínas e, portanto, uma séria iniciativa deve ser promovida para alcançar a negociações de trégua e de paz.
A intervenção de Francisco revela a falta de uma verdadeira iniciativa do governo italiano e da troika Draghi-Macron-Scholz. Quem, onde, quando autorizou a presidente da União Ursula von der Leyen a falar de "vitória" como objetivo da aliança OTAN-UE-Ucrânia? Que vitória, com que elementos? Seria errado subestimar que Francisco também esteja em sintonia com a compacta maioria da população italiana, que não quer mais remessas de armas para Kiev. O povo não é estúpido, as pesquisas são ferramentas imperfeitas, mas a intuição popular entendeu perfeitamente que o governo italiano não está definindo claramente os objetivos da ajuda militar, econômica e política prestada a Kiev.
Existem três opções. Levar a situação de volta para 24 de fevereiro de 2022. Levar a situação de volta para 1991. Lutar para desmontar o status da Rússia. Enquanto se avolumam a inflação e a recessão, enquanto vem avançando a crise econômica, energética e alimentar mundial, a população quer saber qual é o objetivo escolhido pelo governo italiano e pela União Europeia.
Enquanto isso, está experimentando em primeira mão que a inércia não beneficia nem a paz nem os aparelhos de ar condicionado.
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As palavras do Papa revelam a falta de iniciativa da troika Draghi-Macron-Scholz. Artigo de Marco Politi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU