08 Junho 2022
"O governo de Abuja prometeu um punho de ferro para quebrar a ameaça terrorista. Mas a militarização do território não será suficiente porque a segurança e a prosperidade do povo nigeriano são sobretudo um desafio político. A violência não cessará enquanto continuarem os contrastes obscenos e as contradições escandalosas que ainda fazem da Nigéria um gigante frágil", escreve Marco Encontrado, em artigo publicado por Domani, 07-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
“O gigante com pés de barro”. Assim era definida a Nigéria na época das independências africanas. A guerra pela secessão de Biafra (1967-1970) esmagou imediatamente os entusiasmos pela libertação do jugo colonial e deixou claro como seria difícil e atormentada a história desta colossal nação – designada teoricamente pelos interesses europeus - composta por 36 estados federais, atravessada por fortes pressões identitárias e abalada por recorrentes tensões sociais.
O massacre perpetrado no último domingo por um grupo de homens armados ainda não identificado na igreja católica de São Francisco de Owo, que custou a vida de pelo menos 50 pessoas, é apenas o último episódio de uma longa trilha de eventos sangrentos que feriram a nação mais populosa da África: 210 milhões de habitantes.
Mapa da Nigéria com destaque para o local do atentado. (Imagem: Reprodução)
Em dez anos, os ataques terroristas do Boko Haram, grupo jihadista ativo principalmente no nordeste do país, causaram mais de 50.000 vítimas entre civis e forças de segurança, forçando mais de 3 milhões de pessoas a abandonar as suas casas.
A população de etnia Hausa e de religião islâmica, majoritária nas regiões do norte, pagou o preço mais alto pelos atentados realizados em mesquitas e mercados. O ataque de domingo ocorreu pela primeira vez em um território até agora considerado bastante seguro, habitado principalmente por cristãos da etnia iorubá.
É difícil dizer neste momento se esse massacre representa uma mudança de estratégia por parte dos jihadistas ou se o episódio deve ser inserido em uma dinâmica de oposição e desestabilização política em um estado federal que se prepara para votar na eleição de governador e num momento em que os principais partidos políticos nacionais estão decidindo, com as suas primárias, os candidatos às eleições presidenciais que se realizarão no próximo ano e que terão de sancionar o sucessor do atual Presidente Buhari (no final do seu segundo e último mandato previsto pela Constituição).
Neste momento, são acusados pelo massacre na igreja os Fulanis (também chamados Peul), uma população muçulmana seminômade espalhada por diversos países da África Ocidental, dedicada ao pastoreio e ao comércio, muitas vezes em conflito com as populações sedentárias e agrícolas.
Os confrontos atávicos pelo controle de terras e dos mananciais de água se intensificaram nos últimos anos - também graças às mudanças climáticas e à crescente pressão demográfica sobre o meio ambiente - e tomaram a forma de uma guerra que está ensanguentando o Sahel.
Também na Nigéria, grupos de milicianos Fulanis radicalizados teceram louvores à jihad contra os infiéis, o clima tornou-se pesado. Outrora o "cinturão médio", a região que funciona como um fecho entre o norte dominado pelos muçulmanos e o sul majoritariamente cristão, era um território de encontros e comércio lucrativo para todos: o leite era trocado com o grão, o feno que sobrava das colheitas alimentava o gado e o esterco das vacas fertilizava o solo.
As tensões podiam surgir especialmente quando um rebanho comia ou pisoteava o campo de cultivo de um agricultor - mas os chefes tradicionais ainda tinham o poder de manter a paz e a coesão entre as diferentes comunidades. Hoje não é mais assim. No norte, os períodos de seca são cada vez mais recorrentes e a instabilidade obrigou dezenas de milhares de pessoas a abandonar suas aldeias. Os Fulanis estão se deslocando mais para o sul, em busca de pastagens e segurança. Mas terra e água não são suficientes. Assim, as tensões com os camponeses - alimentadas e manipuladas por pregadores jihadistas - muitas vezes resultam em violentos confrontos armados.
A Nigéria também é afetada pela instabilidade exógena da região em que está localizada. Na vizinha bacia do Lago Chade, o ativismo do Boko Haram se junta ao do Estado Islâmico na África Ocidental (Iswap), enquanto a sombra da Al Qaeda é lançada pelos ataques dos milicianos de Ansaru: grupos jihadistas pertencentes a redes rivais, que acrescenta mais complexidade em um cenário de crise perene.
Não só. Os grupos armados do Sahel - ativos no Mali, Burkina Faso e Níger: todos países sem saída para o mar - avançam progressivamente para os estados costeiros com saída para o Golfo da Guiné, para ganhar vias de acesso ao Oceano Atlântico (onde estão os portos, os entroncamentos de comércios e motores das economias regionais). Ao longo do ano passado, houve vários ataques no Benin, enquanto a inteligência alertou as forças de segurança da Costa do Marfim e do Togo. Também por isso, o massacre de domingo, ocorrido em um estado do sul e litoral da federação nigeriana, alarmou os analistas.
Para agravar a situação na Nigéria há a violência endógena do banditismo armado que visa escolas e trens para roubar e raptar civis para resgate, sem esquecer a luta armada nunca adormecida dos movimentos separatistas dos Igbo, outro nervo exposto que periodicamente volta a inflamar-se.
De fato, no sudeste da Nigéria, a guerra de baixa intensidade travada por grupos armados no delta do Níger, caixa-forte do petróleo nigeriano, se arrasta há anos contra o governo de Abuja e as multinacionais petrolíferas, acusadas de explorar riqueza e devastar o meio ambiente, sabotando os oleodutos e atacando as usinas de extração de petróleo bruto.
Neste território, outrora um paraíso natural, que se tornou uma das regiões mais poluídas da África, as bases secretas dos rebeldes estão escondidas em um labirinto de canais e pântanos em que estagnam as manchas oleosas de petróleo, onde pairam os miasmas da chaminé gases, responsáveis pelas chuvas ácidas se doenças aos olhos e aos pulmões.
Sim, petróleo, riqueza e maldição nigeriana. Poderia promover o desenvolvimento, mas, em vez disso, agudiza as divisões e alimenta a corrupção. Os lucros acabam no bolso de políticos e atravessadores, enquanto 40% da população vive abaixo da linha da pobreza, em uma feroz guerra cotidiana pela sobrevivência (especialmente hoje quando o preço do trigo e da mandioca, alimentos essenciais, subiu 30% em poucos meses devido à instabilidade internacional).
Grupos armados exploram as insatisfações locais, as desigualdades sociais, a falta de governança e as carências de segurança para se apossar do território. O governo de Abuja prometeu um punho de ferro para quebrar a ameaça terrorista. Mas a militarização do território não será suficiente porque a segurança e a prosperidade do povo nigeriano são sobretudo um desafio político. A violência não cessará enquanto continuarem os contrastes obscenos e as contradições escandalosas que ainda fazem da Nigéria um gigante frágil.
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Por trás do massacre na Nigéria estão todas as contradições de um gigante frágil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU