05 Fevereiro 2015
Correspondente da BBC encontra sobreviventes de massacre no nordeste da Nigéria e tenta 'juntar as peças' para recontar ataque de grupo e a consequente fuga dos civis.
A reportagem é de Thomas Fessy, publicada pela BBC Brasil e reproduzida pelo G1, 03-02-2015.
Um grande número de homens, mulheres e crianças foi morto nas cidades nigerianas de Baga e Doron Baga no dia 3 de janeiro, em um ataque de militantes do grupo islâmico extremista Boko Haram.
O número exato de mortos permanece desconhecido e milhares de pessoas foram forçadas a deixar suas casas próximo ao lago Chade. A BBC encontrou alguns dos sobreviventes em campos de refugiados no Chade para tentar juntar as peças e descobrir o que realmente aconteceu naquele dia.
1. O Boko Haram lança ataque a Baga durante a madrugada
05h45, sábado, 3 de janeiro: Muitos habitantes já haviam saído para rezar quando os tiros começaram. O primeiro ataque começou um pouco antes do amanhecer.
Enquanto guerreiros do Boko Haram invadiam o lado oeste de Baga, um grupo de jovens determinados decidiu pegar suas facas e machetes para defender a cidade. Eles obtiveram um raro sucesso.
"Nós os fizemos recuar, com nossos soldados", disse o morador local Haroun Mohamed, de 31 anos.
Os militantes do Boko Haram foram forçados a retrair e se reagrupar nas florestas.
"Nós todos fomos contra-atacar em massa", disse Dahiru Abdullahi, de 20 anos de idade. Ele afirmou também que muitos combatentes estavam usando uniformes de diversos tipos.
Segundo eles, alguns utilizavam turbantes e cobriam os rostos, o que é comum nessa área deserta.
Depois da retirada dos militantes, houve uma calmaria e um alívio, mas isso não durou muito.
2. O Boko Haram retorna
Algumas horas depois, combatentes do Boko Haram voltaram a atacar a cidade. Eles obtiveram reforços e avançaram com uma coluna de picapes e motocicletas.
"Eles saíram da floresta com cerca de 20 veículos", disse Dahiru Abdullahi.
Ele afirmou que entre 10 e 15 homens saíram de cada carro. Ainda não é possível saber quantos combatentes participaram do ataque, que acabou desarmando as forças locais. Refugiados falaram em centenas de combatentes.
"Eles abriram fogo, e continuaram atirando em nós. Como estávamos tentando nos defender com facões, tivemos que abandonar o local", disse Dahiru Abdullahi.
Haroun Mohamed disse que, na segunda onda de ataque, os militantes do Boko Haram "eram muitos", o que forçou os moradores a fugir para salvar suas vidas.
Os sobreviventes descreveram como os invasores armados intimidaram e gritaram com os jovens que haviam tentado enfrentá-los mais cedo.
"Homens valentes, por que vocês não lutam conosco?", gritavam.
Ao se verem frente ao avanço dos combatentes islâmicos, os militares nigerianos desistiram de lutar e fugiram. Testemunhas afirmaram que eles abandonaram suas armas para correr.
Alguns moradores locais pegaram esses armamentos e atacaram o Boko Haram. Mas, em menor número, acabaram fugindo também, segundo afirmou a refugiada Saratu Garba, que tem 20 anos e é mãe de um menino de dois anos.
Testemunhas disseram que o avanço dos rebeldes pela cidade criou um caos, com pessoas fugindo em todas as direções. Muitos pensaram que poderiam se refugiar em uma vila de pescadores nas proximidades, Doron Baga, nas margens do lago Chade.
3. A conquista de Doron Baga
Ao meio-dia, o ataque se transformou em uma caçada, na medida em que os combatentes começaram a perseguir pessoas nas ruas.
Eles atiravam nos moradores e os atropelavam com seus carros, segundo afirmou Saratu Garba.
Havia corpos demais para serem contados, de acordo com sobreviventes. Os refugiados descreveram muitas cenas de mulheres, crianças e homens caídos no solo ou já mortos.
Rapidamente, as ruas de Doron Baga ficaram cheias de corpos. As pessoas também eram atacadas quando chegavam à margem do lago. "Eles (membros do Boko Haram) continuavam atirando até quando já estávamos dentro de barcos. Um homem que estava perto de mim foi atingido", disse Dahiru Abdullahi.
Muita gente remou nos barcos apenas o suficiente para escapar do caos. Eles se esconderam em ilhas próximas e esperaram por horas que os militantes deixassem a vila. Mas isso não aconteceu. À medida que a noite caia, ainda era possível ouvir o som de tiros.
Muitos sobreviventes disseram ter visto casas sendo incendiadas. De suas canoas e barcos, disseram ter conseguido ver a fumaça subindo ao céu.
4. Fuga para o lago Chade
Muitos sobreviventes fugiram para as florestas e, dias depois, conseguiram refúgio em outras cidades ou vilas nigerianas. Cerca de 5 mil chegaram a Maidiguri, a capital do Estado de Borno, de acordo com a organização Médicos Sem Fronteiras. Outros viajaram para o norte e cruzaram a fronteira com o Níger.
Cerca de 15 mil chegaram ao Chade, segundo a agência de refugiados da ONU. Nós os encontramos à espera de ajuda em ilhas do lago.
Haroun Mohamed se perdeu de sua mulher e de seu bebê. "Eu não sei se eles estão vivos ou mortos", afirmou.
Já Dahiru Abdullahi está a procura de seu irmão mais novo. "Ele e mais nove homens que estavam conosco desapareceram".
Abdullahi está entre os 2.500 refugiados que foram resgatados das ilhas do lago Chade e levados pela ONU para um campo de refugiados "Dar-es-salam", nos arredores da cidade de Baga-Sola.
Aqueles que conseguiram cruzar o lago chegaram ao Chade sem nenhum de seus pertences.
"Eu não pude trazer nada além dessas roupas que estou usando. Foi assim que eu fugi", disse Hadija Umar, uma mãe de três filhos cujo marido foi morto no ataque.
Na ilha de Ngouboua, grandes tendas foram erguidas por agências de ajuda humanitária. Lá refugiados estão levando uma vida difícil, dormindo em um chão de areia e passando frio à noite.
5. Alegações
Ainda é impossível saber exatamente quantas pessoas foram mortas durante o ataque. A Anistia Internacional estima que mais de duas mil pessoas perderam suas vidas, mas nós não encontramos evidências para confirmar esse afirmação.
Relatos de testemunhas dão a entender que centenas de pessoas foram mortas, mas o número real provavelmente jamais será conhecido.
O governo da Nigéria parece incapaz de confirmar qualquer número. O Exército local refutou a estimativa da Anistia, afirmando que "o número de pessoas que perderam suas vidas durante o ataque não passou de 150".
Porém, Sambo Dasuki, assessor de Segurança Nacional da Presidência, disse que o governo trabalhava com os números da Anistia devido à falta de confirmação independente.
Imagens de satélite de Baga e Doron Baga feitas logo após os ataques mostram a extensão dos danos. Segundo uma avaliação da Anistia Internacional, cerca de 3.700 estruturas foram danificadas ou destruídas.
Em um vídeo colocado na internet, um homem chamado Abi Mos'aab Albernawi – apresentado como o "porta-voz oficial" do Boko Haram – disse que o grupo atacou Baga porque a cidade é "importante em termos de valor militar e comercial para o governo da Nigéria".
A conquista de Baga estaria provavelmente ligada à captura de uma base militar próxima, que funcionava como o quartel-general da Força Tarefa Integrada Multinacional, que inclui forças da Nigéria, do Níger, do Chade e de Camarões.
O Níger retirou suas tropas em 2014 e, segundo Dasuki, "apenas o contingente nigeriano estava na base no momento do ataque".
Ele divulgou uma lista de material bélico capturado pelos insurgentes que inclui seis blindados de transporte de tropas e canhões de artilharia.
O assessor presidencial usou a lista para rebater críticas de que as tropas do país estariam abandonando seus postos por estarem mal armadas. "Qualquer um (militar) que disser que não está bem armado não está falando a verdade", afirmou. Segundo ele, os soldados que fugiram eram covardes.
6. Consequências dos ataques
Apesar das estatísticas de baixas em Baga não terem sido confirmadas, milhares morreram nas mãos do Boko Haram nos últimos seis meses.
Mapas mostram como a expansão das atividades do Boko Haram se concentrou nas regiões de Adamawa, Borno e Yobe, no nordeste do país – onde um estado de emergência foi declarado em 2013.
Eles também mostram grande intensidade de ataques em 2014.
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Boko Haram: o que aconteceu em Baga? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU