25 Mai 2022
"Uma cultura que pretende medir tudo e manipular tudo acaba produzindo também uma desmoralização coletiva do sentido, do amor, do bem", afirmou o Papa Francisco em sua nova catequese sobre a velhice.
A reportagem é de José Manuel Vidal, publicada por Religión Digital, 25-05-2022.
Em seu ciclo de catequese sobre a velhice, na manhã de hoje, 25-05-2022, na Audiência pública na Praça de São Pedro, em Roma, o Papa Francisco glosou hoje uma passagem do Livro do Eclesiastes ou Cohélet e suas proclamações irônicas sobre o sentido e a falta de sentido da vida. O Papa advertiu claramente contra a "razão cínica" da cultura moderna e exortou a não cair na "sociedade da fadiga", que leva à "acídia" que é "entregar-se ao conhecimento do mundo sem mais paixão pela justiça e consequente ação”. Por isso, num plano profético, Bergolgio denuncia: “A cultura moderna reduziu a verdade à ciência e à tecnologia exatas, criando um mundo sem esperança e sem amor”.
Por isso, “não é por acaso que vivemos a era das fake news, das superstições coletivas e das verdades pseudocientíficas” . Mas há uma saída. Segundo o Papa, “se os idosos, que já viram tudo, mantêm intacta sua paixão pela justiça, então há esperança de amor e também de fé”.
Em sua saudação em polonês, Francisco recordou mais uma vez a Ucrânia martirizada: "Em nossas orações a Maria Auxiliadora, confiamos de modo especial o desejo de paz na Ucrânia e no mundo inteiro".
Queridos irmãos e irmãs, bom dia!
Na nossa reflexão sobre a velhice, hoje meditamos com o Livro do Eclesiastes ou Cohélet, outra joia que encontramos na Bíblia. À primeira leitura, este pequeno livro impressiona e sai desconcertado pelo seu famoso refrão: "Tudo é vaidade", tudo é "névoa", "fumaça", "vazio". É surpreendente encontrar essas expressões, que questionam o sentido da existência, na Sagrada Escritura. Na verdade, a oscilação contínua de Cohélet entre sentido e absurdo é a representação irônica de um conhecimento da vida que nasce de uma paixão pela justiça, da qual o juízo de Deus é o garantidor. E a conclusão do Livro indica o caminho para sair da provação: «Temei a Deus e guardai os seus mandamentos, porque isso é ser um homem justo» (12,13).
Diante de uma realidade que, em certos momentos, parece acolher todos os opostos, reservando-lhes o mesmo destino, que é não dar em nada, o caminho da indiferença também pode nos parecer o único remédio para uma dolorosa decepção. Perguntas como estas surgem em nós: Nossos esforços mudaram o mundo? Alguém talvez seja capaz de afirmar a diferença entre o que é justo e o que é injusto?
É uma espécie de intuição negativa que pode ocorrer em todas as fases da vida, mas não há dúvida de que a velhice torna quase inevitável o encontro com o desencanto. E, portanto, é decisiva a resistência da velhice aos efeitos desmoralizantes desse desencanto: se os idosos, que já viram tudo, mantêm intacta sua paixão pela justiça, então há esperança de amor e também de fé. E para o mundo contemporâneo tornou-se crucial passar por essa crise, uma crise saudável, porque uma cultura que se atreve a medir tudo e manipular tudo acaba produzindo também uma desmoralização coletiva do sentido, do amor, do bem.
Essa desmoralização remove o desejo de fazer. Uma suposta “verdade”, que se limita a registrar o mundo, registra também sua indiferença pelos opostos e os entrega, sem redenção, ao fluxo do tempo e ao destino do nada. Desta forma - vestida de cientificidade, mas também muito insensível e muito amoral - a busca moderna da verdade foi tentada a dizer adeus inteiramente à paixão pela justiça. Ele não acredita mais em seu destino, em sua promessa, em sua redenção.
Para nossa cultura moderna, que gostaria de entregar praticamente tudo ao conhecimento exato das coisas, o surgimento dessa nova razão cínica – que agrega conhecimento e irresponsabilidade – é um retrocesso muito forte. De fato, o conhecimento que nos isenta da moralidade, a princípio parece uma fonte de liberdade, de energia, mas logo se torna uma paralisia da alma.
Cohélet, com sua ironia, já desmascara essa tentação fatal de uma onipotência do conhecimento - um "delírio de onisciência" - que gera uma impotência da vontade. Os monges da mais antiga tradição cristã identificaram precisamente esta doença da alma, que revela de repente a vaidade do conhecimento sem fé e moral, a ilusão da verdade sem justiça. Chamaram-lhe "acédia". Uma tentação para todos e também para os idosos. Não é só preguiça. Não é só depressão. Pelo contrário, é a entrega ao conhecimento do mundo sem mais paixão pela justiça e pela ação consequente.
O vazio de sentido e força aberto por esse saber, que rejeita toda responsabilidade ética e toda afeição pelo bem real, não é inofensivo. Não só tira a força da vontade para o bem: pelo contra-ataque, abre a porta para a agressividade das forças do mal. São as forças de uma razão louca, que se torna cínica por excesso de ideologia. De fato, com todo o nosso progresso e bem-estar, nos tornamos verdadeiramente uma "sociedade cansada". Pense um pouco sobre isso. Tivemos que produzir bem-estar generalizado e tolerar um mercado de saúde cientificamente seletivo. Tivemos que colocar um limite intransponível à paz, e vemos uma sucessão de guerras cada vez mais implacáveis contra pessoas indefesas. A ciência progride, naturalmente, e é uma coisa boa. Mas a sabedoria da vida é outra coisa,
Imagem: Alfa&Omega
Por fim, essa razão afetiva e irresponsável também tira o sentido e a energia do conhecimento da verdade. Não é por acaso que vivemos a era das fake news, das superstições coletivas e das verdades pseudocientíficas. É curioso que, nessa cultura do conhecimento preciso, se espalhe tanta bobagem educada, levando a uma vida de superstição. A velhice pode aprender com a irônica sabedoria de Cohelet a arte de trazer à luz o engano escondido na ilusão de uma verdade da mente desprovida de afeição pela justiça. Anciãos cheios de sabedoria e humor fazem muito bem aos jovens! Eles os salvam da tentação de um conhecimento triste e imprudente do mundo. E fazem-lhes voltar à promessa de Jesus: "Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos" (Mt 5,6). Temos uma missão muito grande no mundo. Por favor, não procure refúgio no idealismo desenraizado ou no absurdo da vida.
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O Papa denuncia que “a cultura moderna reduziu a verdade à ciência exata e à tecnologia, criando um mundo sem esperança e sem amor” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU