16 Mai 2022
Seria interessante entender que paz os arquitetos da ordem mundial nos oferecem após a anunciada vitória sobre a Rússia. Porque uma coisa está clara, graças à corajosa resistência dos ucranianos e aos generosos fornecimentos de armas dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e Otan, além do precioso apoio da inteligência, a guerra mudou de sinal.
A opinião é de Domenico Gallo, juiz italiano e conselheiro da Suprema Corte de Cassação da Itália, em artigo publicado em Il Fatto Quotidiano, 13-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Vencer! “A palavra de ordem é uma só, categórica e exigente para todos. Ela já alça voo e ilumina os corações dos Alpes ao Oceano Índico: vencer! E venceremos!, para finalmente dar um longo período de paz com justiça à Itália, à Europa, ao mundo.”
Assim dizia Mussolini em 10 de junho de 1940. Também naquela época a guerra encontrava justificação na promessa da paz.
Com efeito, a Europa, depois daquela guerra, desfrutou de um longo período de paz que durou (colocando entre parênteses a guerra da Otan nos Bálcãs) de 9 de maio de 1945 a 24 de fevereiro de 2022. Só que – ao contrário do que Mussolini prometia– a paz foi fruto da derrota do Eixo, não da vitória.
Seria interessante entender que paz os arquitetos da ordem mundial nos oferecem após a anunciada vitória sobre a Rússia. Porque uma coisa está clara, graças à corajosa resistência dos ucranianos e aos generosos fornecimentos de armas dos Estados Unidos, Grã-Bretanha e Otan, além do precioso apoio da inteligência, a guerra mudou de sinal.
Na fase inicial, o objetivo era bloquear a ofensiva da Rússia para dar à Ucrânia uma chance de iniciar uma negociação que permitisse um cessar-fogo rápido, baseado em um compromisso com concessões recíprocas. Nessa fase, as negociações prosseguiram, e, em 15 de março, o Financial Times publicou um esboço de acordo em 15 pontos, que previa um status de neutralidade para a Ucrânia, que deveria reconhecer a anexação da Crimeia à Rússia e a proclamada independência das duas repúblicas do Donbass. Um silêncio mortal caiu sobre esse projeto nas chancelarias ocidentais.
Depois do primeiro mês de combates que testaram a notável capacidade de resiliência das forças armadas ucranianas, treinadas, lideradas e abastecidas pela Otan, todas as perspectivas de mediação foram guardadas na gaveta, e a fase 2 teve início em Ramstein, em 26 de abril, que tem como objetivo capacitar as forças armadas ucranianas, sob um prévio abastecimento adequado de armas pesadas, para obterem a derrota da Rússia, mesmo que às custas de um conflito destinado a durar meses, senão anos.
Depois de Ramstein, o presidente Zelensky deixou escapar que a Ucrânia não colocaria sobre a mesa de negociações a questão da Crimeia, anexada à Federação Russa em 2014.
Ele foi imediatamente calado pelo secretário da Otan, Stoltenberg, que, em entrevista ao jornal alemão Die Welt, declarou: “A Ucrânia deve vencer esta guerra, porque está defendendo o seu território. Os membros da Otan nunca aceitarão a anexação ilegal da Crimeia. Sempre nos opusemos também ao controle russo sobre partes do Donbass na Ucrânia oriental”.
Comentando essa intervenção, o embaixador Umberto Vattani observou: “Os ocidentais tinham declarado desde o início que queriam intervir em defesa da Ucrânia para salvaguardar sua independência e a soberania diante da prepotência e dos abusos do Kremlin. Mas quem defenderá Zelensky das pretensões da Otan, que quer impor a sua linha à de Kiev em vista das negociações a serem entabuladas com Putin?” (Avvenire, 05-09-2022).
É inaceitável que Stoltenberg também fale em nosso nome e nos informe que nós nunca aceitaremos a anexação da Crimeia à Federação Russa, mantendo vivo também esse front de conflito entre Rússia e Ucrânia. É verdade que a Otan sempre nos deu as ordens e que nós sempre as cumprimos, mas nas nossas próprias sedes; nunca tinha acontecido antes que alguém nos dissesse, com uma entrevista de jornal, o que devíamos fazer.
É claro que, se a palavra de ordem que vem do outro lado do Atlântico é “vencer”, a Europa deve cerrar fileiras e baixar a cabeça. Em vez disso, como observa o embaixador Alberto Bradanini no jornal Il Manifesto de 10 de maio, “os governos europeus deveriam trabalhar em um compromisso, porque é assim que as guerras terminam. Outros problemas para o povo ucraniano e para as economias europeias seriam evitados, assim como uma perigosíssima escalada nuclear. Através da Otan, os Estados Unidos mantêm a Europa sob vigilância, esterilizando todo anseio de soberania, se é que existem as suas condições endógenas”.
Enquanto isso, chegamos ao 78º dia de guerra, e não se entrevê nada de bom no horizonte, pelo contrário, vai se delineando como é elástico o conceito de vitória. A alocação de um rio de dólares (em 11 de maio, a Câmara aprovou uma ajuda de 40 bilhões) e a assinatura de Biden em uma lei para acelerar as transferências de armas para a Ucrânia impulsionam as ambições ucranianas em relação aos objetivos da guerra, a ponto de visar à libertação de todo o território, também daquela parte da qual eles haviam perdido a posse desde 2014.
Isso foi explicado em uma entrevista ao Financial Times pelo ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba. “A imagem da vitória é um conceito em evolução”, explicou ele ao jornal britânico. “Nos primeiros meses, teria parecido uma vitória se tivéssemos obtido a retirada das forças russas para as posições que ocupavam antes de 24 de fevereiro e o pagamento pelos danos infligidos. Agora, se formos suficientemente fortes no front militar e se vencermos a batalha pelo Donbass, que será crucial para as dinâmicas subsequentes do conflito, certamente a vitória nesta guerra será para nós a libertação do resto do nosso território.”
Para Mussolini, a vitória devia custar apenas alguns milhares de mortos, a serem jogados sobre a mesa das negociações pela paz. A história demonstrou que ele errou as contas. E se Biden e Stoltenberg também erraram as contas?
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“Vencer”: a conta só chega no fim. Artigo de Domenico Gallo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU