11 Mai 2022
Procuro um cartão postal da praça vermelha de 9 de maio, do grande desfile militar, de seu esplendor visível e seus silêncios cautelosos, das palavras de Putin, dos cadetes e das cadetes de botas lustrosas, dos heróis vivos e mortos, da bandeira que foi hasteada no Reichstag nazista e daquelas novas que se quer plantar na mais modesta prefeitura de Mariupol. E eu a encontro isso na palavra memória.
Porque o dia de ontem em Moscou não foi marcado pelo presente nem pelo futuro. Era, pode-se dizer, apenas memória. E a memória pode ser subversiva ou reacionária, porque o Estado a fabrica e cultiva como quer. Todo o passado é absorvido pela tarefa de divulgar as injustiças cometidas contra nós: a Rússia é boa, a causa é justa e a guerra é nobre. É a mensagem inculcada nesta memória fictícia que pode levar um país inteiro ao estado de transe. E em alguns casos esse transe pode durar gerações inteiras porque se tornou a História.
O comentário é de Domenico Quirico, jornalista italiano, publicado por La Stampa, 10-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
E este é o nó do homem russo que sempre foi tratado como algo substituível e renovável de acordo com a necessidade, sempre foi enganado. E esta é a sua memória, ter sido perpetuamente enganado. Tudo o que ele acreditou se revelou falso, foi apenas uma quimera. A Rússia experimentou todos os enganos possíveis: o czarismo, a anarquia também existiu, depois se concedeu com entusiasmo Marx e Engel e, em vez disso, chegou a ditadura stalinista e a estagnação, mas que não dizia respeito ao bem lubrificado mecanismo repressivo. E depois a perestroika com a promessa superficial e irreal de uma democracia feita sob medida; e em vez disso foi o esgar de Yeltsin e de seus quarenta ladrões. E hoje Putin: o poder militar, o mundo que novamente tem medo dos russos... Espera fatalisticamente que também esse engano se revele, como sempre. Deixando a memória vazia. Os russos viram realmente de tudo.
O calo que se formou na consciência é o de sempre ter que esperar algo do czar, velho e novo, ou do politburo ou do burocrata que agora também dispõe de um computador. E depois tem o medo, aquele medo permanente e antigo que é órfão justamente de uma memória que seja evolutiva, e que explique o passado e o presente, não tenha saltos, lacunas assustadoras, pausas intransponíveis.
É por isso que a vitória sobre os alemães em 1945 e as vinte e sete milhões de mortes da Guerra Patriótica são fundamentais. São a única coisa intocável, acima de toda decepção, consola, confirma.
Mas é uma memória que remonta a oitenta anos atrás. É imóvel. E depois? Ela é tão velha quanto os veteranos que todos os anos se sentam nas arquibancadas ao lado do czar do momento. História, mito, lenda, memória, tudo junto: eles são os únicos vencedores verdadeiros, intocáveis desta história onde o indivíduo sempre foi esmagado, silenciado sem sequer poder dar um passo à frente e a liberdade de expressão sempre é vista como uma insolência. Eles também provavelmente têm muitas injustiças para contar, são filhos da ferocidade stalinista que permitiu vencer a guerra. Mas pelo menos uma geração inteira manteve sua dignidade, para eles a memória é sagrada e viva. Mas são suficientes para o presente? São suficientes também para as gerações sucessivas?
Para os filhos e netos, a Rússia, amarga constatação é sempre aquela feita em degraus pela hierarquia das quatorze fileiras da época czarista e em cada ato de poder e relação entre superiores e inferiores há a jactância insolente de não ter que prestar contas a ninguém e a certeza de que o homem russo suporta tudo, as pancadas, o gulag e até a guerra do Donbass.
A interrupção de memória mais brutal é a de oitenta e nove, consequência da autodestruição URSS. Uma experiência psicológica que poucos povos tiveram que enfrentar de forma tão abrupta e total. Talvez trinta anos atrás os russos realmente sonharam por um instante com um futuro nem socialista, nem comunista ou capitalista, um futuro normal. O que os esmagou não foi tanto a miséria, a inflação, as incursões triunfais dos chacais competindo pelos pedaços do tesouro soviético, ou a destruição do império stalinista de Berlim ao Pacífico. A tragédia foi a maldição da memória individual e coletiva. Todo o passado foi zerado e amaldiçoado. Até se convidava a copiar o inimigo porque sempre teve razão, se pedia para se autodestruir como objetos inúteis e recomeçar. O futuro já tinha acontecido. O passado, e pior ainda, ainda estava por vir.
Nesse vazio cheio de remorsos e dúvidas, era preciso enfrentar problemas como o fim da ideologia única, do poder único e da propriedade única, e absorver novidades como a liberdade de consciência, o sistema parlamentarista, o fim da repressão em massa e da guerra fria com o Ocidente. Histórias de desespero pessoal dominavam o presente. Cada um podia contar histórias de desconforto, tão grotescas e fantásticas que pareciam além da compreensão humana. A vida cotidiana, outrora dominada pelas barreiras inquebráveis do poder absoluto, transformava-se em um carnaval bizarro que fazia a cabeça girar; parecia não fazer parte de uma experiência possível.
A reescrita e a distorção da história para isso tornaram-se um ato crucial que o abismo da memória apagada tornava mais simples. Tratava-se basicamente de homens e mulheres para quem a temporada soviética fez de tudo para exterminar a personalidade, transformando-a em um atributo do Estado, estropiada sob o peso do terror das polícias secretas. A massa crítica de um retorno estava se formando nessa perigosa impossibilidade de recordar algo louvável, e o burocrata modelo da KGB estava à espreita pronto para aproveitar a oportunidade. Putin tinha o imperialismo czarista em seu armário e este, tão semelhante, mas muito mais eficaz, de marca stalinista. Pensar sempre no inimigo e enxergar em toda parte traição e agressão dissimulada, a psicologia da fortaleza sitiada: deve bastar para quem desde sempre vive no ‘quem vem lá’, porque o terremoto pode acontecer a qualquer momento.
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Um povo enganado de Stalin ao czar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU