“Não vejo semelhanças entre Putin e Hitler. A comparação mais apropriada seria com Stalin”. Entrevista com Laurence Rees

Vladimir Putin (Fonte: Wikimedia Commons)

09 Março 2022

 

Laurence Rees (Ayr, 1957) parece derrotado do outro lado da linha, dizendo ser incapaz de imaginar uma saída minimamente positiva da invasão da Ucrânia pela Rússia. Ele lamenta que décadas de pesquisa sobre o sangrento século XX, de escrever livros e produzir documentários sobre a Segunda Guerra Mundial com base na coleta de testemunhos de vítimas e algozes, tenham sido inúteis. As lições da história estão aí, mas não quisemos prestar atenção a elas.

 

A entrevista é de David Barreira, publicada por El Cultural, 04-03-2022. A tradução é do Cepat.

 

O pretexto para a conversa com o historiador britânico é a tradução para o espanhol de seu livro Hitler y Stalin (Crítica), um brilhante confronto das personalidades, ideologias e ações dos dois grandes monstros do século passado; uma atualização, que inclui os últimos estudos acadêmicos e inúmeros materiais inéditos (entrevistas com colaboradores do führer e do líder soviético, por exemplo), do clássico Hitler y Stalin: Vidas paralelas de Allan Bullock, de 1991.

O livro de Rees, também autor de O Holocausto: uma nova história (Editora Vestígio) e O carisma de Hitler (Editora Leya), foi publicado em outubro de 2020, mas contém alertas chocantes para o presente sobre a destruição que tiranos com visões utópicas podem causar ao mundo. Uma menção explícita a Vladimir Putin que, lida agora, se tornou uma profecia.

 

Eis a entrevista.

 

No final do prólogo, você advertia que no mundo de hoje ainda abundam os tiranos que têm meios que podem nos destruir. Você imaginava algo parecido com o que estamos vivendo?

 

Não. Há cerca de quinze anos publiquei Their Darkest Hour, uma coletânea de histórias de cerca de trinta pessoas que viveram a Segunda Guerra Mundial e que havia conhecido e entrevistado como jornalista. Foram experiências de vítimas e perpetradores de todo o continente. Cheguei a duas conclusões: a primeira é que devemos ter muito cuidado com a cultura que nos cerca porque ela vai mudar muita gente. E é por isso que no final de Hitler e Stalin digo que o que me interessa é o estudo da maleabilidade da mente humana.

A segunda é que as coisas e as circunstâncias mudam incrivelmente rápido. Eu diria que é a única grande lição da história. Os judeus húngaros, por exemplo, não haviam experimentado nada semelhante ao que os poloneses experimentaram até que os alemães invadiram a Hungria na primavera de 1944. Em poucas semanas eles foram deportados para Auschwitz. Quando você fala com os sobreviventes, vêm-lhe à mente perguntas tais como: por que isso aconteceu de repente? Ou: como tudo pode mudar em apenas um instante? Tudo ao nosso redor é muito mais frágil do que pensamos: as instituições, as pessoas... basta olhar para o caso de Trump e quão perto os Estados Unidos chegaram de perder sua democracia.

 

Hitler e Stalin estavam dispostos a matar milhões de pessoas em busca de seus sonhos. Eles prometeram ao seu grande número de seguidores um mundo de glória que nunca veio. No século XXI, é mais difícil convencer as pessoas da viabilidade dessas utopias?

 

Penso que não. Um dos problemas que muitos de nós enfrentamos é que vivemos no que pode ser chamado de uma era pós-iluminista. Uma das características interessantes de Hitler e Stalin é que ambos acreditavam em ideologias que davam sentido às suas vidas fora de si mesmos, que não dependiam de Deus; eles acreditavam ter descoberto o segredo da existência. E é perfeitamente possível que outra pessoa venha e faça o mesmo. No atual conflito ucraniano, o problema é que as pessoas precisam saber em termos simples pelo que estão lutando. Os ucranianos sabem disso, mas como podemos ver em entrevistas com soldados capturados, muitos russos não. Acho que eles pensam ou suspeitam que seus líderes mentem o tempo todo.

Hitler e Stalin mentiram quando lhes convinha. No entanto, eles tinham uma base gigantesca de crenças ideológicas em que muitas pessoas acreditavam. Mas qual é o sistema de crenças ideológicas de Putin? Além de querer, de alguma forma, criar novamente pedaços da União Soviética, não tem. No que realmente acredita além de tentar conseguir um grande iate?

 

Nos últimos dias, estamos vendo muitas comparações entre Putin e Hitler. Você acha que uma das grandes diferenças entre eles é o apoio do povo? Em 1939, muitos alemães foram hipnotizados pelo führer, ao passo que a invasão da Ucrânia parece não ser muito popular na Rússia…

 

Sim, mas eu não diria que alguém foi hipnotizado por Hitler. Muitas pessoas acreditaram no que ele disse, mas a guerra, quando começou em 1939, não era popular na Alemanha porque a memória da Primeira Guerra Mundial ainda era muito forte. Devemos descartar a ideia de que existe um nazista crente ou um nazista incrédulo. Hitler teve muitos problemas para acabar com a Igreja Católica. Por exemplo, quando durante a guerra alguns de seus oficiais mais durões quiseram tirar os crucifixos das escolas da Bavária, houve uma reação negativa, muitos soldados escreveram para casa perguntando o que estava acontecendo. Então decidiram deixar a questão do cristianismo para depois da guerra. Você podia ser um nazista e acreditar em algumas coisas, mas discordar de outras.

 

Você realmente vê alguma semelhança entre Putin e Hitler? Existem paralelos entre suas ações?

 

Na realidade, não. A comparação mais apropriada é entre Putin e Stalin. É muito difícil ver áreas de possível comparação. Hitler era um visionário e Putin não. Hitler tinha a maior ambição: criar um império racista no leste. Sabia que para isso teria que matar milhões de pessoas e não se importava. Ele era um indivíduo com uma visão assassina, e isso é algo extraordinário na história. Ele também foi um líder carismático nos termos de Max Weber: uma espécie de liderança mediante o poder de sua própria responsabilidade.

Putin não é isso, ele gera zero carisma. A única comparação remotamente interessante entre eles agora é que uma das razões pelas quais Hitler queria ir em frente com a guerra era porque ele estava preocupado com a morte iminente, o que podemos achar estranho, já que ele tinha apenas 50 anos. Ele estava preocupado em não ter tempo suficiente. Putin tem quase 70 anos. Até que ponto ele é influenciado por querer criar um lugar para si mesmo na história russa? E o que seria maior, para ele, do que ter retomado a Ucrânia para construir uma Rússia maior?

 

Em que se parece então com Stalin?

 

No passado, Putin reconheceu alguns dos crimes de Stalin, mas ao mesmo tempo fala da hipocrisia do Ocidente por negociar com os nazistas em 1938 [os acordos de Munique]. Seus postulados não são válidos, como analiso no livro. Acho que Putin se vê mais como os homens fortes da Rússia como Stalin ou Ivan, o Terrível. Quando vemos esses calendários malucos que incluem uma foto de Putin sem camisa e a cavalo, nos faz rir, é ridículo. Mas têm ressonância na Rússia, porque existe essa longa tradição histórica de líderes masculinos fortes. Isso é o que está tentando aproveitar aqui.

 

Hitler e Stalin não tinham armas nucleares, mas Putin tem. Você pode imaginar o autocrata russo apertando o botão?

 

Ao longo de toda a minha vida convivemos com o risco de que uma guerra nuclear fosse possível. E agora é absolutamente possível. Uma pessoa racional faria isso? Não sei. Quão racional foi invadir a Ucrânia dadas as circunstâncias…? Mas não sabemos. Estou muito mais certo de que Hitler as teria usado em um piscar de olhos. Se tivesse podido aniquilar todas as grandes cidades europeias com armas nucleares, teria feito isso antes do café da manhã.

 

Você teme uma Terceira Guerra Mundial ou acha que a derrota do governo ucraniano será suficiente para Putin?

 

Não consigo explicar em palavras o quanto estou deprimido. O incrível é que isso mostra a inutilidade de tudo o que fiz até agora. Qual é o sentido de escrever durante anos? Há uma semana tudo parecia muito mais estável. E agora? É deprimente. A Ucrânia é um país maravilhoso, conheço muita gente de lá. Mas não vejo um bom final. Como os ucranianos podem expulsar os russos? Podemos continuar a armá-los e continuarão lutando, mas os russos vão se render? Não. Talvez o melhor cenário seja uma espécie de guerra fria como em Donbass e na Crimeia. As sanções são vitais, mas vamos permitir que a Rússia se torne a Coreia do Norte?

 

Como se derruba um ditador?

 

A única solução para a crise atual é a eliminação de Putin, e isso não está em nossas mãos. Mais uma vez a história nos oferece ensinamentos. Veja como foi difícil se livrar de Hitler, e isso que a situação era diferente: você tinha que lidar com o fato de que sua eliminação não impedisse a chegada do Exército Vermelho ao seu país. Na Rússia, podem acabar com Putin e tentar começar de novo, mas como vão fazer isso se ele se sentar no final de uma mesa muito comprida...

Olhando para trás, podemos ver exemplos de que para ditadores como Putin é vital manter o apoio do Exército e dos líderes políticos, o que se consegue através da corrupção e pagando-lhes muito. O problema é que você não pode pagar a todos. É por isso que quando vejo os protestos na Rússia olho para a polícia. Imagine que 100.000 russos vão às ruas para protestar e a polícia recebe a ordem de dispersá-los e prendê-los, mas eles se recusam porque não têm dinheiro nem para comer. Esse é o início de uma revolução. A história nos mostra como é incrivelmente fácil quebrar uma coisa e como é extremamente difícil criar uma coisa. É isso que está acontecendo agora: estamos quebrando coisas.

 

O futuro é sombrio…

 

Eu gostaria que não fosse e pudesse ver dias felizes pela frente. Mas posso ver vários cenários ainda piores se quisermos ficar mais deprimidos. O que acontecerá quando as crianças ucranianas começarem a passar fome? O que acontecerá quando os russos cruzarem a linha bombardeando áreas civis? O que acontecerá quando começarem a destruir grandes áreas de Kiev e matar milhares de civis inocentes? O Ocidente vai ficar parado quando tem forças armadas tão poderosas para deter Putin? Imagine viver em uma pequena cidade na fronteira entre a Polônia e a Ucrânia. Num lado, todos estão protegidos do ataque russo enquanto do outro lado todos estão sendo bombardeados. Onde está a justiça nisso?

 

Os nacionalismos e os populismos ameaçaram a unidade europeia nos últimos anos. A guerra atual ajudará a fortalecer a identidade comunitária?

 

Sim, penso que já o fizeram. Mas, novamente, o problema é muito arbitrário. Eu fiz muitas gravações na Bielorrússia e conheço pessoas maravilhosas, mas elas estão sendo terrivelmente oprimidas por esse tenebroso líder, Lukashenko, que tortura jornalistas. E estamos na Europa. Certamente eles pensam: por que não nasci na Polônia? O que me preocupa quando as pessoas falam sobre a unidade europeia é que eles querem dizer apenas a unidade da União Europeia. Mas isso não é a Europa, a Ucrânia também faz parte da Europa.

 

Os crimes do nazismo e do stalinismo são comparáveis?

 

Ambos podem ser examinados e, por implicação, estão sendo comparados. O que eu deliberadamente me recuso a abordar no livro é quem foi pior. É uma pergunta que não pode ser respondida nesses termos. O que significa pior? Os números? Hitler provavelmente matou mais, mas foi pior por isso? Tente dizer isso às crianças Kalmyk que morreram de fome nas deportações com as quais Stalin procurou limpar seu grupo étnico ou aos oficiais poloneses mortos em Katyn. Eu nunca diria que o sofrimento é pior.

O que sempre digo é que o Holocausto é um crime singular, com aspectos que o diferenciam de tudo o que já foi cometido. E isso significa que é um evento histórico terrível. E Stalin não fez isso, e mesmo assim também foi horrível: matou pessoas completamente inocentes apenas porque pertenciam a um determinado grupo. Entrevistei um Kalmyk que havia sido condecorado por bravura no Exército Vermelho e mesmo assim foi enviado para um campo de concentração. Ao final da guerra, as péssimas condições desse grupo fizeram com que houvesse mais mortes do que nascimentos, de modo que foram sendo gradualmente exterminados. Nunca houve uma decisão de matar todas aquelas pessoas, mas há aspectos semelhantes às políticas do Holocausto.

 

O que você perguntaria a Hitler e Stalin caso estivesse na presença deles?

 

Penso que não faria nenhum sentido perguntar nada a eles, porque de que adianta perguntar alguma coisa a alguém se você sabe que essa pessoa vai mentir. Se você perguntar a Hitler por que matou os judeus, ele responderá com todas as suas falácias sobre a culpa dos judeus; e Stalin lhe responderá que não é responsável pelo massacre de poloneses na floresta de Katyn, quando temos o documento que o confirma e até sabemos disso pelas conversas entre Churchill e Roosevelt, que permaneceram em silêncio porque precisavam dos soviéticos como aliados. Apesar do que Putin está fazendo, não o colocaria na mesma categoria de inferno que os outros dois, no sentido de que ele ainda não se desenvolveu tanto. Mas quando você vê o ministro das Relações Exteriores russo falando sobre o governo ucraniano, seu discurso é mentira atrás de mentira. É como quando você fala com uma criança e ela lhe diz: “Não, eu não fiz isso”.

 

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