11 Janeiro 2022
“Se você quer saber por que a Igreja nos Estados Unidos é muito mais hostil ao Papa Francisco do que qualquer outra Igreja nacional, não olhe para as Escrituras. Siga o dinheiro, olhe para as declarações de renda dessas organizações católicas de direita”, escreve o jornalista estadunidense Michael Sean Winters, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 10-01-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A reportagem do meu colega Brian Fraga na última semana detalhando as redes de financiamento que ligam organizações católicas com grupos que organizaram o assalto ao Capitólio no ano passado é arrepiante. Tal arrepio poderia assombrar cada prelado estadunidense. As distorções da nossa fé, trazidas pela guerra cultural, têm sido mescladas com política de traição por uma rede bem financiada que está disposta a acenar para o fascismo trumpista.
Deixemos claro: as pessoas que negam os resultados das eleições, que alegam fraude eleitoral sem produzir qualquer evidência de tal fraude, que tentam fazer com que outros “encontrem” votos e que tentam impedir a certificação oficial de uma eleição estão atacando nossa democracia. Ponto final. Se isso não é traição, o que é? E não há nada no ensino católico que veja a cooperação com a traição como moralmente neutra ou inquestionável.
Então, quando a professora de filosofia Melissa Moschella, da Universidade Católica, disse a Fraga: “Parte de viver em um mundo onde as coisas são moralmente confusas é que, para fazer o bem, você precisa cooperar com pessoas e organizações que estão fazendo algumas coisas das quais você discorda”, ela não estava errado, mas ela estava perdendo o ponto. Traição não é algo com o que você simplesmente “discorda”.
A título de comparação – e não pretendo sugerir que a política é um jogo – no futebol americano ou no basquete, existem diferentes estilos de jogo, quarterbacks e armadores com habilidades diferentes, defesas com formações diferentes, etc. Tudo isso faz os jogos serem interessantes e emocionantes. Mas se alguém está trapaceando, isso não é mera diferença. É uma diferença que mina toda a premissa do jogo.
Os eventos em torno de 06 de janeiro de 2021 não foram diferenças políticas. Eles procuraram minar a Constituição, não debatê-la. Temos razão em estigmatizá-lo e a quem o perpetrou. E embora a distinção entre palavras e ações seja um dos princípios mais acarinhados do liberalismo, há algumas palavras, como a “grande mentira”, que levam à violência por uma via direta o suficiente para exigir também a estigmatização.
As observações de Moschella são insuficientes também em outro aspecto. Ela se concentra em saber se uma organização que recebe dinheiro de uma rede de doadores controversa será ou não comprometida e conclui que tal comprometimento aconteceria apenas se houvesse restrições associadas ao presente. “Mas se é apenas uma questão de que este grupo apoie minha posição porque eu sou pró-vida, mas eles também apoiam outras coisas com as quais eu não concordo, então tudo bem, posso trabalhar com eles porque compartilhamos um compromisso comum contra o aborto, embora eu discorde deles em outras coisas”, disse ela a Fraga. Isso é verdade, mas não é suficiente.
Obviamente, se houver restrições que violem as crenças católicas ou a missão de uma organização, aceitar o dinheiro seria comprometedor. Mas há muitas maneiras pelas quais uma organização pode ser comprometida.
Existem maneiras de se inocular contra tal corrupção. Ao ler a reportagem de Fraga, lembrei-me de um incidente quando a Liberty University do pastor Jerry Falwell enfrentou problemas financeiros na década de 1990. Dois ex-angariadores de fundos para a escola se apresentaram para ajudar. Eles receberam muito de seu apoio financeiro do reverendo Sun Myung Moon, cujas crenças esotéricas eram profundamente ofensivas para cristãos crentes na Bíblia como Falwell. No entanto, Falwell pegou o dinheiro e, quando vazou a notícia de que tinha vindo de Moon, Falwell deu uma entrevista ao Christianity Today. “Tenha certeza de que vou operar com a filosofia de Billy Sunday: o diabo teve tempo suficiente e rapidamente descontou o cheque”, disse ele à revista.
Seria uma coisa se as organizações católicas conservadoras demonstrassem o tipo de ousadia que Falwell possuía, seu evidente desdém pela fonte do dinheiro brilhando. Não é assim que funciona em Washington. Homens como Leonard Leo, da Federalist Society, e o banqueiro investidor e filantropo Sean Fieler, com acesso a grandes quantias de dinheiro, próprias ou de outros, podem pegar o telefone, ligar para uma organização como a Susan B. Anthony List ou a Catholic Association Foundation, e pedir-lhes que se envolvam em alguma área além de seu alcance normal. Os grupos estão realmente em posição de dizer não se eles se tornaram dependentes do dinheiro que o doador já está dando a eles?
O resultado é que grupos como a SBA List se unem ao American Principles Project, financiado por Fieler, para lançar uma nova iniciativa sobre “transparência eleitoral”, liderada por Ken Cuccinelli, ex-assessor de Trump. Por que um grupo pró-vida se envolveria nessa questão?
“O movimento pró-vida deve se engajar na transparência eleitoral e na reforma da integridade ou sua capacidade de eleger legisladores pró-vida e pró-família – e aprovar leis que salvam vidas – será muito diminuída, se não extinta”, disse Cuccinelli em uma coletiva de imprensa anunciando o projeto.
Em certo sentido, Cuccinelli está certo: o destino do movimento pró-vida agora está casado com o Partido Republicano, e o Partido Republicano decidiu que precisa seguir Donald Trump sobre a “grande mentira” de que a eleição de 2020 foi roubada. Mas esse nível de interpenetração entre os grupos demonstra que a relação não é nem mesmo aquela que seria abrangida pelo termo “aliados”. É mais como a relação entre a infantaria e a cavalaria em um único exército. Eles não estão mais apenas fazendo uma causa comum. Eles estão perseguindo uma causa singular, e essa causa é política, não religiosa. Se a SBA List quiser escolher esse caminho, isso é uma coisa, mas as organizações com a palavra “Católica” em seu título devem ser mais sensatas.
Todo esse dinheiro cria uma rede que, ao longo do tempo, dependerá da vontade dos interesses endinheirados que a bancam. Veja a Catholic Association Foundation, que recebeu 5,5 milhões de dólares de dinheiro obscuro da Donors Trust em 2020. Como Fraga apontou, esse montante constitui a maior parte dos fundos da Catholic Association, que é de 6,3 milhões, de acordo com a declaração de 2019. Como alguém na Catholic Association recursaria um pedido dos grandes doadores da Donors Trust?
Eu não conhecia a Catholic Association, então fui ao site deles e ainda não tenho certeza do que eles fazem. “The Catholic Association (TCA) dedica-se a ser uma voz católica fiel em praça pública”, afirma o site “A TCA está respondendo ao chamado da Igreja Católica para que os fiéis leigos apliquem os ensinamentos, a sabedoria e os princípios católicos para as questões do dia”. Parece positivamente saudável.
Como a TCA realiza esse bom trabalho? Isso é um pouco mais obscuro para determinar. Sob o título “staff” no site, eles listam quatro pesquisadores bolsistas seniores, mas nenhum diretor-executivo, nenhum diretor de comunicação, nenhum diretor de programa. A declaração de renda de um dos membros seniores, Ashley McGuire, a aponta como “diretora, presidente” da organização, pela qual ela recebe 71 mil dólares. O formulário de imposto diz que ela trabalha cinco horas por semana. Bom trabalho, se você conseguir. E o que ela faz por esse belo salário? Bem, ela escreveu uma defesa da EWTN na National Review, que o site da TCA deseja compartilhar. Estranho que eles não mencionem que foi o próprio Papa Francisco quem criticou a EWTN!
Para onde vai o resto do dinheiro? Leonard Leo recebeu 120 mil dólares por “consultoria”. A TCA doou 1,6 milhões para a Universidade Católica da América e 250 mil para o Catholic Information Center, duas organizações sediadas em Washington D.C. que estão profundamente envolvidas na rede político-religiosa conservadora da guera cultural. Esses são alguns presentes exuberantes. Você pode ficar tentado a pensar que a TCA coloca a “exuberância” de volta em “caixa dois”.
Isso não é simonia, mas um tipo diferente de corrupção. O fracasso em ver como as guerras culturais distorceram o ensino católico e prostituíram a fé para os objetivos políticos de alguns doadores milionários é agora um fracasso moral intencional e, o que é pior, um fracasso eclesiológico voluntário. A reportagem de Brian Fraga deve ser um alerta para os bispos dos EUA e para a Santa Sé.
Se você quer saber por que a Igreja nos Estados Unidos é muito mais hostil ao Papa Francisco do que qualquer outra Igreja nacional, não olhe para as Escrituras. Siga o dinheiro, olhe para as declarações de renda dessas organizações católicas de direita.
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EUA. Como o dinheiro obscuro prostitui a Igreja e distorce o catolicismo no país - Instituto Humanitas Unisinos - IHU