13 Novembro 2021
“Décadas de desregulamentação, de privatização e de culto ao mercado deixaram a sociedade vulnerável à insidiosa força das cadeias de abastecimento just in time. As subvenções públicas, as reduções de impostos, a formação profissional e outras políticas tradicionais não serão suficientes para resolver as crises que enfrentamos, da pandemia à crise climática, que estão provocando o fracasso das cadeias de abastecimento”, escreve Kim Moody, ex-líder da rede Labor Notes, nos Estados Unidos, e atualmente professor visitante na Universidade de Westminster, em Londres, Reino Unido, em artigo publicado por Viento Sur, 01-11-2021. A tradução é do Cepat.
Um choque de preços nos mercados mundiais de gás natural derruba vários pequenos fornecedores de energia no Reino Unido, deixando os clientes sem calefação e frente a um aumento dos preços. Um incêndio deixa fora de serviço o enorme cabo que leva eletricidade da França para o Reino Unido, o que ameaça as residências com a escuridão e o aumento nas contas de luz.
O navio porta-contêineres Ever Given [200.000 toneladas e 400 metros de comprimento: propriedade da empresa japonesa Shoei Kisen Kaisha, navegando sob a bandeira do Panamá, armadora Evergreen Marine Corporation], procedente da Malásia e com destino a Felixstowe [o maior porto de contêineres do Reino Unido], fica encalhado no Canal de Suez, durante seis dias [em fins de março de 2021], levando a uma interrupção do tráfego marítimo com um custo estimado de 730 milhões de libras esterlinas e atrasa a chegada de aparelhos eletrônicos pedidos pelo Amazon Prime.
Esses incidentes têm em comum a velocidade com que apenas um evento pode interromper as cadeias de abastecimento em todo o mundo. Quase todas as vezes em que um item é pedido online, é transportado por uma rede de empresas, ferrovias, rodovias, barcos, armazéns e distribuidores que juntos formam o sistema de circulação (em fluxo tenso) da economia global. Essa infraestrutura estreitamente calibrada está planejada para um movimento perpétuo. Tão logo um elo se rompe ou é bloqueado, o impacto nas cadeias de abastecimento just in time de hoje é sentido imediatamente.
O just in time é uma ideia de Taiichi Ohno, um engenheiro da Toyota, nos anos 1950, que se inspirou no trabalho de Henry Ford [1963-1947]. Ohno definiu esse sistema como uma forma de eliminar os “desperdícios”, ou seja, os estoques, os trabalhadores adicionais e os “minutos não utilizados” na produção e movimentação de mercadorias. Em vez de perder tempo, mão de obra e dinheiro armazenando peças, ao longo da linha de montagem, ou estocando mercadorias (conforme os fabricantes fizeram por décadas), a ideia de Ohno é que os fornecedores possam entregar essas peças quando necessárias. Isso aumentaria os lucros ao reduzir o dinheiro que as empresas gastam para manter os estoques e pagar a mão de obra adicional.
Após sua introdução no Ocidente, nos anos 1980, o modelo just in time abandonou gradualmente a fábrica de automóveis para abarcar todos os tipos de produção de bens e serviços. Impôs-se em todas as cadeias de abastecimento até que todos os fornecedores, grandes ou pequenos, passassem a ter que entregar produtos rapidamente ao próximo comprador. Isso aumentou a concorrência entre empresas para entregar produtos de forma muito rápida, o que permitiu às empresas reduzir seus custos (geralmente o preço da mão de obra).
A entrega just in time, portanto, contribuiu para o crescimento de empregos de baixos salários, muitas vezes mais precários, nos quais os trabalhadores só são contratados quando são necessários. Tal pressão constante sobre os trabalhadores alimentou nossa cultura de trabalho de 24 horas por dia, 7 dias por semanas, e os problemas de saúde mental que a acompanham, ao passo que as tentativas de redução do preço do trabalho contribuíram para o crescimento das desigualdades econômicas, independentemente do governo.
A entrega rápida de produtos depende das infraestruturas. Desde os anos 1980, rodovias foram ampliadas, portos foram aprofundados e pistas de aterrissagem foram adicionadas, aqui e ali, para manter o ritmo das mudanças. Os armazéns do século XXI evoluíram para enormes centros de distribuição e de execução. Mas a velocidade, como diria qualquer piloto de Fórmula 1, acarreta seus próprios riscos. As inundações, os cortes de energia, as estradas fechadas, os conflitos trabalhistas e, é claro, as pandemias podem deter o sistema.
Como o just in time acabou com os estoques, uma crise imprevista pode provocar uma escassez inesperada e perigosa. No início da pandemia, houve uma escassez generalizada de EPIs (equipamentos de proteção individual), aventais, máscaras e luvas de plástico, todos dependentes de uma produção just in time, com poucos estoques de reserva.
Hoje, nosso mundo just in time é cada vez mais propenso à crise. Os programas de transporte de contêineres não têm sido confiáveis desde o início da pandemia, no começo de 2020. O aumento dos preços do combustível também levou a uma redução na velocidade de envio, conhecida como “slow steaming” (redução da velocidade de um navio para diminuir o consumo de combustível, para reduzir custos].
Por sua vez, a British International Freight Association alertou sobre uma escassez do transporte terrestre. Em outras palavras, diminuiu o número de trabalhadores portuários e estoquistas, a partir da Covid-19, e o número de motoristas de caminhões é insuficiente devido à pandemia e o Brexit, bem como por anos de salários estagnados, longas jornadas de trabalho e falta de formação disponível. A Road Haulage Association estima a atual falta de motoristas no Reino Unido em 100.000. Pouquíssimos motoristas significam portos congestionados, navios paralisados, prateleiras vazias e preços mais altos.
Os responsáveis pelas cadeias de abastecimento e os especialistas em logística estão cientes de todos os problemas potenciais e, durante a última década, mais ou menos, debateram o equilíbrio entre “risco” e “resiliência”, sendo “resiliência” a capacidade de minimizar ou reduzir rapidamente as perturbações. Os estoques baixos no modo just in time aumentam o risco de penúria em caso de crise. A “resiliência”, por outro lado, implica estoques mais consideráveis, mais trabalhadores e trabalhadoras, múltiplos fornecedores e custos mais altos. Isso cria um dilema. A concorrência faz com que a resiliência seja em si mesma um risco para as empresas individuais. Quem quer comprar de um recém-chegado, cujos preços são mais altos?
No entanto, enquanto que a lucratividade for a força motriz do sistema, os esforços nacionais de recuo sobre si mesmo ou de “recuperação” - ironicamente, muitas vezes, com o objetivo de criar uma resiliência imaginária, como se apresentou no Brexit – apenas criam mais interrupções, cadeias de abastecimento quebradas e preços mais altos, na medida em que as empresas buscam recuperar suas perdas. O regime de bens de consumo baratos é cada vez mais difícil de ser mantido.
Existem implicações ainda mais importantes para esse regime de capitalismo desenfreado. Todo esse movimento globalizado, em tempo real, é alimentado por combustíveis fósseis que causam a degradação do clima. O aumento dos tsunamis, dos incêndios florestais, das inundações e de outros fenômenos climáticos extremos fazem com que as cadeias de abastecimento e as necessidades básicas que oferecem fiquem ainda mais vulneráveis.
Os manifestantes concentrados no centro de Londres ou nas rodovias não erram. De um modo ou de outro, se as grandes corporações forem privadas do uso gratuito de suas fontes de energia mortais favoritas, as coisas podem ser desaceleradas a um ritmo humano e talvez, enquanto estivermos aqui, seja possível até salvar o planeta.
Décadas de desregulamentação, de privatização e de culto ao mercado deixaram a sociedade vulnerável à insidiosa força das cadeias de abastecimento just in time. As subvenções públicas, as reduções de impostos, a formação profissional e outras políticas tradicionais não serão suficientes para resolver as crises que enfrentamos, da pandemia à crise climática, que estão provocando o fracasso das cadeias de abastecimento. É hora de pensar não apenas em como produzimos e consumimos os bens, mas também em como os movimentamos.
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Cadeias de abastecimento ‘just in time’: fragilidades, tipos de empregos criados e vínculos com a crise climática - Instituto Humanitas Unisinos - IHU