Seriam os QR Codes microespiões do capital?

Foto: Pixabay

27 Outubro 2021

 

Viagem a dimensão desconhecida do sistema. Dois giros tecnológicos permitem às grandes corporações controlar cada mercadoria produzida – e quem a consome. Por que os QR e os chips RFID, hoje onipresentes, são essenciais neste domínio?

 

A reportagem é publicada por Lundi Matin e reproduzida por Outras Palavras, 22-10-2021. A tradução é de Vitor Costa.

 

De onde vêm os códigos QR [QR codes, em inglês], símbolos misteriosos que nenhum de nós pode decifrar sem a ajuda de um leitor e que se tornaram um sinal de nossa modernidade comercial e conectada? Vamos examinar a história do código de barras e do código QR, pequenas invenções amplamente utilizadas que identificam mercadorias e pessoas.

 

Antes de se tornarem, em muitos países, ferramenta de verificação de certificado de vacina, os códigos QR situam-se na longa história da industrialização, dos fluxos de comércio globalizado e de seu controle, o que, por sua vez, diz respeito às mudanças mais amplas do capitalismo.

 

O código QR tornou-se um dos símbolos do mundosmart”. De passes sanitários a outdoors, cartões de restaurante e cartões em museus e exposições de arte, a banalidade de seu uso reflete a influência das tecnologias digitais. Um quadrado de superfícies pretas sobre um fundo branco, emoldurado por três quadrados pretos, o “código de resposta rápida” [QR] difere do código de barras por suas duas dimensões e está intimamente relacionado ao sistema RFID para pagamentos sem contato. A sua história, que este texto se propõe a reconstituir, é inseparável da do código de barras. Faz parte da grande história da relação entre as Tecnologias da Informação (TI) e a indústria, que determinou o papel crescente da identificação computacional na movimentação de mercadorias e pessoas. Fábricas, logística e bancos de dados são os protagonistas da expansão prodigiosa da TI da virada dos anos 1970 para 1980 até os dias de hoje.

 

1. A invenção e a expansão do código de barras

 

Quer dizer que já existiu
um mundo sem códigos de barras?

 

Em sua história da informática “onipresente”, Geneviève Bell e Paul Dourish falam de “amanhãs com gosto ontem” (yesterday’s tomorrows) para designar a maneira como o foco nas promessas grandiloquentes de tecnologias futuras tende a mascarar o domínio daqueles que já estão bem estabelecidos. Com certeza, o QR-Code é mais prosaico do que os sonhos de um mundo interativo prometido por Mark Weiser, ou o metaverso anunciado por Mark Zuckerberg [1]. No entanto, é precisamente a aparente simplicidade desta tecnologia e o fato de estar tão próxima de nós que lhe permite “misturar-se com o cenário a uma velocidade estonteante [2]. Em certo sentido, um código de barras, ou um código QR, funciona como uma infraestrutura [3]: algo imperceptível na maioria dos casos, do qual dependemos sem refletirmos muito e que nos permite fazer algo, enquanto determina a forma das ações e usos que ela torna possível. Se nada parece mais trivial do que o código de barras que aparece em quase todos os bens do mundo, a introdução desta representação de um dado numérico ou alfanumérico, na forma de uma alternância de barras e espaços cuja espessura é variável foi fundamental para acelerar a informatização.

 

Antes dos códigos de barras, não havia sistemas para capturar automaticamente as informações sobre os produtos vendidos. Os caixas inseriam manualmente o preço de cada produto vendido em caixas registradoras mecânicas, preço este que eles deveriam saber de cor ou etiquetar manualmente. Por sua vez, os gerentes das lojas tinham que avaliar e monitorar constantemente o abastecimento das gôndolas, sem dados acessíveis, produto a produto.

 

Em 1952, dois engenheiros, Bernard Silver e Norman Joseph Woodland (anteriormente assistente do projeto Manhattan, que desenvolveu a bomba atômica), inspiraram-se no código Morse para resolver esse problema: pontos e barras que se sucedem para transmitir uma informação. Assim, inventaram o código de barras, ou seja, um código capaz de atuar como mediação entre a materialidade de um objeto e sua identidade virtual localizada em um banco de dados digital. Ele cria um elo entre o digital e o físico, entre a informática e a movimentação de mercadorias.

 

Na época, porém, seu código exigia uma lâmpada de 500 watts para ser descriptografado. Ela esquentava muito, às vezes queimando o papel ou a pupila humana, ainda longe de nossas tecnologias smart. A descriptografia também exigia um hardware de cálculo que era impossível de implantar de forma massiva e barata. Assim, sua invenção permaneceu inicialmente sem futuro [4], mas eles depositaram a patente, que foi imediatamente comprada pela Radio Corporation of America (RCA). Assim como um carro não vai a lugar nenhum sem a infraestrutura rodoviária que o acompanha, um objeto técnico só existe com seu ambiente associado [5], que o condiciona e que ele também condiciona. Ainda faltariam vinte anos de inovações para que o código de barras se tornasse funcional.

 

Desenho dos primeiros códigos de barras (Foto: Outras Palavras)

 


Em maio de 1960, Theodore Maiman inventou o laser, sigla para “amplificação da luz por emissão estimulada de radiação”, que permite uma emissão de luz coerente e direcional. Essa luz vermelha, que sempre vemos nos leitores de supermercado, foi rapidamente associada aos códigos de barras. Na década seguinte, a RCA deu continuidade às pesquisas para automatizar e agilizar os arranjos de mercadorias nos mercados. Ao mesmo tempo, outras empresas realizavam pesquisas semelhantes para monitorar a movimentação de trens de carga [6].

 

Em Cincinnati, em 3 de julho de 1972, vinte anos após a invenção de Woodland e Silver, um código de barras circular foi testado em um Kroger Kenwood Plaza por 18 meses: o experimento visava comparar o volume de vendas com outras lojas da mesma marca. Embora os resultados fossem convincentes em termos de economia de tempo, a materialidade do código ainda apresentava grandes problemas: o círculo do código era grande, impresso com dificuldade, a tinta derretia e tornava o código de barras ilegível. Georges Laurer, engenheiro da IBM, encontrou a solução ao adotar uma forma retangular, também legível por scanner a laser. O primeiro teste desse novo código de barras ocorreu em Troy, Ohio, em 26 de junho de 1974, e envolveu uma caixa de chiclete. Todos esses testes beneficiaram-se de outra invenção decisiva então em plena expansão: os circuitos impressos, a base de toda a microcomputação. Esses circuitos permitiram imaginar a implantação de sistemas de informática em todas as lojas. No entanto, ainda seria preciso contar com milhões de dólares de investimento em equipamentos de leitura e com um centro de processamento dos dados coletados.

 

O primeiro item marcado com o Código de Produto Universa (UPC, na sigla em inglẽs) foi escaneado num caixa da rede norte-americana de supermercado Marshs (Foto: Outras Palavras)

 


Os fabricantes temiam muito a situação em que cada loja pudesse escolher seu modelo de código. Eles passaram imediatamente a organizar a constituição de um modelo único e sua imposição desde a fábrica para recuperar seus investimentos, mantendo o controle do formato dos códigos. Georges Laurer impôs o padrão UPC (Universal Product Code) para esse fim antes de atualizá-lo para um gencod EAN, dois padrões internacionais ainda em vigor e amplamente usados. Entre 1972 e o final da década de 1980, códigos de barras padronizados impuseram-se a todas as mercadorias do mundo. Esta é uma das características essenciais do sucesso das tecnologias informáticas: a sua padronização, que estrutura as possibilidades de agregação e utilização. A formalização e unicidade do código de barras permitiram sua generalização, assim como o protocolo TCP / IP rege a Internet hoje.

 

O “hall da fama” da logística: N. Woodland, G. Laurer e B. Silver (Foto: Outras Palavras)

 


O código de barras é dupla aposta econômica, na medida em que todas as condições sejam atendidas. Ele acelera todos os caixas e estoques, aumentando a produtividade do trabalho. Sobretudo, ele possibilita a extração automática de informação sobre mercadorias vendidas ou não. Os dados coletados irão, então, induzir e alimentar pesquisas sobre mercados, gostos e preferências dos consumidores. Essas pesquisas serão então usadas para orientar, em troca, as decisões no nível da produção industrial.

 

Inicialmente, os códigos de barras apenas agilizavam o processo de passagem pelo caixa, pois poucos produtos chegavam já etiquetados. Assim que isso foi resolvido, os dados extraídos da leitura do código de barras deram início à gestão de estoques em larga escala. A análise não é mais realizada em cada loja pelos gestores locais, a “mão visível” da economia [7], mas é realocada em bancos de dados de propriedade da gerência. Eles são deslocados de sua localização geográfica para serem processados ​​e analisados ​​comparando os resultados de vários armazenamentos, por hora, dia, local, etc., de forma muito parecida com os volumes de big data atuais. Os gerentes de loja tornam-se simples executores, convocados a se converter em animadores da equipe de funcionários ou a cuidar da “experiência do cliente”. Este processo estendeu-se por vários anos e dependeu, em particular, de que os códigos de barras fossem impressos nos produtos assim que produzidos nas fábricas. Assim que esse objetivo foi atingido, os códigos de barras passam a ser onipresentes.

 

O exemplo do código de barras mostra como a ciência da computação envolve grandes números (a população) e cálculos estatísticos em grande escala para estabelecer comparações, recorrências e modelos. A “inteligênciado tráfego – o equilíbrio entre a distribuição do equipamento material e a centralização do processamento virtual de dados – também foi, desde o início, monopolizada pela administração, assim como hoje alguns gigantes da Internet concentram o tráfego de dados essenciais.

 

 

A introdução do código de barras permitiu às empresas, por exemplo, alterar os preços automaticamente ou aumentar as promoções em grande escala, independentemente das decisões locais. O código de barras também é acompanhado do recibo, que indica o nome dos produtos e o preço pago por cada mercadoria, abrindo a possibilidade de comparações por parte do cliente, antecipadas e tidas em consideração pelo mercado.

 

Inicialmente, e ao contrário do código QR, os dados registrados pelo código de barras não eram individualizados. Eram feitos de forma gradual, sobretudo através do desenvolvimento de cartões de fidelização que permitiam afinar as análises com dados que podiam ser associadas a clientes particulares. Fidelidade, perfis e rastreabilidade pertencem à mesma lógica. Esquematicamente, podemos dizer que na era analógica e em seus caixas registradores mecânicos, os funcionários tinham que adaptar o serviço para satisfazer cada indivíduo. Com o digital e seus caixas automáticos, a personalização alimenta imediatamente a satisfação das massas, seguindo a mesma lógica dos algoritmos do Facebook hoje.

 

O código de barras teve, portanto, um papel decisivo na construção da unidade de um processo, da produção e circulação até a venda das mercadorias. Se tal unidade já existia antes, foi a informatização que garantiu sua legibilidade e a tornou uma fonte de lucro, ao mesmo tempo em que construía uma capacidade incomparável de adaptação e modificação. Um breve passeio pela indústria automobilística, da Ford à Toyota, ilumina outra etapa desse processo. Foi em 1994, em uma subsidiária da Toyota, que o QR-Code foi inventado para fins logísticos.

 

2. Do fordismo à revolução logística

“Todos se esforçam para eliminar
a necessidade de qualificação
em todos os empregos da força de trabalho”
Henry Ford - Minha vida, meu trabalho

 

Poucos industriais tiveram tanto impacto contra o movimento operário quanto Henry Ford e suas fábricas de automóveis. Ford (1863-1947) foi o primeiro a aplicar em larga escala os princípios da “organização científica do trabalho” definidos pelo engenheiro Frederick W. Taylor (1856-1915). Este último dedicou toda a sua vida a redefinir a organização do trabalho, a fim de combater a “vadiagem” dos trabalhadores e neutralizar o controle relativo que o trabalhador profissional ainda tinha sobre o seu trabalho. A organização científica do trabalho foi a contra-insurgência em marcha contra todas as potências operárias. Frederick W. Taylor, que manteve contato direto com Henry Ford, foi o criador do trabalho em linha de montagem como forma de fragmentar e “desespecializar” tarefas, de cronometrar cada ação e assim impor um ritmo devidamente planejado pelos administradores e engenheiros. A “profissão” não foi apenas contornada pela máquina, mas também destruída pela organização da fábrica. Henry Ford, ao aplicar esses princípios, inaugurou a produção e o consumo em massa.

 

Friedrich Taylor e Henry Ford (Foto: Outras Palavras)

 

A aliança entre a fragmentação do trabalho na linha de montagem e a concentração em grandes fábricas promove economias de escala, permitindo que os carros sejam produzidos em grandes quantidades e a preços baixos. Poucos modelos são produzidos por ano, distinguindo-se por alguns detalhes de acordo com a categoria social visada. Ao saírem das fábricas, os carros são encaminhados para as concessionárias, que ficam responsáveis ​​pelo escoamento dos produtos, mesmo que isso signifique estocá-los se as vendas diminuem. No sistema fordista, os produtos são quase idênticos e projetados de acordo com as principais macro-categorias estatísticas (homem, mulher, família de executivos, etc.). Sua distribuição é acompanhada por lógicas de planejamento econômico em larga escala.

 

Taiichi Ohno e as fábricas da Toyota (Foto: Outras Palavras)

 

A crise do petróleo e o declínio do crescimento minaram o compromisso fordista. Politicamente, o longo maio de 1968 infiltra-se nas fábricas da Fiat na Itália e em muitas fábricas ao redor do mundo, incluindo as da Ford em Detroit, e ameaça o domínio sobre o trabalho na linha de montagem [8]. Capitalistas e industriais passam a implementar uma vasta contrainsurgência, parcialmente inventada no Japão, na organização industrial das fábricas da Toyota pelo engenheiro Taiichi Ohno, outro grande mestre da organização científica do trabalho. Ao contrário do modelo fordista, a linha de montagem transforma-se em unidades de pequenas equipes com tarefas distintas, mas flexíveis. O “toyotismo” buscará produzir em séries limitadas produtos diferenciados e variados. A abordagem iniciada por Ohno é baseada na especialização flexível (ou seja, adaptável e modificável) ao invés de grandes economias de escala. Além disso, o controle de qualidade é realizado em todas as partes da máquina e continuamente de uma ponta à outra da cadeia. Seus atores devem estar integrados ao processo, devendo validar cada etapa e ser constantemente monitorados, para que qualquer falha seja localizada, identificada e punida.

 

O coração desse método, seu princípio fundamental, segundo Ohno, é “produzir exatamente o que é necessário e na hora certa” [9]. O método Toyota é a produção com estoque zero: a invenção da produção just in time. No entanto, o estoque zero é apenas um resultado do método, sem ser o objetivo em si. Um excesso de estoque de produtos é para Ohno apenas o sinal de um problema, um erro a ser corrigido em face do qual toda a cadeia deve ser revista, mesmo que isso signifique trocar a mercadoria produzida ao final, de acordo com as novas demandas. Neste sistema, orientado para o “just in time“, a produção industrial e a sua distribuição pressupõem uma coordenação constante das lideranças das empresas até todos os subcontratados, desde os fornecedores no início da cadeia aos revendedores do outro lado. A divisão em pequenas equipes da linha de montagem se traduzirá fora da fábrica no uso de subcontratados submetidos, assim como os trabalhadores da Toyota, à mesma pressão por qualidade e resposta rápida aos pedidos. A organização do trabalho confere a si mesma a capacidade de se adaptar às flutuações dos mercados econômicos e às suas incertezas. A pressão no trabalho, como evidenciado, por exemplo, pelo livro Toyota, a fábrica do desespero [10] (em tradução livre) de Kamata Satoshi, ainda é grande, mas esses princípios básicos de operação mudaram.

 

 

A mudança total nas fábricas da Toyota foi resultado de uma transformação que ultrapassou os muros da fábrica, assim como a informática transborda os computadores e suas telas. A mudança também é um exemplo da aplicação da lógica de feedback cibernético. Quando a venda de um produto, na prateleira de um supermercado, determina sua fabricação na indústria, a informação que sai do processo é inicialmente reintroduzida para seguir a mesma trajetória enquanto a modifica. A adaptabilidade permanente de todo o processo funciona nesta base. Na Toyota e em outros lugares, todo o comércio capitalista está adquirindo novos métodos que dependem das possibilidades de cálculo do computador. O historiador James Beniger mostra, em The Control Revolution [11], que a maioria das grandes tecnologias inventadas no século 19 (o telefone, a ferrovia, o rádio, a publicidade, etc.) buscavam responder a uma crise de controle sobre o fluxo de informações. Na mesma perspectiva, a informática diz respeito a todas as atividades que transportam ou suportam informações. Ela coloniza gradativamente “todos os macrossistemas técnicos, baseados na rede e na logística (controle de frotas e fluxos aéreos, terrestres, marítimos [12])”. Com isso, a informatização assume uma certa forma e transforma a organização que a sustenta. Lógica técnica e social se misturam [13].

 

O porto de Singapura (Foto: Outras Palavras)

 

Assim como o código de barras inventado em 1952, o sistema Toyota levou quase 20 anos para ser aplicado no Japão, diante da resistência dos trabalhadores e do tempo necessário para expandir os recursos de TI para sua implementação. Ele marcou um ponto de inflexão em que a logística passou a ocupar um papel central, nos anos 1980-1990. Jasper Bernes, do coletivo End Notes, refere-se à logística como um projeto de “mapeamento cognitivo” do capital, um meio de tornar tangíveis as cadeias de suprimentos transnacionais, cada vez mais complexas e abstratas. Paralelamente à financeirização dos lucros, novas formas de modelar dados e de visualizar circuitos de distribuição tornam as circulações – cada vez mais numerosas e difíceis de seguir – perceptíveis e, portanto, modificáveis. Inicialmente uma simples ferramenta, a logística tornou-se uma ciência em si [14].

 

As atuais cadeias de abastecimento capitalistas não se caracterizam apenas por sua extensão global e pela incrível velocidade de movimentação de mercadorias, mas também pela integração direta que realizam de espaços de fabricação e locais de venda, por sua harmonização de ritmos de produção e consumo em um único processo. A centralidade e a rapidez da logística tornam indistinguível a fronteira entre produção e distribuição, entre a fabricação da mercadoria e sua circulação. Desde a década de 1980, gerentes e especialistas em negócios globais elogiam os benefícios da flexibilidade e da gestão “enxuta” nas fábricas (gestão enxuta ou “lean”). Por meio de uma coordenação cada vez mais refinada, as empresas podem reverter a relação comprador / vendedor, na qual os bens são primeiro produzidos e depois vendidos, por meio de um intermediário, a um consumidor. Ao entregar a mercadoria no momento exato da venda, sem perder tempo de armazenamento, a lógica just in time procura produzir esse efeito, segundo o qual os produtos só são produzidos quando já foram vendidos. A chave para o sucesso de gigantes do varejo como o Wal-Mart, por exemplo, é sua capacidade de estimar e calcular em qual momento tais e tais mercadorias devem estar nas prateleiras para serem vendidas.

 

Essas informações permitem que o Wal-Mart limite a superprodução, como movimentação desnecessária de estoque, corte as relações com subcontratados assim que necessário ou faça contratos constantes em momentos de alta. Como Jasper Bernes (cuja análise retomamos aqui na maior parte) sublinha: “enquanto no início da década de 1980 algumas pessoas colocavam a ênfase na flexibilidade e no dinamismo, na esperança de mudar a relação de força contra as grandes e inflexíveis multinacionais para empresas de pequeno porte, as “firmas ágeis” e a gestão enxuta acabaram sendo uma mudança de fase, e não um enfraquecimento dessas grandes multinacionais. Este novo arranjo assemelha-se ao que Bennett Harrison chama de “uma concentração sem centralização” do poder das corporações econômicas ” [15]. A logística, portanto, designa este poder ativo e mobilizável de coordenar e coreografar o fluxo de mercadorias, para mantê-lo ou cortá-lo, acelerá-lo ou retardá-lo enquanto se é capaz de alterar a origem e o destino de mercadorias mais ou menos imediatamente (a crise do COVID no início de 2020 mostrou que isso pode exigir alguns meses de ajuste). A circulação não substitui a produção, mas a integração dos cálculos logísticos de uma ponta a outra da cadeia até o consumidor constrói sua fusão. A gestão e o controle dos fluxos tornaram-se uma fonte central de poder e controle.

 

3. QR code, chips RFID e as infraestruturas móveis da identificação e da circulação

 

Foto: Outras Palavras

 


Como essa história relaciona-se com o código QR? De forma simples, todo este ponto de inflexão logístico assenta na extensão e dispersão do cálculo informático, que permite acompanhar em tempo real a localização da mercadoria, os prazos de entrega, todos os fluxos – ou seja, um conjunto de operações impossíveis de alcançar e centralizar sem o poder dos computadores. Em consonância com a produção fordista, o código de barras identifica o modelo dos objetos (um modelo de camiseta, mas não sua singularidade (esta camiseta em particular, esta cópia específica). O rastreamento cada vez mais específico das mercadorias requer mais informações do que o código de barras pode conter. Foi nesta perspectiva que uma subsidiária da Toyota, a Denso Wave, dedicou-se ao problema e em 1994 inventou o QR-Code para seguir o percurso das peças desmontadas dentro das fábricas [16]. Ao contrário do código de barras clássico, este código bidimensional pode ser lido rapidamente e de qualquer ângulo de leitura. Os três ou quatro quadrados pretos nos cantos são usados ​​para reconstruir o ângulo de leitura e as informações a serem extraídas do código. A informação é parcialmente repetida lá, de forma que até 15% ou mesmo 30% do código às vezes pode estar deteriorado sem impedir a leitura.

 

Esquema de funcionamento dos QR-Codes (Foto: Outras Palavras)

 

As principais vantagens do código QR em comparação com o código de barras são a quantidade de informações que ele pode conter e sua capacidade de identificar cada produto de maneira única. Na fábrica automotiva, isso permite o rastreamento preciso das peças que chegam e também permite controlar sua qualidade na chegada ou durante todo o processo, em caso de dano ou sabotagem. Além da Toyota, na década de 1990, a crise da saúde da vaca louca desencadeou grandes reorganizações na indústria de alimentos. Diante das ameaças de carne contaminada e de órgãos reguladores internacionais, que exigem maior rastreabilidade de cada pedaço de vaca colocado à venda, o código QR consolidou-se como uma ferramenta essencial para identificar e memorizar a trajetória de cada mercadoria em particular. O código de barras e o código QR são duas tecnologias móveis, duas mediações para a identidade virtual de um objeto armazenado em um banco de dados. A rigor, o QR-Code sozinho não contém nada sem um leitor externo (com fonte de alimentação própria) e acesso conectado ao banco de dados correspondente. Por exemplo, um passe de saúde europeu não será necessariamente válido na Inglaterra ou no Canadá, se não fizer referência ao banco de dados correspondente. E, da mesma forma, se não se referir a uma foto de uma pessoa, a identidade do portador pode variar.

 

O QR-Code mostra que hoje as tecnologias de comunicação móvel operam com base em tecnologias de identificação. Para as mercadorias, o código QR é usado para identificá-las em qualquer momento, a fim de possibilitar certos movimentos e certas ações. Os chips RFID (Radio Frequency Identification) são semelhantes em muitos aspectos aos códigos QR, exceto que esses chips não usam leitores, mas ondas de rádio. Isso possibilita a leitura do conteúdo de vários chips ao mesmo tempo, como no invólucro de um caixa automático na Decathlon ou na escala de um contêiner portuário (a rede 5G em implantação deve ampliar esse tipo de possibilidade). Em 2017, havia aproximadamente 8,7 bilhões de chips RFID em circulação [17]. Enquanto os aplicativos de smartphones alcançam milhões de usuários, o uso de chips RFID atingiu dezenas de bilhões (do transporte à medição do nível de etanol nos alimentos). Em particular, esses chips são amplamente utilizados em cada palett de mercadorias para identificar seu conteúdo durante o transporte, às vezes com mais chips nos próprios objetos. Eles transformam os processos físicos de viagem em trajetórias que podem ser colocadas em dados (como as viagens do titular de um passe do navigo, o – cartão de transporte parisiense), dificultando a separação entre o real e o virtual. Como os códigos QR, os chips RFID (exceto alguns modelos usados ​​com pouca frequência) não têm fontes de energia internas, mas dependem de outros dispositivos para serem lidos.

 

Hoje, custam quase nada para produzir e participar desse “inconsciente tecnológico” que constrói nosso mundo [18]. Os códigos QR e chips RFID são elementos centrais da “internet das coisas” ou da computação onipresente hoje. Essas tecnologias não se comunicam diretamente com a Internet, mas por meio do ambiente construído em torno delas, ele próprio criado para fazê-las funcionar. Os fluxos logísticos são hoje a principal área de implantação dessas tecnologias. A história de sua implementação mostra que a circulação e o conhecimento, por meio de dados, dessas correntes de movimento são igualmente importantes. O gigante da logística global de hoje, a Amazon, é, por meio de sua estrutura AWS [19], um fornecedor de serviços informáticos, via cloud, que é, a priori, sua principal fonte de lucros. E, para garantir a sua hegemonia, é também a infraestrutura das circulações e dos serviços de tratamento dos dados que essas circulações produzem.

 

Se é possível desviar códigos QR ou gerá-los para outros fins [20], essa capacidade pouco conta em si mesma, diante da lógica do processamento de dados e sua forma de identificar para autorizar, ou não, a circulação de pessoas e coisas. A história contada aqui expõe a face industrial que cerca cada inovação de TI. Por exemplo, uma promessa recorrente do mundo smart apresenta geladeiras conectadas, capazes de alertar seus proprietários sobre o fim das garrafas de coca-cola ou até mesmo de encomendá-las. Essa promessa será apenas um gadget divertido, até que os chips RFID sejam instalados de fábrica em todas as latas, e que sistemas de banco de dados interoperáveis ​​sejam estabelecidos (e cobrados do cliente), desde a geladeira até o pessoal de entrega. Estudos de caso mais específicos sobre esse tema ainda virão, para testar os contornos desenvolvidos aqui e para entender mais precisamente como a implantação da tecnologia da informação é realizada hoje.

 

 

 

Referências

 

[1] Ver aqui. O termo “metaverso” vem do romance de ficção científica The virtual samurai, de Neal Stephenson, e designa uma combinação constante de elementos virtuais e reais, que o Facebook quer instalar como bases da socialidade. Ele passaria, assim, de rede social a fábrica do conjunto das mediações sociais. Esta perspectiva merece um exame mais aprofundado.

[2] Ler, sobre este tema, texto publicado (em francês) em Lundi Matin. Disponível aqui.

[3] A partir de Susan Leigh-Star e G. Bowker, o estudo crítico e político das infraestruturas alcançou grande amplitude nos últimos anos. Ver, por exemplo, aqui.

[4] A história é contada em detalhes aqui

[5] Para retomar a noção de G. Simondon, Du mode d’existence des objets techniques, Aubier, 2012.

[6] Ler, para uma rápida introdução, aqui

[7] A expressão é o título da obra de Alfred Chandler, economista destacado nos EUA à época.

[8] Estas entrevistas com Oreste Scalzone permitem saber algo mais a respeito. 

[9] Ohno, Taiichi, l’esprit Toyota, Masson, Paris, 1989.

[10] Publicado, em francês, nas “edições operárias”, em 1976 e disponível aqui.

[11] Beniger, James R, The Control Revolution: Technological and Economic Origins of the Information Society, Harvard University Press, 2009.

[12] Robert, Pascal, L’impensé informatique: critique du mode d’existence idéologique des technologies de l’information et de la communication, Éditions des Archives contemporaines, 2012.

[13] Sobre as relações entre taylorismo, toyotismo e as máquinas de cálculo, é possível encontrar diversos paralelos aqui:: J.-S. Vayre, ‪« L’intelligence des machines et l’esprit du capitalisme »‬, Communication, disponível aqui. ‬

[14] Este artigo introduz os recentes estudos sobre a logística: Brennan, Eugene. « Mapping Logistical Capitalism », Theory, Culture & Society 38, no 4 (juillet 2021).

[15] Ver J. Bernes, ibid.

[16] Em 1999, Denso Wave patenteia o QR-Code, mas o mantém em regime de acesso livre.

[17] Frith, Jordan. A Billion Little Pieces : RFID and Infrastructures of Identification. The MIT Press, 2019.

[18] Frith, ibid.

[19] Ver aqui

[20] Como propõe o codificador de Échelle Inconnue aqui.  

 

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