05 Outubro 2021
A derrota do peronismo e da coalizão Frente de Todos nas primárias argentinas de setembro passado ainda ressoa nos movimentos que integram o grupo governista. Esta foi a primeira vez que os candidatos do peronismo, praticamente em toda a Argentina, foram derrotados por mais de 10 pontos de diferença nas urnas.
Para Manuel Bertoldi, integrante da Frente Pátria Grande, e ex-candidato ao governo da capital Buenos Aires em 2015, os problemas internos da coalizão que dá sustentação ao presidente Alberto Fernández, se refletiram nos resultados eleitorais deste ano.
A tentativa de alterar o cenário terá remédios amargos para o governo: “Será preciso tomar algumas decisões que, para nós, vão contra certos interesses do poder econômico concentrado, dos credores externos do Fundo Monetário Internacional, e é preciso satisfazer as necessidades e a demanda do nosso povo”.
Bertoldi é o convidado desta semana no BDF Entrevista e na conversa revela como a Casa Rosada tem se mantido fechada para os movimentos populares.
“Nós insistimos que existe uma aversão, dentro do sistema político, aos setores populares, aos negros, aos que vêm pelejando de baixo para cima. Nós promovemos esses tipos de candidaturas, mas existe uma forte resistência dentro do sistema político”, diz.
“E, hoje, a maioria dos funcionários públicos não vêm de uma militância popular. Não viveram e sentiram as injustiças e faltas do nosso povo. Para nós, isso é limitante na hora de formular políticas públicas”.
O cenário argentino, conta Bertoldi, se assemelha ao que vive o Brasil desde as eleições de 2018, quando a maioria da população optou pelo candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro (sem partido).
“Precisamos entender que esses 14%, 15% ou 20% que votaram no liberalismo, não fizeram isso porque apoiam ou acreditam ideologicamente em uma doutrina liberal, e sim porque existe um voto motivado pela raiva, pela insatisfação com o sistema político”.
“Nessas eleições, deveríamos ter tido alguém que, a partir de seu lugar de candidato, falasse das coisas que, efetivamente, estavam sendo mal feitas e das coisas que ainda faltam ser feitas, com empatia pelas centenas de milhares de pessoas que estão com raiva por causa da situação atual, por causa do aumento da pobreza, por causa da falta de emprego, porque a comida fica mais cara todos os meses”.
A entrevista com Manuel Bertoldi é de Michele de Mello e José Eduardo Bernardes, publicada por Brasil de Fato, 04-10-2021.
Manuel, gostaria de começar esta conversa falando sobre a prévia das eleições que vocês tiveram recentemente. A vice-presidenta, Cristina Kirchner, publicou uma carta com uma série de críticas ao presidente Alberto Fernández, propondo uma reforma ministerial que acabou sendo aceita por ele. Está surgindo novamente a cisão no peronismo, que já tinha sido expressa no passado, antes das eleições?
É claro que a carta da Cristina deu uma balançada na coalizão de governo, mas foi consequência, basicamente, da derrota eleitoral na prévia das eleições, que foi uma derrota histórica porque, pela primeira vez, todo o peronismo unido perdeu por mais de 10 pontos em escala nacional.
Naturalmente, isso gerou tensões dentro da coalizão e, principalmente, uma revisão de por que, dois anos depois da vitória contra o Macri nas eleições de 2019, por que desta vez perdemos de forma tão contundente?
Uma das questões levantadas por nós e muito levantada pela pessoa que hoje é a referência, a líder de um amplo setor político, que é a Frente de Todos, é que é preciso fazer mudanças dentro do ministério.
Mas o que está sendo definido agora é quais políticas serão implementadas não apenas para mudar o resultado das eleições de novembro, mas principalmente para reverter, nos próximos anos, a difícil situação socioeconômica atual do nosso país.
Será preciso tomar algumas decisões que, para nós, vão contra certos interesses do poder econômico concentrado, dos credores externos do Fundo Monetário Internacional, e é preciso satisfazer as necessidades e a demanda do nosso povo. É mais ou menos esse o debate que está ocorrendo na Argentina.
Hoje, fala-se de um "portenhocentrismo" no governo argentino, que não conhece os problemas reais da população. O que você acha? O governo se fechou na burocracia e assimilou uma agenda reformista?
Existem vários fatores. O primeiro tem a ver com a construção histórica do nosso país, que é um país unitário. Por exemplo, existe um ditado na Argentina que diz: "Deus está em todos os lugares, mas atende em Buenos Aires". É claro que a gravitação política da Capital Federal faz com que as principais referências do governo argentino hoje tenham origem na capital federal ou em seus arredores.
Esse é um fator de índole mais histórica. Existe também um componente de classe, que nós viemos apontando, no sentido de que o sistema político é reativo a determinadas classes sociais. Nós insistimos que existe uma aversão, dentro do sistema político, aos setores populares, aos negros, aos que vêm pelejando de baixo para cima. Nós promovemos esses tipos de candidaturas, mas existe uma forte resistência dentro do sistema político.
E, hoje, a maioria dos funcionários públicos não vêm de uma militância popular. Não viveram e sentiram as injustiças e faltas do nosso povo. Para nós, isso é limitante na hora de formular políticas públicas.
E também existe um fator estrutural do Estado liberal em que nós vivemos, que tem a ver com o fato de que há muito incentivo ao carreirismo pessoal dentro da democracia liberal burguesa. E, é claro, todas as engrenagens desse Estado liberal burguês fazem com que as pessoas que se inserem nessas instituições comecem a adotar uma lógica que tem a ver com fazer carreira dentro do Estado.
Essas três questões estão na pauta mais de médio prazo, de caráter estratégico, que, a nosso ver, a Frente de Todos também tem que começar a discutir e aprofundar, né?
Também vimos, nestas eleições argentinas, o incremento de votos de personagens de ultradireita. Muitos votos foram para representantes do neoliberalismo, como o partido do Macri. O que a população quer dizer com essa reação? Também vi comentários dizendo que há preocupações sobre como o governo vai reagir a isso, se o acordo com o FMI vai ser retirado da agenda econômica ou se o país vai ceder ao liberalismo. O que você acha?
Tem várias coisas aí, não? Uma primeira questão é que, naturalmente, é preocupante a escolha feita por alguns setores do chamado liberalismo, principalmente na capital federal, porque nós entendemos que não é um fenômeno isolado. Tem a ver com um fenômeno regional e mundial.
Vemos isso na Europa, mas também no nosso país irmão, o Brasil. Há um discurso muito similar ao do Bolsonaro. Mas também precisamos entender que esses 14%, 15% ou 20% que votaram no liberalismo, não fizeram isso porque apoiam ou acreditam ideologicamente em uma doutrina liberal, e sim porque existe um voto motivado pela raiva, pela insatisfação com o sistema político.
E nós, como coalizão e frente oficialista, não conseguimos empatizar com essa insatisfação que as pessoas sentem. Nessas eleições, deveríamos ter tido alguém que, a partir de seu lugar de candidato, falasse das coisas que, efetivamente, estavam sendo mal feitas e das coisas que ainda faltam ser feitas, com empatia pelas centenas de milhares de pessoas que estão com raiva por causa da situação atual, por causa do aumento da pobreza, por causa da falta de emprego, porque a comida fica mais cara todos os meses.
E essa insatisfação é um dos nossos pontos fracos que não conseguimos canalizar em um projeto de transformação nacional e popular, mas que foi canalizada por esses setores, que fazem barulho e manifestam raiva, e com os quais deveríamos poder empatizar mais.
E para empatizar mais, por exemplo, uma discussão que consideramos fundamental e que a Frente de Todos precisa assumir com firmeza é essa que você mencionou: se realmente vamos ser firmes com as exigências do Fundo Monetário Internacional e priorizar a agenda dos setores populares e das grandes maiorias populares.
É necessário que o Estado assuma políticas redistributivas urgentes e, ao mesmo tempo, estratégicas, que busquem melhorar a qualidade de vida e o bem-estar de centenas, milhares, milhões de pessoas.
Essa é uma discussão que está acontecendo em vista das eleições de novembro, mas que precisamos aprofundar pensando em 2023 e além.
Em toda a região, estamos vivendo uma nova onda de desregulamentação do trabalho. Aliás, não só na região, mas no mundo todo, com o aumento da informalidade, com o surgimento das plataformas de aplicativos e com uma série de medidas que aumentam a terceirização do trabalho, algo que, além de tolher os direitos, também representa um desafio para o sindicalismo como tal. A Argentina é um dos países da região que tem mais tradição sindical. Quais opções existem para organizar os trabalhadores desses "novos setores"?
É um desafio, não? Como você disse, existe uma tendência que é um aspecto estrutural do mundo em que vivemos hoje, que é que o capitalismo como sistema hegemônico tende a excluir a classe trabalhadora cada vez mais do mercado formal de trabalho.
Nesse contexto, nosso povo tem encontrado vias de resistência e subsistência, construindo suas próprias formas de trabalho. É claro que, nessa construção de uma forma própria de trabalho, o capitalismo, com sua capacidade acelerada de se readaptar, começou a construir novas plataformas que legitimam essa precarização do trabalho, principalmente a partir das novas redes de comunicação.
Mas, pelo menos na Argentina, e acreditamos que em toda a região, a maior questão atualmente é que grandes parcelas de trabalhadores estão ficando fora dos mercados formais de trabalho.
Estima-se que, na Argentina, 30 a 35% da classe trabalhadora esteja trabalhando atualmente na informalidade. E nós demos início a um processo, vários anos atrás, de traduzir essa situação na construção de uma perspectiva. Chamamos isso de "economia popular", porque entendemos que todos esses trabalhadores e trabalhadoras que levam sua vida cotidiana na informalidade estão, de fato, desenvolvendo um trabalho.
Os vendedores ambulantes, os catadores de papel, até mesmo os pequenos agricultores que também estão na informalidade, as cooperativas de muitos serviços que são prestados de forma espontânea...E foi criado um sindicato na Argentina, chamado União de Trabalhadores da Economia Popular (UTEP), que hoje é um dos sindicatos com maior capacidade de mobilização no nosso país e que acreditamos que pode lançar luz sobre outras experiências no nosso continente, sem procurar modelos nem cópias, como dizia Mariátegui, porque cada país tem suas próprias realidades, sua própria cultura, sua própria história, mas entendemos que é um desafio para as forças populares, para os projetos revolucionários liberadores, fazer esforço para organizar os trabalhadores informais e, particularmente, a juventude e as mulheres, que são as grandes protagonistas nesse mundo da economia popular.
A América Latina parece estar novamente diante de uma disjuntiva. Por um lado, o crescimento da extrema-direita, como vocês comentaram no início da entrevista, e, pelo outro, o progressismo, embora chegue ao poder, enfrenta muita dificuldade para governar. Como os movimentos populares e a classe trabalhadora, com suas diferentes formas de organização, podem fazer a diferença nessa equação?
Bom, para nós, é fundamental a organização do povo, o movimento popular organizado, para avançar em correlações de força em projetos liberadores, emancipadores. Como disse, aí existe um desafio de engajar e organizar a juventude. Aqui, o fenômeno do liberalismo sensibilizou principalmente jovens que não veem um futuro tangível, no curto ou médio prazo, para desenvolverem sua vida.
Então, um cara que aparece na televisão com raiva, xingando todo mundo, gera mais identificação que um projeto que propõe questões que não resolvem essa falta de perspectiva de futuro.
Aí existe um desafio para os movimentos populares, que é se organizarem, mas passando da resistência à construção de um projeto, de um futuro. Pensando na economia popular, a UTEP propõe a agenda de terra, teto e trabalho, como reivindicações concretas para satisfazer as demandas populares. Sabemos que um projeto de país não acaba nessas reivindicações.
É preciso pensar em questões que têm a ver, por exemplo, com o meio ambiente, que é uma agenda que a juventude assumiu com força. E, muitas vezes, os projetos nacionais e populares, os projetos com foco no desenvolvimento, deixam de lado a questão ambiental.
E os jovens, inclusive a partir de uma lógica de sobrevivência, estão raciocinando que, com esse ritmo de vida e com as condições atuais do mundo, não haverá planeta para as próximas gerações. Então, é preciso combinar uma série de elementos que permita que um projeto seja tangível e, principalmente, atraente para as grandes maiorias populares. E, para pensar nisso, a organização popular é um pilar fundamental e imprescindível.
Vejo que a Assembleia Internacional dos Povos (AIP) é uma iniciativa que tem esse propósito. Não é uma internacional de partidos comunistas, e sim dos povos, dos movimentos populares. Gostaria que comentasse um pouco mais sobre os objetivos da AIP.
Como você disse, a Assembleia Internacional dos Povos está em construção há alguns anos. É um processo muito complexo, mas também muito rico e interessante, porque reúne movimentos populares de diferentes regiões e continentes, que, por causa desse nosso ponto fraco estratégico, muitos deles não se conheciam. Não conhecemos as realidades de muitos dos povos que estão resistindo.
Por isso, essa construção é muito complexa, mas também muito rica. Além disso, é estratégico porque, se realmente queremos propor um projeto como o que mencionamos, necessariamente tem que ser um projeto internacional, porque o capitalismo e os setores do poder econômico concentrado têm uma estratégia internacional para o mundo inteiro, e nós, os povos, também temos que construir uma.
Estamos em um momento muito particular em termos históricos porque a pandemia gerou...trouxe à tona contradições que já vínhamos percebendo e analisando, mas que hoje estão à vista das grandes maiorias populares. E o que está sendo discutido é: qual é a saída diante da situação gerada pela pandemia?
Nesse sentido, os movimentos vêm construindo uma série de reflexões e propostas que têm a ver com algo que mencionamos no início da entrevista, que são as decisões políticas que precisam ser tomadas pelos nossos governantes e exigidas pelos nossos povos para que as grandes maiorias populares possam viver com dignidade.
Isso tem a ver com o acesso à saúde, educação, condições dignas de trabalho, salários dignos, o respeito pela Mãe Terra, pela natureza, colocar as nossas vidas acima do lucro, já que hoje, infelizmente, o mundo está de cabeça para baixo, como dizia Eduardo Galeano. O lucro é o que decide o curso das nossas vidas, e centenas de milhões de pessoas estão em situação de pobreza extrema.
Manuel, você conhece a América Latina, os movimentos populares, as lutas locais. Como você vê o momento atual da América Latina? Existe uma busca pelo progressismo e em muitos países, já foi alcançado. O Peru e o Chile passaram por um momento muito especial. O peronismo voltou na Argentina. Na Colômbia, a juventude foi às ruas com muita vontade de mudança.
Fazendo paralelismo com uma partida de futebol, o jogo está em andamento. Começamos ganhando o primeiro tempo no início do século 21, mas fomos para o intervalo, e viraram o jogo no segundo tempo.
E ainda estamos jogando esse segundo tempo. Temos que ver o que vai acontecer. É claro que tivemos algumas conquistas importantes, como a recuperação do governo na Bolívia, a vitória no Peru, embora, como você disse, Pedro Castillo esteja sofrendo com a oposição por parte do poder econômico concentrado e dos setores de direita, que dificultam bastante a jogada para que ele possa governar o país e, principalmente, construir políticas que beneficiem o povo peruano.
Mas o interessante é que o processo de mobilização popular continua acontecendo. Nas últimas semanas, vimos como o povo brasileiro foi às ruas no Brasil, e também houve grandes mobilizações no Paraguai e em toda a zona andina, como a Colômbia e o Chile.
Para mim, essas mobilizações têm que assumir o desafio de defender propostas cada vez mais radicais e disruptivas, porque a agenda da disrupção não pode ser assumida pela direita, e sim por nós, através dos movimentos populares. Acho que existe uma grande fraqueza no continente, que não existia naquele primeiro tempo, que é a falta de uma liderança clara. Naquele momento, tínhamos Fidel, Chávez, Néstor, Cristina… Aqui, por exemplo, a Cristina foi fundamental nesse balanço curto que fizemos da prévia das eleições.
Mas faltam figuras fortes na região que definam a agenda. Os processos que hoje podemos chamar de progressistas ou populares são um pouco mais brandos que os da década passada.
Manuel, você comentou sobre a importância de a agenda eleitoral andar de mãos dadas com a agenda de mobilização, dos movimentos populares, da classe trabalhadora. Você já foi pré-candidato à prefeitura de Buenos Aires em 2015. Você pensa em ser pré-candidato novamente? Como você vê essa relação sua, também como um dirigente popular, com a via eleitoral?
Não. Como disse antes, nós, da Frente Pátria Grande, estamos tentando construir uma linha política em que os companheiros e companheiras que são protagonistas das construções de base, que estão lutando e resistindo dia após dia em seus diferentes territórios e locais de trabalho, assumam a representação e, principalmente, as discussões e a agenda, que têm a ver com resolver o problema das grandes maiorias populares.
Por isso, nestas últimas eleições, falando pela Frente Pátria Grande, primeiro, todas as nossas candidatas eram mulheres, porque entendemos que o movimento feminista foi e é vanguarda em termos da luta contra o neoliberalismo do governo passado, mas também em termos da conquista de direitos.
Em segundo lugar, são companheiras que vieram das nossas construções nos locais de trabalho. Por exemplo, uma das nossas candidatas a deputada federal pela Província de Buenos Aires é catadora de papel de Villa Fiorito.
Também há outra companheira que é horticultora, pequena produtora, do cinturão hortícola de La Plata, a Elsa Yanaje. Uma companheira pertence à comunidade LGBTQI e é candidata a deputada federal. Para nós, é mais ou menos esse o desafio.
Em particular, a Frente Pátria Grande também está trabalhando muito com a agenda internacional, porque um dos grandes desafios que temos pela frente é, justamente, consolidar uma estratégia que transcenda as fronteiras nacionais e nos dê perspectiva para avançar em uma estratégia internacional com diferentes movimentos e organizações políticas.
E também estamos dedicando muito esforço à tarefa de construir principalmente uma estratégia internacional, de superar o evento, já que, muitas vezes, os movimentos populares, com sua falta de perspectiva estratégica, de projeto, acaba caindo em um turismo militante, de fazer um evento pelo evento em si, e não pela construção efetiva de uma estratégia.
E também estamos colocando muita ênfase na formação política, na pesquisa estratégica e em como abordar a estratégia comunicacional. A disputa comunicacional é uma partida que está difícil de ganhar.
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Sistema político argentino tem aversão às classes populares, diz Manuel Bertoldi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU