05 Outubro 2021
“Para justificar a rejeição à Fratelli Tutti, alguns supostos pensadores católicos afirmaram que este chamado ao amor universal é 'new age', ou que renega a metafísica, ou que corresponde a 'Nova Ordem Mundial', ou que é impossível um amor universal porque somente há fraternidade entre os batizados, e outros argumentos que fariam retroceder o Magistério católico a pelo menos 600 anos atrás. Porém, ainda que esta encíclica seja um exercício de diálogo com os não-crentes, Francisco encarregou-se de explicar que a proposta não é de modo algum light ou carente de fundamentos sólidos”, escreve Víctor Manuel Fernández, arcebispo de La Plata, Argentina, em artigo publicado por Religión Digital, 04-10-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Estamos em uma espécie de “guerra fria”, fortemente ideológica, que se traslada à luta política dos distintos países. A guerra é feita na imprensa e, sobretudo, nas redes sociais, onde não falta uma boa cota de trolls e influencers. O paradoxal é que nela os próprios católicos intervém apaixonadamente, com uma espécie de obsessão por ridicularizar e calar o seu próprio Papa.
O tempo que passamos nessa pandemia está mostrando sequelas importantes na psicologia das pessoas e no estilo de vida. Longe de pensar na humanidade como família, alguns poucos países acumularam e ainda descartaram vacinas, enquanto muitos outros sobrevivem com uma escassa porcentagem de vacinados, de maneira que ficam múltiplos focos ativos que são resultado do cultivo de novas variantes do vírus. O “salve-se quem puder”, irracional e suicida, ganhou do “ninguém se salva sozinho”. O grande sonho “pós-pandemia” parece ser unicamente o de se lançar em uma descontrolada corrida de consumo e viagens. Ademais, cresceram os movimentos radicalizados e uma renovada fobia a pobres e estrangeiros, como se fossem os culpados dos grandes problemas dos povos.
Neste contexto, Fratelli Tutti cai como uma bomba contracultural, como uma insolência irracional e molesta. Porque seu convite para reconhecer o valor inalienável de cada pessoa humana e seu chamado a um amor universal que abrigue os últimos, está longe de um romanticismo sem consequências. Implica, por exemplo, em uma defesa dos migrantes, pois é inaceitável “que o lugar de nascimento ou de residência determine por si menores possibilidades de vida digna e de desenvolvimento” (121), já que “se na realidade o mundo é de todos, não importa se alguém nasceu aqui ou fora dos limites do próprio país” (125) e “cada país é ainda assim do estrangeiro” (124).
Também inclui inevitavelmente a rejeição da pena da morte e de uma justiça vingativa, propõe uma concepção diferente da vocação empresarial e de tantas outras questões às mentalidades inclinadas ao individualismo liberal com seus dogmas. Por outro lado, a abordagem de fundo não é mais que o da Doutrina Social da Igreja, que mana das mais profundas convicções do Evangelho. Por acaso poderíamos dizer outra coisa para nos adaptarmos ao que parece politicamente correto?
O problema é que esta megatendência individualista afetou ainda a mentalidade de muitos católicos, que terminam vendo o Papa como um inimigo que se opõe às próprias convicções políticas. Assim, adverte-se que a paixão política pode mais que a paixão pelo Evangelho. Já é muito difícil colocar uma frase no próprio Facebook sobre a compaixão, a generosidade, a defesa dos mais fracos, e mais ainda se esta for acompanhada de uma citação do Papa Francisco, sem que apareçam alguns católicos enfurecidos gritando em caixa alta: “Populistas! Irracionais! Comunistas! Tontos!”.
Até onde pode chegar esse fanatismo disfarçado de “doutrina correta”? De fato, já chegou a seu clímax. Quero dar um exemplo contundente para mostrar até que ponto esta violência avançada nos fez uma lavagem cerebral e nos tornou obsessivos.
Tempos atrás, num domingo (Domingo XXVI do Tempo Ordinário), muitos padres omitiram ou substituíram a segunda leitura. Por quê? Porque poderia ofender muitas pessoas e ser interpretada politicamente. Tratava-se de Tiago 5, 1-6, que diz coisas como esta: “E agora vocês, ricos: comecem a chorar e gritar por causa das desgraças que estão para cair sobre vocês. Suas riquezas estão podres, suas roupas foram roídas pela traça; o ouro e a prata de vocês estão enferrujados; e a ferrugem deles será testemunha contra vocês, e como fogo lhes devorará a carne. Vocês amontoaram tesouros para o fim dos tempos. Vejam o salário dos trabalhadores que fizeram a colheita nos campos de vocês: retido por vocês, esse salário clama, e os protestos dos cortadores chegaram aos ouvidos do Senhor dos exércitos. Vocês tiveram na terra uma vida de conforto e luxo; vocês estão ficando gordos para o dia da matança! Vocês condenaram e mataram o justo, e ele não conseguiu defender-se”.
Claro, ler um texto assim na Missa, por mais que o explicássemos, poderia confirmar que a Igreja protege os populistas ociosos que pretendem viver do Estado sem trabalhar, ou que não valoriza o esforço dos empreendedores, etc.
Qual foi a reação a presença deste texto no Lecionário? Que se fez todo o possível para esconder a Palavra de Deus, para silenciá-la, para dissimular seu sentido direto e preciso, ou diretamente se optou por substituí-la.
Não deveria chamar a atenção então que se tenha feito o mesmo com a Fratelli Tutti, ainda dentro da própria Igreja. Bem disse Francisco que “trata-se de outra lógica” (127). É um chamado profético irritante que brota do Evangelho e que nos submerge em uma lógica que o mundo não pode tolerar.
Para justificar a rejeição à Fratelli Tutti, alguns supostos pensadores católicos afirmaram que este chamado ao amor universal é “new age”, ou que renega a metafísica, ou que corresponde a “Nova Ordem Mundial”, ou que é impossível um amor universal porque somente há fraternidade entre os batizados, e outros argumentos que fariam retroceder o Magistério católico a pelo menos 600 anos atrás. Porém, ainda que esta encíclica seja um exercício de diálogo com os não-crentes, Francisco encarregou-se de explicar que a proposta não é de modo algum light ou carente de fundamentos sólidos.
Por exemplo, para evitar entendê-la como uma defesa da dignidade humana sem sustentação metafísica, afirma-se o seguinte: “Se devemos em qualquer situação respeitar a dignidade dos outros, isto significa que esta não é uma invenção nem uma suposição nossa, mas que existe realmente neles um valor superior às coisas materiais e independente das circunstâncias e exige um tratamento distinto. Que todo o ser humano possui uma dignidade inalienável é uma verdade que corresponde à natureza humana, independentemente de qualquer transformação cultural” (213).
Ou para evitar cair no universalismo superficial e ideologizado de alguns movimentos mundiais explica: “Tampouco estou propondo um universalismo autoritário e abstrato, digitado ou planejado por alguns e apresentado como um suposto sonho a fim de homogeneizar, dominar e espoliar” (100). Aos católicos que o acusam de propor uma fraternidade sem Deus, lhes diz que “Como crentes, pensamos que, sem uma abertura ao Pai de todos, não podem haver razões sólidas e estáveis para o apelo à fraternidade” (272).
E se o que afirma é que prescinde das convicções cristãs, lhes diz que “se a música do Evangelho deixa de tocar... teremos apagado a melodia que nos desafiava a lutar pela dignidade de todo homem e mulher... para nós esse manancial de dignidade humana e de fraternidade está no Evangelho de Jesus Cristo” (277).
Mas não se pode parar, porque igualmente encontrarão outras desculpas para defender que somente se deixarão inspirar por Francisco quando ele assumir a forma mentis e a opção política deles. Todavia, não conseguirão deter o que implica assumir um rosto eclesial que já não pode se desprender da dimensão social do Evangelho.
Isto nos mostra até que ponto era necessário este grito profético que é a Fratelli Tutti, que vem a completar a Doutrina Social da Igreja com uma contundência tal qual já não é possível esconder sua potência desestabilizadora. Vida longa a Francisco!
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Fratelli Tutti nesta guerra fria: hora de tomar uma decisão. Artigo de dom Víctor Manuel Fernández - Instituto Humanitas Unisinos - IHU