18 Setembro 2021
“Tenho certeza de que pelo menos um livro de Paulo Freire é bibliografia obrigatória em pedagogia, educação ou formação de professores, não só na América Latina. E ainda, quando chegamos à realidade da sala de aula, as ideias e propostas do brasileiro tendem a derreter como um cubo de gelo ao sol ... A massificação do sistema, a burocratização das práticas ou o desinteresse dos atores da interface educacional tornam a “aplicação de Freire” muito difícil nos contextos de ensino-aprendizagem atuais. Também não descartamos que alguns pensem que “aplicar Freire” é bagunça dentro da sala de aula...”, escreve Carlos A. Scolari, professor catedrático em Teoria e Análise da Comunicação Digital Interativa no Departamento de Comunicação da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, Espanha, e coordenador do Programa de Doutorado em Comunicação, da mesma universidade, em artigo publicado por Hipermediaciones, 14-09-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Nestes dias comemora-se 100 anos do nascimento de Paulo Freire (1921-1997), talvez o pedagogo mais importante do século XX. E não estou exagerando: segundo um estudo realizado na London School of Economics em 2016 a “Pedagogia do Oprimido” (1970) era o terceiro livro mais citado nas ciências sociais dentro de uma lista onde apareciam autores clássicos como Thomas Kuhn, Michel Foucault ou Clifford Geertz. Este êxito do livro de Freire deve-se às inúmeras (re)edições em castelhano, as quais superaram inclusive as originais em português ou as traduções em inglês.
A “Pedagogia do Oprimido” merece estar na lista. É uma obra revolucionária, escrita em um momento revolucionário por um pensador que, sem necessidade de tomar o fuzil e ir para a montanha, desenvolveu um pensamento radical e profundo que ainda hoje surpreende por sua sensibilidade. De certa forma, o livro de Freire compartilhou destino com outro clássico publicado mais ou menos no mesmo ano e pela mesma afortunada editora (Siglo XXI): “Para ler o Pato Donald” (1972), de Ariel Dorfman e Armand Mattelart. Ambos livros foram e seguem sendo, meio século depois, dois sucessos acadêmicos. Se “Para ler o Pato Donald” desvelava os mistérios da ideologia burguesa e explicava como o imperialismo inculcava uma visão de mundo, a “Pedagogia do Oprimido” era a ferramenta ideal para ativar processos de conscientização e colocar em crise essa (falsa) imagem do mundo. O bom do livro de Freire é que essa conscientização não era o resultado de uma transferência linear do conhecimento (desde uma vanguarda iluminada a um sujeito alienado), mas sim o resultado de um diálogo ou comunicação entre-pares.
1. Através da manipulação, as elites dominantes tentam conformar progressivamente as massas a seus objetivos.
2. O diálogo não impõe, não manipula, não domestica, não rotula.
3. Falar de democracia e calar o povo é uma farsa. Falar do humanismo e negar os homens é uma mentira.
4. Matar a vida, freá-la, com a redução dos homens a meras coisas, aliená-los, mistificá-los, violentá-los, é característico dos opressores.
5. Não há homem absolutamente inculto: o homem “se humaniza” expressando e dizendo seu mundo. Aí começa a história e a cultura.
6. Não se faz homens em silêncio, mas na palavra, no trabalho, na ação, na reflexão.
7. Quem atua sobre os homens para doutriná-los, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os opressores.
8. A palavra, por ser lugar de encontro e de reconhecimento das consciências, também o é de reencontro e de reconhecimento de si mesmo.
9. Através de seu permanente fazer transformador da realidade objetiva, os homens simultaneamente criam a história e se fazem seres históricos-sociais.
10. Para dominar, o dominador não tem outra saída senão negar às massas populares a verdadeira práxis. Negando-lhes o direito de dizer sua palavra, de pensar corretamente.
11. Só o diálogo, que envolve pensamento crítico, é capaz de gerá-lo. Sem ela não há comunicação e sem ela não há verdadeira educação.
12. A alfabetização, por tudo isso, é pedagogia: aprender a ler é aprender a dizer a palavra. E a palavra humana imita a palavra divina: é criativa.
13. A invasão cultural, indiscutivelmente alienante, feita discreta ou abertamente, é sempre uma violência na medida em que violenta o ser da cultura invadida, que se encontra ameaçada ou perde definitivamente a sua originalidade.
14. Não existe palavra verdadeira que não seja união indestrutível entre ação e reflexão e, portanto, que não seja práxis. Portanto, dizer a palavra verdadeira está transformando o mundo.
15. A concepção problematizadora e a superação da contradição educador-educando: ninguém educa ninguém – ninguém se educa -, os homens se educam pela mediação do mundo.
Como se vê, o pensamento de Freire expressa um humanismo radicalmente transformador de matriz cristã. Por trás de um aparente “programa de alfabetização”, muito em voga no Terceiro Mundo na década de 1960 dentro do projeto desenvolvimentista, escondia-se uma filosofia de libertação que colocava a palavra e a comunicação no centro de sua práxis emancipatória.
Entrei no mundo-Freire junto com vários colegas graças à professora Mercedes Pallavicini, da Universidade Nacional de Rosario. Como tantos outros autores, os livros do brasileiro haviam sido proibidos durante a ditadura, então acessar esses textos nos primeiros anos de democracia deixava um gostinho de liberdade na boca. O primeiro livro que li de Paulo Freire foi “Comunicação ou Extensão?” . Se bem me lembro, li quase em sincronia com outro clássico latino-americano, “Compreender a comunicação”, de Antonio Pasquali. Se Freire opôs a comunicação à extensão, Pasquali fez o mesmo com a informação à comunicação. Havia duas maneiras de entender a prática comunicativa, uma de cima para baixo e centralizadora, a outra de baixo para cima e democratizante. Não é por acaso que os livros de Freire dialogavam tão bem com os textos em que se propunha o desenvolvimento de uma “comunicação alternativa” nos anos 1970-80.
Nos anos seguintes li outros livros de Freire como “Educação como prática da liberdade” e a mítica obra “Pedagogia do Oprimido”, além de textos onde suas contribuições foram analisadas; embora participasse de oficinas de formação com base em seu método, nunca me tornei um “professor de alfabetização freiriano”. Por várias décadas, ler Freire ou citá-lo foi um aceno político, um sinal de pertencimento a uma comunidade de leitores onde comunicação, educação e revolução eram uma e a mesma coisa. E ainda assim... Receio que o autor mais citado, o mais vendido e mais celebrado da pedagogia, tenha sido o menos aplicado em sala de aula.
Tenho certeza de que pelo menos um livro de Paulo Freire é bibliografia obrigatória em pedagogia, educação ou formação de professores, não só na América Latina. E ainda, quando chegamos à realidade da sala de aula, as ideias e propostas do brasileiro tendem a derreter como um cubo de gelo ao sol... A massificação do sistema, a burocratização das práticas ou o desinteresse dos atores da interface educacional tornam a “aplicação de Freire” muito difícil nos contextos de ensino-aprendizagem atuais. Também não descartamos que alguns pensem que “aplicar Freire” é bagunça dentro da sala de aula...
Receio que, como tantos outros autores que também acabaram no cemitério da bibliografia obrigatória, a “Pedagogia do Oprimido” acabou se tornando um tema de prova para uma matéria enfadonha que quase todos esquecerão no final da graduação. Apesar disso, estou convencido de que, se houver interesse por parte do professor ou da escola, o pensamento de Freire sempre pode ser recuperado e aplicado, mesmo nas situações de ensino-aprendizagem mais adversas.
O que há de mais belo e contundente no pensamento de Paulo Freire é que ele continua incomodando como foi há meio século. Quando em 2019 o presidente Jair Bolsonaro decidiu não renovar o contrato de uma televisão pública voltada para a educação, justificou o fechamento: “Você conhece a programação da TV Escola? Deseduca!”. Bolsonaro sustentou que o tema daquele canal era “totalmente de esquerda” e dedicou recursos públicos a questões como “ideologia de gênero”. A política do Bolsonaro visa eliminar todos os tipos de ideologia das escolas e universidades em cinco anos. “As coisas têm que mudar”, disse o presidente, e prometeu que daqui a cinco anos “vai acabar a ideologia de Paulo Freire... Tem muita gente formada aqui segundo a filosofia de Paulo Freire, esse energúmeno e ídolo da esquerda”.
Por que a proposta de Paulo Freire terminou descolando-se dos discursos acadêmicos? Talvez a resposta se encontre neste artigo de 2013: “Bibliografia do Oprimido? Uma crítica da razão bibliográfica”. Como diz o sempre genial Gonzalo Frasca, “a melhor maneira de domesticar uma ideia é colocá-la para pastar em um programa de estudos”.
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Paulo Freire. Cem anos de solidão pedagógica? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU