17 Agosto 2021
“Não admitimos que 'as corporações e os financistas globalizados dominam e que, portanto, não há democracias'. Devemos desenvolver as três dimensões do ser humano, formando uma massa crítica de seres humanos, comunidades e corpos sociais que contribuam para a construção de uma verdadeira democracia e que coloquem em seu lugar as corporações globalizadas e os grandes financiadores. Para que não absolutizem o “indivíduo e lucro”, mas se tornem parte do todo, 'buscando o bem comum, no qual cabe o seu bem particular'”, escreve Hugo Gudiel, jesuíta salvadorenho, coordenador da Comissão de Teólogos da Conferência dos Provinciais Jesuítas da América Latina e Caribe - CPAL, em nota publicada por Jesuítas da América Latina, relatando a reunião realizada virtualmente entre 30 de julho e 1º de agosto de 2021.
De sexta-feira, 30 de julho, a domingo, 1º de agosto de 2021, os membros e convidados da Comissão Teológica da CPAL realizaram sua reunião anual. A reunião foi virtual devido às condições extraordinárias da pandemia de covid-19 que desde o início do ano passado agonia o mundo inteiro. A reunião online foi coordenada desde El Salvador.
A Comissão Teológica Latino-Americana busca favorecer entre seus membros o debate crítico teológico, e o faz desde a realidade histórica e eclesial latino-americana dos empobrecidos e excluídos para contribuir à missão da Companhia de Jesus. Com isso, pretende-se teologizar, como prática teórica fundamental que há de se historicizar na práxis da fé cristã, desde o Terceiro Mundo. Nessa perspectiva, este ano de 2021 quis discernir teologicamente aquilo que caracteriza a nova época, desde a realidade latino-americana.
O tema fundamental do encontro de 2021 girou em torno do “Discernimento da nova época desde a América Latina”. Este foi acordado na reunião anual presencial de agosto de 2019 realizada em Belo Horizonte. É o que consta nos “Acordos da Comissão” desse ano, redigidos por Hugo Gudiel.
As propostas de comunicações apresentadas foram as seguintes.
Na sequência, e por razões práticas, limitamo-nos nesta síntese a apresentar apenas alguns aspectos centrais do trabalho de Pedro Trigo. Ainda que também seja certo que sua apresentação expresse o central da temática escolhida pela Comissão para este ano, sem esquecer que a correlação da totalidade das apresentações expressa uma riqueza inigualável no conjunto da temática escolhida.
Em sua apresentação [2], Trigo parte da convicção de que ser cristão é seguir Jesus de Nazaré, e que isso implica “fazermo-nos em nossa situação de modo equivalente a como Jesus fez na sua”. Hoje, então, estamos em uma nova situação que se expressa em uma mudança radical de época (ACME 1) [3].
Em primeiro lugar, expõe que as novidades mais evidentes de nossa época são as seguintes.
A primeira é a mundialização que na realidade é globalização do primeiro mundo, é a novidade mais visível.
A segunda novidade desta figura histórica atual consiste em que o “espaço já não está em função do tempo, posto que existe a simultaneidade virtual”, é a novidade mais cotidiana.
A terceira novidade desta época é a saída da terra, “a chegada a outros planetas, a orbitação, a abertura ao espaço intergaláctico” (ACME 1).
A quarta novidade desta época “é a percepção da Terra como um sistema de sistemas autorregulado”, portanto, como verídico sujeito.
A quinta novidade é a “decodificação dos códigos genéticos dos seres vivos, inclusive os humanos”; esta é a novidade mais radical onde vale a pena perguntar “o que faremos nós, seres humanos, de nós próprios”.
O sexto “é a concentração de conhecimento, riqueza e poder em um número muito pequeno de países e em muito poucas pessoas dentro deles”; é a novidade mais perigosa desta figura histórica atual. Aqui o assunto é “empresas transnacionais e grandes investidores” (ACME 2). Mas aqueles que têm a vantagem nesta nova era se tornam os atores principais, são as corporações globalizadas e os grandes investidores (cfr. ACME 3).
Além dessas novidades mencionadas, existem, em segundo lugar, algumas descobertas científicas que dão origem a essa nova era. Acima de tudo, “os circuitos integrados permitiram passar do macro ao micro”, dando origem ao mundo digital, à exploração do universo, à robotização e à inteligência artificial. Devemos acrescentar também a decifração do “genoma humano”. E, associada a essas duas descobertas, a “nanotecnologia” aparece de forma mais geral. Aqui estão as duas descobertas que Trigo acredita serem “as que mais mudam nossas vidas e nosso habitat” (ACME 3).
Terceiro, a experiência cristã que está por trás de tudo isso tem suas raízes no Vaticano II e, para nós, foi expressa em Medellín. Isso surge em um contexto conflituoso, mas dinâmico, que “gerou esperança”. E embora os militares tenham truncado vários processos democráticos em alguns países latino-americanos, a necessidade de justiça e mudança permaneceu aberta. No entanto, a mudança de perspectiva “ocorreu à medida que o horizonte global se impunha”. Fica claro, então, que estamos “entrando em uma nova era”, por isso as propostas não podem ser as mesmas hoje (ACME 4).
Desde a encarnação kenótica e a mundialização, temos que trabalhar ousadamente para “superar a direção que a globalização tomou liderada por grandes corporações e ainda mais por grandes investidores” [4]. Certamente é preciso desenvolver a individualidade e assumir os “bens civilizatórios e culturais de nosso tempo”. Temos que assumir o futuro como sujeito com responsabilidade. E devemos nos encarnar de baixo, como fez Jesus de Nazaré. Conduzidos pela simpatia e misericórdia para com os pobres com o Espírito (ACME 5).
A partir dessa relacionalidade, o consumo deve ser radicalmente relativizado, evitando fazê-lo “supérfluo” e difundindo a liberdade do consumismo. E a partir daí construir uma massa crítica de cidadãos, “e para isso temos que promover vocações políticas e resgatar a democracia”. Agora, para nos encarnarmos “solidariamente com a humanidade e assumir com responsabilidade e solvência de conduzi-la com muitos outros nesta direção humanizadora, é necessário que a relação com Jesus nos Evangelhos” tenha a iniciativa em nossas vidas (ACME 5).
Concluindo [5], fica evidente que “estamos na primeira figura universal em termos de abrangência e interconexões”. Porém, “nem todos ou a maioria de nós somos sujeitos desta figura histórica”, mas “somos chamados a ser”. Agora que atingimos a maioridade, além de termos assumido a nossa individualidade, “temos consciência de que somos chamados a assumir a nossa responsabilidade de súditos”. Sujeitos de nós mesmos, da sociedade, da humanidade e da terra. Agora, “o nosso maior apelo é relacionarmo-nos horizontal e abertamente com todos... conseguindo formar-nos verdadeiramente personalizados, ou seja, humanizar as comunidades e os corpos sociais e fazer com que a sociedade funcione como um verdadeiro corpo social, dedicado ao bem comum” (ACME 6).
É por isso que não admitimos que “as corporações e os financistas globalizados dominam e que, portanto, não há democracias”. Devemos desenvolver as três dimensões do ser humano, formando uma massa crítica de seres humanos, comunidades e corpos sociais que contribuam para a construção de uma verdadeira democracia e que coloquem em seu lugar as corporações globalizadas e os grandes financiadores. Para que não absolutizem o “indivíduo e lucro”, mas se tornem parte do todo, “buscando o bem comum, no qual cabe o seu bem particular” (ACME 6).
Este horizonte pressupõe que o humano propriamente dito é algo que pertence a “todo ser humano e, portanto, goza de um status intercultural”. E cada um vive em sua cultura como meio de humanidade. Assim, “nesta primeira figura da história universal todas as culturas fazem sentido, mas desde que aceitem relativizar-se e medir-se pela qualidade humana” (ACME 7).
Tomar consciência e aceitar “nossa responsabilidade como seres humanos incumbe também aceitar os bens civilizatórios que caracterizam esta figura histórica”. Porém, é preciso aceitá-los de modo crítico e aceitando os limites da vida e da idade (ACME 7). Para que tudo isso nos humanize, é necessária a verdadeira democracia. Por isso Trigo propõe “uma superação dialética da direção dominante desta figura história” (ACME 8) [6].
Pois bem, há que se viver a mundialização dentro de nosso meio e cultura, conjugando o local e o global. “Por isso é a hora de nos empenharmos em um cristianismo multiétnico e pluricultura em interação horizontal e mútua e em uma verdadeira comunhão”. Em um cristianismo “poliédrico” (cfr. EG 236) (ACME 8), na qual se incluem “todas as igrejas e os cristãos com o mais genuíno que têm” (ACME 9).
Nesta perspectiva, deve ser considerado o papel fundamental do Concílio Vaticano II. E também é importante estar atento à prevalência da inculturação do cristianismo. Na verdade, você não pode fazer o equivalente ao que Jesus fez, “se você não está inculturado encarnado no ambiente em que vive”; além disso, é necessário saber o que Jesus fez em sua situação, com a leitura orante dos Evangelhos (ACME 10).
É evidente, então, que a “inculturação do Cristianismo tem a ver estruturalmente com o seguimento de Jesus”: todo verdadeiro seguimento é inculturado (ACME 11).
Em suma, no que é apresentado, apontam-se as seis novidades mais óbvias e significativas de nosso tempo. Sua expressão, esclarecimento e desvelamento contribuem para o discernimento teológico do que realmente está acontecendo no mundo, desde a perspectiva da América Latina. Daí a necessidade de superar o rumo que a globalização tomou ao lançar a história em outra direção por meio da práxis responsável e consciente dos atores humanos.
As descobertas científicas que causaram essa novidade também são expostas. Tanto as novidades quanto as últimas devem levar os cristãos a enfrentar a nova situação de forma “equivalente” a como Jesus enfrentou sua realidade. E isso só se consegue com uma liberdade libertada e a responsabilidade de todos.
[1] Embora não sintetizemos aqui a apresentação de Martin Maier, considero o romance de abordagem comparativa a partir de seis aspectos interessantes que o autor apresenta sobre Ellacuría e o Papa Francisco, a partir do tema proposto. Na minha opinião, é uma exploração sem precedentes que pode continuar a ser trabalhada, expandida e apoiada, e que pode levar a resultados interessantes em uma “nova civilização global”.
[2] Como se verá a seguir, em nossa síntese usaremos a apresentação de Trigo, “O acontecimento cristão na mudança da época”; é uma “versão mais amigável” enviada aos membros da Comissão Teológica. É uma versão sintética do artigo maior intitulado “Discernimiento de la nueva época desde América Latina”, publicado na Revista Latinoamericana de teología, No. 111, septiembre-diciembre 2020, pp. 248-281.
[3] A partir deste momento colocaremos as notas desta apresentação dentro do texto com a sigla ACME e a (s) página (s) correspondente (s).
[4] I. Ellacuría propôs algo semelhante com outras palavras e com um vigor radical, profético e utópico que ainda mantém sua força hoje e cada vez mais clama pela necessidade prática da realização histórica, afirmando que:”só utópica e esperançosamente se pode acreditar e ter ânimo para tentar com todos os pobres e oprimidos do mundo inverter a história, subvertê-la e lançá-la em outra direção”,” O desafio das maiorias pobres”, in Estudios Centroamericanos, 493-494, 1989, p. 1078.
“Superar o rumo que a globalização tomou” (Trigo) ou lançar a história “em outra direção” (Ellacuría) são, a meu ver, duas formas de expressar a mesma realidade: a necessidade de mudar o rumo que a humanidade está tomando, para não nos destruirmos, porque todos viajamos no mesmo barco e, na realidade, vivemos “num só mundo”.
[5] A seguir, e como o leitor bem notará, Trigo apresenta uma longa conclusão de quase seis páginas em sua versão condensada; mas dada a sua importância, decidimos sintetizar alguns aspectos. Obviamente, essa conclusão tem seu próprio lugar na versão mais ampla já observada.
[6] A seguir, Trigo apresenta “os dilemas incontornáveis para exercer a nossa responsabilidade” (cfr. ACME 8-9).
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Discernimento da nova época desde a América Latina. Reunião anual da Comissão de Teólogos Jesuítas da América Latina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU