30 Junho 2021
“A eleição peruana gerou uma verdadeira histeria entre as elites limeñas e uma campanha de demonização do candidato cajamarquino. O cenário, confirmando-se a vitória de Pedro Castillo, tem altas doses de incertezas. Porém, estas se vinculam pouco com os fantasmas que promove o anticomunismo zumbi que percorre o país”, escreve Pablo Stefanoni, doutor em História pela Universidade de Buenos Aires, chefe de redação da revista Nueva Sociedad e professor na Universidade Nacional de San Martín, em artigo publicado por Nueva Sociedad, 10-06-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O que ocorreu nas eleições peruanas é talvez o mais parecido com a “tempestade nos Andes” anunciada por Luis E. Valcárcel em um livro já clássico com prólogo de José Carlos Mariátegui. Atraído pela ideia de “mito”, Mariátegui terminava escrevendo: “E nada importa que para alguns sejam os fatos que criam a profecia e para outros seja a profecia que cria os fatos”. O que ocorreu no último 6 de junho não é sem dúvida um levante indígena como o que imaginou Valcárcel, nem tampouco um como imaginara Mariátegui, como parteiro do socialismo. Porém, foi um levante eleitoral do Peru andino profundo, cujos efeitos cobriram todo o país.
Pedro Castillo Terrones está longe de ser um messias, mas apareceu na disputa eleitoral “do nada”, como se o fosse. Com os resultados das eleições, ele está perto de se tornar o mais improvável presidente. Não por ser um forasteiro – o país está cheio deles desde que o “chinês” Alberto Fujimori chegou ao poder em 1990, após derrotar Mario Vargas Llosa – mas por sua origem de classe: é um camponês de Cajamarca atrelado à terra que, sem nunca abandonar aquele vínculo com os Andes, superou várias dificuldades e se tornou professor rural; nos debates presidenciais, ele encerrou seus discursos com a frase de efeito “palavra do mestre”.
Do magistério, Castillo saltou para o cenário nacional em 2017, com uma combativa greve dos professores contra a própria direção sindical. Um documentário recente, intitulado precisamente “O Professor”, dá várias pistas sobre a sua própria pessoa, a sua família e o seu ambiente. Ao contrário de Valcárcel, cujo indigenismo estava inserido na disputa das elites – o Cuzco andino e a Lima “branca” – Castillo vem de um norte muito mais marginal em termos da geopolítica peruana. Sua identidade é mais “provinciana” e camponesa do que estritamente indígena. Dali conquistou o eleitorado do sul dos Andes e também atraiu, embora em menor grau, o voto popular de Lima.
Por isso, quando Keiko Fujimori aceitou o desafio de ir ao povoado de Chota para debater e disse com desgosto “tinha que vir aqui”, a frase permaneceu como um dos reveses de sua campanha. Castillo havia conseguido tirar a política de Lima e levá-la aos cantos remotos e isolados do país, que percorreu um a um em sua campanha com um lápis gigante nas mãos.
A irrupção de Castillo no primeiro turno – com quase 19% dos votos – gerou uma verdadeira histeria nos setores abastados da capital. E de acordo com a moda atual de anticomunismo zumbi, isso se expressou em um generalizado “Não ao comunismo”, inclusive manifestado com cartazes gigantes nas ruas. Racismo também não faltou. O Peru parece ter menos vontade de expressá-lo em público do que os vizinhos Equador ou Bolívia.
Por exemplo, o “polêmico” jornalista Beto Ortiz tirou do seu estúdio de televisão a deputada do Perú Libre, Zaira Arias, mostrando que o “politicamente correto” não alcançou setores das elites de Lima. Em seguida, ele a chamou de “verdureira” e mais tarde se disfarçou de índio – com seu histrionismo de sempre – para recebê-la de maneira dissimulada no “novo Peru” de Pedro Castillo.
A candidatura de Castillo também foi vítima constante do “terruqueo” (acusação de vínculo com o terrorismo) devido às suas alianças sindicais durante a greve dos professores e, sem nenhuma experiência anterior no campo eleitoral, de seus próprios obstáculos nas entrevistas.
Como escreveu Alberto Vergara no New York Times: “Aqueles que usaram a política do medo da maneira mais traiçoeira foram os do campo de Fujimori, as classes altas e os meios de comunicação de massa. Empresários ameaçaram demitir seus funcionários se Castillo ganhasse; os cidadãos comuns prometeram tirar suas empregadas domésticas do trabalho se elas optassem pelo Perú Libre; as ruas estavam repletas de placas invasivas, pagas pelo empresariado, alertando para uma iminente invasão comunista”. Até Mario Vargas Llosa abandonou seu tradicional antifujimorismo – para o qual chegou até a votar em Ollanta Humala em 2011 – e decidiu dar uma oportunidade a uma candidata de sobrenome Fujimori.
Castillo está longe de uma cultura comunista. Ele foi ativo na política local por vários anos sob a sigla Perú Posible, o partido do ex-presidente Alejandro Toledo, e embora tenha concorrido pelo Perú Libre, ele não é um orgânico deste partido, que nasceu originalmente como Perú Libertário. O Perú Libre se define como um partido “marxista-leninista-mariateguista”, mas muitos de seus candidatos negam ser “comunistas”.
O líder do partido, Vladimir Cerrón, definiu o movimento que se alinhava por trás de Castillo como uma “esquerda provinciana”, em oposição à “esquerda caviar” de Lima. Castillo é um católico “evangélico compatível”: sua esposa e filha são participantes ativas da Igreja evangélica do Nazareno e ele próprio contribui para suas orações. Na campanha ele se posicionou repetidamente contra o aborto ou casamento igualitário, embora hoje vários de seus técnicos e assessores venham da esquerda urbana liderada por Verónika Mendoza, com visões sociais progressistas. Teremos que ver a coexistência de tendências no futuro governo de Castillo, o que não se anuncia fácil.
Castillo também se define como um “rondero”, referindo-se às patrulhas camponesas criadas em Cajamarca na década de 1970 para enfrentar o roubo de gado e que posteriormente foram replicadas no país na década de 80 para enfrentar os guerrilheiros do Sendero Luminoso, e funcionam muitas vezes como instância de autoridade no campo.
A incerteza de um futuro governo de Castillo não tem a ver, precisamente, com a constituição de uma experiência comunista de qualquer natureza que for. Também parece muito improvável uma “venezuelização” como anunciam seus detratores. As Forças Armadas não parecem facilmente subsumíveis, o peso parlamentar do castillismo é pequeno, as elites econômicas são mais resistentes que em um país puramente petroleiro, como é a Venezuela, e a estruturação do movimento social não antecipa um “nacionalismo revolucionário” de tipo chavista ou cubano.
As declarações do “professor Castillo” mostram certo desprezo do tipo plebeu pelas instituições, pouca clareza sobre o rumo governamental e visões sobre a repressão da delinquência que promovem a extensão da “justicia rondera” ao resto do Peru (que frequentemente impõe diversos tipos de castigos aos que delinquem), porém também incluem discursos duros, como se viu nos debates eleitorais.
A presença no governo da “outra esquerda” – urbana e cosmopolita – pode funcionar como um equilíbrio virtuoso entre o progressista e o popular, ainda que também seja fonte de tensões internas. Alguns comparam Castillo a Evo Morales. Há, claro, simbologias e histórias compartilhadas. Porém há diferenças também. Uma é puramente anedótica: em vez de exagerar seus esforços em uma chave meritocrática, Morales diz não ter terminado o secundário (ainda que alguns de seus professores assegurem o contrário). A outra é mais importante para os efeitos do governo: o ex-presidente boliviano chegou ao Palácio Quemado em 2006 depois de oito anos de trajetória como chefe do bloco parlamentar Movimento ao Socialismo (MAS) e a experiência de uma campanha presidencial em 2002, ademais de ter por trás uma confederação de movimentos sociais com forte peso territorial, articulador. Castillo tem, por enquanto, um partido que não é o seu e um apoio social/eleitoral ainda difuso.
O “medo branco” de Castillo está ligado, mais do que a um perigo real do comunismo, à perspectiva de perder o poder em um país em que as elites contornaram a virada à esquerda na região e cooptaram aqueles que venceram com programas reformistas como Ollanta Humala. Em termos mais “antigos”: o “medo branco” é a perspectiva de um enfraquecimento do gamonalismo, como o sistema de poder construído pelos proprietários de terras antes da reforma agrária foi chamado no Peru, e que perdurou de outras maneiras e de outras maneiras no país. Ninguém sabe se as elites serão capazes de cooptar Castillo também, mas há um abismo de classes mais profundo neste caso do que no passado e o cenário é geralmente menos previsível. A “surpresa Castillo” é muito recente e sob muitos aspectos desconhecida até mesmo por aqueles que serão seus colaboradores.
Possivelmente, a tempestade eleitoral anunciará outras próximas, se as elites quiserem continuar governando como estavam acostumadas a fazer.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Peru. Quem tem medo de Pedro Castillo? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU