15 Junho 2021
“É bastante ilustrativo que, apesar da promessa de Fujimori de destinar 40% do imposto mineiro diretamente às famílias residentes em regiões de atividade extrativa, esses povos tenham votado majoritariamente em seu oponente, em números que ultrapassam 80% dos votos. É uma mensagem imperativa que esperamos que seja ouvida: os mais pobres não estão satisfeitos com dádivas econômicas, o que reivindicam é dignidade e representação”, escreve Juan Miguel Espinoza Portocarrero, professor da Pontifícia Universidade Católica do Peru.
“A Igreja reproduz vários dos nós conflitivos da sociedade e a política peruana. Uma conversão pastoral e sinodal implica reconhecer essas limitações e assumir uma posição autocrítica. A educação cidadã também é uma urgência no interior da Igreja, porque adoecemos muito da falta de participação, corresponsabilidade e pluralismo”, avalia.
O artigo é publicado por Religión Digital, 11-06-2021. A tradução é do Cepat.
Quando pensamos que chegava ao fim uma das disputas eleitorais mais acirradas vista pelo Peru em sua história recente, nós, peruanos, fomos confrontados com o fato de que a batalha continuará ao menos por alguns dias a mais. Na tarde de quarta-feira, dia 9, a apuração já estava em 99%, apontando um vencedor.
Por uma estreita margem de 70.000 votos, o professor sindicalista Pedro Castillo superava a direitista Keiko Fujimori, em sua terceira tentativa de conquistar a presidência. No entanto, à noite, a equipe de Fujimori anunciou que solicitaria a impugnação de 802 mesas eleitorais em regiões onde Castillo tinha maioria, por sua suposta fraude montada pelo adversário.
O presidente do Júri Nacional de Eleições declarou que este é um pedido inédito, que ultrapassa as capacidades dos órgãos eleitorais em resolver com agilidade. Para ilustrar, nas eleições de 2016 foram apresentados 29 recursos desta natureza, e nas de 2011, apenas 2.
O confronto político, lamentavelmente, deve se estender, pois a grupo de Castillo já se considera vencedor e acusa o outro lado de lhes roubar a vitória utilizando artimanhas legais. Os ânimos se exaltam nas ruas e nas redes sociais com partidários dos dois candidatos protestando, algo que esperamos que não se transforme em violência ou em atentados à ordem constitucional.
Sendo otimistas, eventualmente, este confronto passará. Mas as sequelas continuarão ressoando em uma democracia frágil, cuja instabilidade político-institucional produziu 4 presidentes, no último quinquênio, e um golpe de estado em novembro de 2020.
Mais grave ainda é que o tecido social está ficando profundamente rompido, o que não é produto das eleições, mas de um fenômeno que se arrasta há muito tempo. Suas raízes estruturais são as desigualdades históricas e a cultura de que nem todas as vidas peruanas valem o mesmo.
Portanto, o verdadeiro desafio não é sobreviver à crise política atual, mas olhar além e pensar em como curar uma comunidade nacional, onde a desconfiança, a prepotência e o sectarismo ofuscam a promessa de uma República fundada na igualdade, na fraternidade e no bem comum.
Como chegamos até este desenlace eleitoral telenovelesco? A frustração coletiva gerada pelos impactos da pandemia (mais de 180.000 mortos, segundo números oficiais recentemente apresentados pelo governo e um aumento da pobreza em 10%) fragmentou as preferências durante o primeiro turno eleitoral. Entre uma oferta de 18 candidatos, passaram à disputa final dois candidatos populistas, ambos representando extremos, um de esquerda e a outra de direita. Sim, nenhum dos dois conseguiu mais de 20% dos votos, algo inédito na história eleitoral peruana.
Em vez de se reorientar para o centro, ambos decidiram radicalizar seus discursos de campanha tendo como marco a defesa ou a oposição ao modelo econômico neoliberal. Este tópico não é novo. Ao contrário, foi uma bandeira política, que se recicla em cada eleição, desde 2006.
O êxito econômico das últimas duas décadas favoreceu Lima e as regiões litorâneas ligadas à agroindústria, mas marginalizou as regiões da Amazônia e os Andes, onde adicionalmente as indústrias extrativas (mineração e hidrocarbonetos) levam a uma relação conflitiva com as comunidades indígenas e camponesas. O resultado é que as regiões mais integradas ao livre comércio e à globalização tendem a votar naqueles que asseguram a continuidade deste status quo e aqueles que sentem excluídos, votam contra.
A estratégia de Fujimori consistiu em apresentar Castillo como representante do “comunismo”, que pretendia replicar o modelo venezuelano no Peru e sequestrar a democracia e as liberdades. O argumento era que Castillo estava com Peru Livre, organização política cujo ideário se identifica com o marxismo-leninismo e o socialismo do século XXI. Além disso, sobre o fundador do partido, Vladimir Cerrón, pesa uma condenação por corrupção e vários questionamentos à sua gestão como governador da região de Junín, nos Andes centrais.
Por trás de Fujimori, reuniu-se uma coalizão diversificada, integrada pelo leque de partidos de direita, grandes empresas, a tecnocracia neoliberal, as mais populares cadeias de televisão, a seleção peruana de futebol e personalidades da farândola. Até mesmo velhos detratores do fujimorismo, como o escritor Mario Vargas Llosa, apoiaram sua candidatura como garantia da conservação do sistema vigente.
Os aliados de Fujimori desenvolveram uma imensa campanha publicitária que contemplou painéis em várias cidades do país e conteúdos transmitidos pelas redes de televisão e rebatidos por ativistas nas redes sociais. As mensagens iam em duas perspectivas.
Por um lado, ativar os medos que o senso comum dos peruanos associa à esquerda, atribuindo-os a Castillo: expropriação da propriedade privada e restrição da iniciativa empresarial, hiperinflação e encarecimento dos produtos da cesta básica, violência terrorista, aborto e liberalização da sexualidade, e um longo etc.
Por outro, Fujimori se apresentou como a defensora da “democracia” e as liberdades econômicas e a promotora de uma “mudança avançada”, baseada em promessas clientelistas de bônus monetários e exonerações tributárias para a classe trabalhadora e os mais pobres.
Por sua parte, Castillo apresentou a disputa como uma luta entre os privilegiados e os excluídos, entre ricos e pobres. Surpreendentemente, ser um novato na política foi o seu grande capital político.
Diferente de sua antagonista, que enfrenta processos por lavagem de ativos e está desprestigiada pela atitude obstrucionista de seu partido no Congresso, Castillo não podia ser acusado de nada diretamente. A imagem de homem rural e seu discurso poético carregado de protesto despertou uma identificação entre essas maiorias que se sentem marginalizadas.
“Sem pobres, em um país rico” ou “Sem roubar, dinheiro há” foram alguns dos lemas que impactaram profundamente seus eleitores. Além disso, a plataforma do professor apelou ao sentimento antifujimorista que atravessa classes sociais e posições ideológicas, apontando que Keiko Fujimori era incapaz de se desvencilhar dos crimes da ditadura de seu pai e retificar sua atitude antidemocrática, desde quando se negou a aceitar sua derrota em 2016.
A grande dificuldade de Castillo foi a ambiguidade de seus protestos, que encantavam seus eleitores, mas aterrorizavam os partidários do livre comércio. Defendeu regulamentar as importações para proteger a produção nacional, uma reforma do sistema previdenciário, a renegociação de contratos com transnacionais (especialmente empresas mineiras), em uma linguagem tão imperativa e confusa que despertou o medo de que levaria ao país ao colapso econômico. Seus adversários tiraram proveito disso e apontaram que ele planejava fechar todas as importações, confiscar poupanças e estatizar empresas.
Rosa María Palacios, uma jornalista geralmente neutra e séria, difundiu a ideia de que o plano econômico de Castillo se resumia a nos condenar à fome. Para se livrar desse estigma, o candidato se aliou com a esquerda moderada e progressista liderada pela ex-candidata presidencial Veronika Mendoza. Sendo assim, convocou profissionais de esquerda para formar uma equipe técnica que elaborasse um plano de governo próprio e distante do ideário marxista do Peru Livre.
Contudo, apesar dessas tentativas, não conseguiu retirar a aura de improvisado. Ao fim da campanha, muitos ainda permanecem com dúvidas sobre o que Castillo propõe e muitos outros o consideram uma incisiva ameaça.
Assim que terminou o primeiro turno eleitoral, as vozes sensatas alertaram que as credenciais democráticas dos dois candidatos estavam sob suspeita. Para pressionar os candidatos a assumir compromissos básicos de respeito à democracia, surgiu a Proclamação do Cidadão, iniciativa conjunta da Conferência Episcopal Peruana, a União de Igrejas Cristãs Evangélicas do Peru, a Associação Civil Transparência e a Coordenação Nacional de Direitos Humanos.
Em forma de juramento solene, os candidatos aceitaram cumprir uma lista de 12 pontos, entre os quais estão, se eleitos, priorizariam a luta contra a pandemia por meio de estratégias com base científica, não tentariam uma reeleição, respeitariam os Direitos Humanos, a Constituição, a independência dos poderes do Estado, a liberdade de imprensa e associação, e promoveriam a luta contra a corrupção.
Embora a Proclamação tenha sido apresentada como uma iniciativa da sociedade civil organizada, o cardeal Pedro Barreto, arcebispo de Huancayo, foi uma figura central em sua gestação. De fato, quando os dois candidatos aceitaram fazer o juramento, as cabeças das organizações envolvidas escolheram Barreto para presidir o ato.
Em tal sentido, o envolvimento dos líderes das igrejas católica e evangélicas legitimou a Proclamação, apresentando-a como um ato apartidário e neutro, que reunia a preocupação da população e a tornava uma ação cidadã propositiva.
A Associação Transparência se encarregou de coletar as assinaturas de apoio, por meio de uma petição em Change-org, que somou mais de 30.000 adesões individuais.
Um espetáculo lamentável foi ver bispos, sacerdotes e grupos de leigos se curvarem acriticamente à campanha contra Castillo, reciclando o velho tópico de que a Igreja condena o comunismo. O bispo militar Juan Carlos Vera, MSC, foi o primeiro a pedir voto para Keiko Fujimori porque apoiar Castillo era se tornar “cúmplices da tragédia vivida com os grupos terroristas Sendero Luminoso e MRTA”.
O arcebispo de Arequipa, Javier del Río, em sua mensagem dominical prévia às eleições, pediu um “voto livre e informado”, mas sentenciando que a Igreja católica não pode apoiar Peru Livre, pois seu ideário “está abertamente em conflito com a doutrina e a moral católicas”.
Sacerdotes influencers e ativistas católicos se encarregaram de encher as redes com mensagens de que os católicos não podem votar em um comunista e que um eventual governo de Castillo acarretaria uma ameaça para os interesses da Igreja. Até Nossa Senhora de Fátima foi invocada para salvar o Peru do comunismo.
A campanha católica se baseou em desinformação, medo e ódio, que contribuiu para aprofundar a polarização e os enfrentamentos na sociedade peruana, conferindo-lhes uma dimensão religiosa. O mais terrível nestas mensagens não é que expressassem uma preferência política, que seria um ato legítimo, mas sua pretensão em apresentar o voto contra Castillo como mandato divino e obediência à doutrina da Igreja.
Um mal equilíbrio entre fé e política leva a abusos, que neste caso resultou em palavras sem caridade, esperança ou verdade e na fé convertida em um instrumento do jogo político. Ainda me lembro da indignação de minha mãe e minha tia comentando que um sacerdote diocesano, em uma entrevista por televisão, disse que “Cristo odeia os comunistas”. Ambas perplexas, diziam: “Como pode dizer isso? Deus ama a todos!”.
A intervenção direta de bispos e sacerdotes direcionando o voto dos católicos para Fujimori merece um comentário em particular. Isto constitui um abuso de sua autoridade. A missão dos pastores está em formar e fortalecer a consciência moral dos fiéis, não em suplantá-las, como insiste o Papa Francisco.
Em contraposição a esta atitude, a Comissão Episcopal de Ação Social produziu uma campanha nas redes para estimular um posicionamento sereno, crítico e reflexivo diante do contexto eleitoral.
O arcebispo de Lima, Carlos Castillo, lembrou que a Igreja respeita o pluralismo ideológico, porque há cristãos em todas as vertentes políticas. Um pastor que faz campanha para um partido político rompe a comunhão eclesial e prioriza interesses de poder acima da escuta do Espírito Santo e o cuidado do povo de Deus.
Por sua vez, o bispo de Jaén, Alfredo Vizcarra, SJ, em sua homilia de 1º de junho, criticou os profetas do anticomunismo, pois ao avivarem este fantasma desviam a atenção de problemas reais, negando-se a escutar “a reivindicação de muitos peruanos por uma mudança para um país que pare de esquecê-los”.
Que desafios se abrem no cenário pós-eleições? Em nível social, é uma urgência colocar panos frios nos confrontos e promover o diálogo entre as diferentes vertentes políticas e suas bases sociais. No Peru, o monólogo parece ter se instalado como estilo de comunicação e ação política que se impõe aos outros por seu tom agressivo e altissonante.
O Papa Francisco, na Fratelli Tutti (n. 200-201), explica que este modus operandi fecha as portas para os consensos a favor do bem comum, porque encerra cada pessoa em suas ideias, interesses e opções, desqualifica o adversário, aplicando-lhe alcunhas humilhantes e permite que interesses de poder manipulem o debate público. Claramente, absorveu a campanha eleitoral e, infelizmente, vai se generalizando na vida cotidiana dos peruanos.
Diante de uma narrativa de “hipérboles inexatas”, “é hora dos sensatos, daqueles que não se precipitam fanaticamente e que poderão estender pontes, porque seja quem for o vencedor, o fracasso é certo, se não curarmos feridas”, conforme escreveu o cientista político Gonzalo Banda, no El País. É o momento de olhar a realidade como ela é, reconhecendo que o legado destas eleições ameaça a sobrevivência da República peruana.
É preciso recuperar a consciência de que o pluralismo é ingrediente fundamental da democracia. Nós, peruanos, não somos inimigos, mas concidadãos. É legítimo ter visões diferentes do país, que devem conversar entre si. Para isso, é necessária muita educação cidadã que desenvolva capacidades políticas orientadas a discordar construtivamente e gerar consensos.
A tolerância como abertura à escuta recíproca e vinculante é a condição básica para planejar uma agenda pública centrada no controle da pandemia, na reativação econômica e no reconhecimento da dignidade de todos os peruanos, sem distinções. O novo contexto exige uma cidadania vigilante, que se envolve na vida política a partir da base social, que intervém no espaço público a partir de organizações, coletivos e partidos políticos.
Mas, sobretudo, requer que aprendamos a nos olharmos, reconhecer-nos como irmãos e forjar vínculos de amizade social. O racismo, o classismo e a política clientelista devem ser banidos, porque só destroem o tecido social peruano e impedem de sonhar com um país mais justo e fraterno.
Nas últimas décadas, as políticas de luta contra a pobreza conseguiram avanços na inclusão econômica e no desenvolvimento de capacidades sociais. No entanto, não se atendeu a demanda pela representação política e o reconhecimento da agência cidadã dos mais pobres do Peru.
É bastante ilustrativo que, apesar da promessa de Fujimori de destinar 40% do imposto mineiro diretamente às famílias residentes em regiões de atividade extrativa, esses povos tenham votado majoritariamente em seu oponente, em números que ultrapassam 80% dos votos. É uma mensagem imperativa que esperamos que seja ouvida: os mais pobres não estão satisfeitos com dádivas econômicas, o que reivindicam é dignidade e representação.
Em nível eclesial, cabe uma reflexão séria e objetiva sobre a participação dos católicos na campanha eleitoral. Como cristãos, somos convocados a cuidar da vida que tanto foi descuidada em nosso país. Nossa vocação é a de artesãos da fraternidade e semeadores de esperança. Lamentavelmente, vimos muitos testemunhos contrários.
É certo que, durante a emergência sanitária da COVID-19, as comunidades e as organizações católicas deram sinais de solidariedade, respondendo a uma realidade de muita necessidade. Não obstante, no segundo turno, vários preferiram levantar a bandeira anticomunista, em vez de pensar com sensibilidade e profundidade. O contexto nos diz que algo ainda não conseguimos entender como Igreja.
Fizemos muito ativismo para responder à pandemia, mas isso não necessariamente se traduziu em um encontro com Deus no meio de nós, que tenha transformado nossos corações e comprometido a nossa vida.
Portanto, a conversão pastoral e sinodal é ainda uma tarefa pendente para a Igreja do Peru. Embora tenhamos vários novos bispos na linha do atual pontificado, o Papa Francisco nos lembra que a renovação da hierarquia eclesial por si só não gera transformação eclesial. Nesse sentido, o contexto pós-eleições é uma oportunidade para que o conjunto do povo de Deus peregrinando no Peru se disponha à escuta dos sinais dos tempos e entre com maior vigor na espiritualidade de uma Igreja de discípulos missionários.
Tal caminho pressupõe uma reflexão teológica, uma catequese e uma prática litúrgica mais encarnada e melhor inteirada sobre as preocupações das pessoas e da complexidade social, política e cultural do país. Mas também repensar a formação do clero e o laicato, que supere as defasagens da eclesiologia da sociedade perfeita e reinterprete tudo a partir da centralidade do reinado de Deus e a vida plena para o nosso povo.
A Igreja reproduz vários dos nós conflitivos da sociedade e a política peruana. Uma conversão pastoral e sinodal implica reconhecer essas limitações e assumir uma posição autocrítica. A educação cidadã também é uma urgência no interior da Igreja, porque adoecemos muito da falta de participação, corresponsabilidade e pluralismo.
Toca a nós, católicos, caminhar com o resto da nação em atitude de humildade, pensando a realidade com olhos compassivos e críticos, dispostos a aprender e cooperar entre católicos e com aqueles que estão fora da Igreja. Só assim deixaremos de ser caixa de ressonância dos males sociais tão enraizados na cultura peruana, para sermos fermento de esperança, sal que dinamiza a ação cidadã e casa onde a dignidade de todos é valorizada e promovida.
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Peru. O que deixam as eleições? Uma visão social e eclesial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU