"Frantz Fanon nos instiga a buscar uma saída dialética que nos permita rasgar os horizontes sociais postos, inclusive a afirmação da identidade – ou da diferença – no interior das perspectivas emancipatórias, sem se perder nelas. Esse talvez seja o grande desafio para as atuais gerações de intelectuais antirracistas no Brasil", escreve Deivison Mendes Faustino, em seu texto de prefácio do livro Escritos Políticos, de Frantz Fanon, publicado por OutrasPalavras, 18-06-2021.
Deivison Mendes Faustino é mestre em Ciências da Saúde/Epidemiologia pela Faculdade de Medicina do ABC (2010) e doutor em Sociologia pela UFSCAR (2015). Atualmente é Professor Adjunto da Universidade Federal de São Paulo e integrante do grupo de pesquisa Laboratório Interdisciplinar Ciências Humanas, Sociais e Saúde. É autor de "Frantz Fanon Um Revolucionário Particularmente Negro" (Ciclo Continuo, 2018) e "A disputa em torno de Frantz Fanon: a teoria e a política dos fanonismos contemporâneos" (Intermeios, 2020).
O livro que apresentamos é, junto com o célebre Em defesa da revolução africana, um dos mais preciosos registros do pensamento vivo de Frantz Fanon (1925-1961). Escritos sob o calor explosivo das lutas de libertação argelina, os textos aqui reunidos exprimem o desenvolvimento do pensamento do autor, desde Pele negra, máscaras brancas até seu último livro, Os condenados da terra.
É verdade, como já foi discutido em outro lugar [1], que a tese de uma fragmentação entre um jovem Fanon, supostamente um “pequeno-burguês fenomenológico”, em Pele negra, e um Fanon “maduro” e “revolucionário”, em Os condenados da terra – como argumentou Cedric Robinson [2] –, não sobrevive a uma análise exegética do conjunto de escritos produzidos ao longo da curta vida do autor. Essa aparente divisão tem origem na forma como o pensamento fanoniano foi recebido internacionalmente após a sua morte prematura. O pan-africanismo anti-imperialista por ele defendido encontrou eco especial em um terceiro-mundismo anticolonial que se estruturava a partir do espírito da Conferência de Bandung [3] e, portanto, sua contribuição passou a ser equacionada a partir desse filtro.
Adicione-se a isso a fama internacional conferida a Os condenados da terra pelo prefácio de Jean-Paul Sartre e, em especial, o destaque oferecido pelo filósofo francês ao tema da “violência revolucionária” no pensamento de Frantz Fanon. Essa reputação lhe reservou um lugar de destaque entre a esquerda revolucionária e/ou terceiro-mundista da época, colocando-o ao lado de nomes como Ho Chi Minh, Mao Tsé-tung e Che Guevara. (Esse destaque, no entanto, resultou em um silêncio impactante a respeito de outros temas presentes no referido livro e, sobretudo, a respeito de outras obras do autor.)
Ocorre que, posteriormente, quando as transformações sociais, ideológicas e políticas mundiais resultaram em uma perda de hegemonia das perspectivas revolucionárias na teoria social de esquerda [4], o pensamento de Fanon foi desaparecendo do espectro intelectual internacional ou lembrado, no máximo, como um conjunto de contribuições marcadas por um tempo e um espaço que já não existiam mais [5]. Esse ostracismo só foi rompido com a emergência do chamado pensamento pós-colonial no fim do século XX. O pensamento pós-colonial foi uma vertente da nova esquerda britânica que recolocou a questão colonial na ordem do dia – fundindo os estudos culturais que partiram de Williams e Thompson, os estudos subalternos sul-asiáticos, o pós-estruturalismo francês e a filosofia da diferença, a partir de nomes como Stuart Hall, Homi Bhabha, Gayatri Spivak, Avtar Brah, entre outros.
Essa retomada de Fanon, no entanto, efetivou-se a partir de uma inversão na eleição de qual de suas obras seria a mais relevante. “Se Os condenados da terra era o livro da época da práxis revolucionária, de Pele negra, máscaras brancas pode dizer-se que é um dos livros de cabeceira da viragem pós-colonial no pensamento contemporâneo” [6]. Stuart Hall chegou a se perguntar, em uma conferência realizada no Institute of Contemporary Arts and International Visual Arts, em 1995: “Por que Fanon? Por que agora? E por que Pele negra, máscaras brancas, na retomada póstuma de Fanon?” [7]. A resposta dada por ele é que Pele negra tratava de temas que estavam sendo amplamente discutidos naquele período, como desejo, subjetividade e identificação.
O grande problema dessa fragmentação arbitrária do pensamento de Fanon é que, além de expressar uma disputa exógena a ele [8], acaba por obliterar justamente o que ele tem de mais original e radical: seu caráter de oximoro. O termo emprestado da linguística, mobilizado pelo filósofo ganense Ato Sekyi-Otu [9], tem a pretensão de indicar a síntese dialética de elementos aparentemente contrários, como a subjetividade e a objetividade, a cultura, a economia, o desejo. Essa articulação se aproxima daquilo que György Lukács definia como mediação entre a singularidade, a particularidade e a universalidade humana [10]. Isso permitiu a Fanon tematizar a filogenia, a ontogenia e a sociogenia da experiência psíquica sob a sociabilidade colonial [11], a partir de uma crítica do racismo, do eurocentrismo e do capitalismo, entendidos como partes constituintes de um complexo de complexos reciprocamente determinados.
A originalidade de Frantz Fanon está, pois, em primeiro lugar, em evidenciar os elementos psíquicos, ideológicos e subjetivos que compõem a violência objetiva da dominação e exploração colonial, mas, acima de tudo, a centralidade do colonialismo para o movimento desigual e combinado de universalização do capital. Se Karl Marx reconheceu a importância do colonialismo para a acumulação primitiva de capital [12], Fanon, que foi testemunha ocular da colonização empreendida pelo capital monopolista e, sobretudo, do neocolonialismo, se colocou do lado da análise histórica dissonante de Rosa Luxemburgo para argumentar que as conquistas coloniais de povos não europeus e a consequente subordinação de sua sociabilidade ao modo de produção capitalista tiveram como função não apenas a universalização do capital, mas também a criação de zonas “externas” de transferência das principais contradições capitalistas para a sua periferia, permitindo, assim, uma “gestão” domesticada da luta de classes nos centros. A violência colonial, portanto, não foi exclusividade do período inicial de desenvolvimento capitalista, mas seguiu atuando como elemento fundamental e historicamente determinado nas demais fases da acumulação – especialmente a partir da emergência do capital monopolista [13].
Sem as colônias, como principais depositárias das contradições sociais criadas pela ordem do capital, a gestão burguesa da luta de classes nos centros não seria possível. Essa transferência, no entanto, seria inviável – tanto nas colônias quanto nos centros capitalistas – sem a existência do racismo, da racialização e de todo um complexo ideológico de dominação, com efeitos sobre a psique, a cultura e as formas de existir do colonizado. São esses dois movimentos, bem como sua articulação dialética na realidade concreta, que Fanon acusa de não serem entendidos adequadamente pela esquerda democrática e socialista europeia e seus satélites localizados na periferia capitalista. Boa parte dos artigos aqui apresentados vai, pois, na direção dessa constatação.
É interessante observar, nesse sentido, que a crítica intransigente de Fanon à esquerda é sempre uma crítica que exige o melhor dela, e não a recusa ou rompe com ela. Ainda assim, é possível perceber tanto nos Escritos políticos quanto em Em defesa da revolução africana a denúncia do eurocentrismo que lhe constituía [14]. Esse eurocentrismo se expressa tanto na importação de análises europeias para as colônias, fato que impediria a análise concreta da situação concreta, quanto a sua pretensão de tutelar as lutas de libertação.
Encontramos em Escritos políticos, portanto, uma ponte fundamental entre Pele negra e Os condenados, que evidencia a continuidade de preocupações que já haviam sido esboçadas no primeiro livro, mas não encontraram possibilidade de solução na realidade concreta. Se o jovem psiquiatra em formação diagnosticava em Pele negra a interdição colonial do reconhecimento do negro como parte da humanidade, bem como seus efeitos psíquicos e estranhados na sociabilidade moderna, a explosão necessária à “transformação do mundo” ainda não havia acontecido [15]. Foi apenas com a eclosão das lutas de libertação que seu diagnóstico encontrou uma profilaxia, a qual ele acreditava ser final e definitiva. Em Escritos políticos vemos, pois, as entranhas abertas de um colonialismo agonizando diante da luta anticolonial, e em via de parir novas sociabilidades. Mas a práxis aqui não é apenas resultado de um pensamento outrora iluminado e metafísico, mas produto e, ao mesmo tempo, produtora desse mesmo pensamento, vivificado pelo calor dos acontecimentos. O presente livro expressa, assim, o desenrolar desse pensamento vivo diante do desenrolar concreto da Revolução Argelina.
Para além das questões teóricas que envolvem a recepção póstuma do pensamento de Fanon, pode ser útil à leitora e ao leitor não familiarizados com a biografia do autor o acréscimo de algumas informações históricas e políticas que permearam a escrita de Escritos políticos. Os textos aqui apresentados, com exceção do último [16], foram originalmente publicados no jornal El Moudjahid, importante veículo de propaganda revolucionária da Frente de Libertação Nacional (FLN) da Argélia. Como se sabe, Fanon atuava como médico-chefe do hospital psiquiátrico argelino de Blida-Joinville quando eclodiu a guerra pela independência da Argélia, cujo marco foi a insurreição de 1º de novembro de 1954. O psiquiatra, que já havia clamado anteriormente por “uma reestruturação do mundo” [17], encontrava-se, enfim, diante das possibilidades históricas de cura social para as feridas psíquicas geradas pelo colonialismo. Sem hesitar, tomou partido do processo em curso, primeiro clandestina e depois oficialmente, convertendo-se progressivamente em intelectual orgânico da Revolução Argelina.
A FLN, posteriormente renomeada Governo Provisório da República da Argélia (GPRA), nunca foi um bloco monolítico, mas, na melhor definição da palavra “frente”, agregou a vanguarda política e teórica que conduziu a Argélia a sua independência, em 1962, meses depois da morte precoce de Fanon. Embora não tenha vivido para ver o dia seguinte da revolução e seus desdobramentos – como a queda do presidente eleito Ahmed Ben Bella em 1965, após a tomada militar do poder por Houari Boumédiène [18] –, Fanon viu e viveu de perto as disputas políticas travadas no interior da FLN. Esse aspecto é fundamental para contextualizar as posições tomadas nos artigos publicados no jornal El Moudjahid. No plano político interno, tratava-se, em primeiro lugar, de afirmar um nacionalismo secular e humanista no interior de uma revolução baseada na identidade muçulmana. O marxismo, aqui “estendido” à situação colonial [19], foi o instrumento inquestionável que permitiu a chamada análise concreta da situação concreta do colonialismo.
No plano externo, tratava-se de legitimar, tanto para o povo argelino quanto para a comunidade internacional em geral – na qual se destacam os fóruns multilaterais como a ONU e as instituições criadas em torno do pan-africanismo –, a necessidade, a viabilidade e a legitimidade da Revolução Argelina. Nunca será demasiado lembrar que a FLN recorreu à política das armas – e depois, do terrorismo – apenas após sucessivos fracassos políticos pelas vias democráticas: todas as tentativas legais de participação argelina na política instituída foram recebidas com violência pelo governo francês. A FLN não apenas recorreu às armas, como sua composição foi reflexo da falência das vias institucionais e, sobretudo, da superação das divisões históricas existentes no nacionalismo argelino. Nasceu assim, em 1954 [20], o Comitê Revolucionário de Unidade e Ação (Crua), protótipo da FLN, assim como seu braço armado, o Exército de Libertação Nacional (ELN) [21].
Um estudo instigante sobre o assunto foi levado a cabo por Walter Günther Lippold [22]. O autor sugere a consideração de dois elementos fundamentais para a compreensão do contexto em torno de El Moudjahid e, em consequência, para o entendimento das posições de Fanon no jornal: de um lado, uma confluência anticolonial no plano internacional africano e asiático e, de outro, uma mudança de orientação política que redefiniu o papel da propaganda revolucionária no interior da revolução. Em relação ao primeiro tópico, pode ser útil lembrar que não apenas a Argélia entrava em ebulição, mas também ela própria se inspirava em recentes derrotas totais ou parciais do colonialismo europeu, especialmente o francês, com a Guerra da Coreia (1950-1953), a Revolução Chinesa (1949), a Batalha de Dien Bien Phu (1954), a perda do Magrebe após a independência do Marrocos e da Tunísia (1956) e, sobretudo, a Conferência de Bandung, na Indonésia (1955) e os realinhamentos políticos em torno de um projeto terceiro-mundista. Em um artigo intitulado “A expansão do movimento anti-imperialista e os retrógrados da pacificação” [23], Fanon acrescenta a essas experiências, com grande empolgação, o bloco de resistência que se formava a partir do Egito e da Síria, a proposta da República Árabe Unida e as frentes anticoloniais que se estruturavam a partir de Serra Leoa, Camarões, Quênia e Congo Belga.
Internamente, sua chegada à redação do jornal, após o exílio na Tunísia [24], coincidiu com uma mudança de orientação tática nos rumos da revolução. A mudança, que também revela uma grande disputa no interior da FLN, representava a guinada da ação militar para a ação política, na qual o jornal teria uma função fundamental. Abbane Ramdane [25], amigo pessoal e parceiro político de Frantz Fanon, preocupava-se com a autoridade superdimensionada dos militares do ELN, representados por Ben Bella, e propunha, como solução, um vínculo mais estreito entre a FLN e o povo argelino, com sua cultura, seus desejos e suas aspirações. A partir da Conferência de Soummam, organizada pelo Comitê Central da FLN, o jornal foi identificado como meio de formação de quadros nacionais e obtenção de apoio externo [26].
A disputa entre Ramdane e Ben Bella foi pautada por uma grande tensão interna que resultou, mesmo após a vitória do primeiro, em seu afastamento. Por ordens dos coronéis do ELN [27], Ramdane foi assassinado, mas isso não mudou a orientação a respeito da centralidade do jornal. É essa a senda que será trilhada por Fanon na organização como intelectual orgânico da revolução. Embora se possa supor com grande chance de acerto que ele soubesse quem eram os verdadeiros mandantes do assassinato do amigo [28], fato que o deixou bastante abalado, Fanon manteve silêncio e seguiu apostando na Revolução Argelina, atuando na edição do jornal [29].
Outra missão importante designada a Fanon era unir o Magrebe à África Subsaariana. Não apenas fora delegado em 1958 no Congresso Pan-Africano de Acra [30], como manteve contato e relação com revolucionários como o congolês Patrice Lumumba, o ganense e líder político do pan-africanismo Kwame Nkrumah, o líder camaronês Félix Moumié – que também seria assassinado pelos serviços franceses –, o sindicalista queniano Tom MBoya e, sobretudo, o nacionalista angolano Holden Roberto. O objetivo do Governo Provisório da República da Argélia era criar uma frente subsaariana de solidariedade à luta argelina, mas sobretudo – seguindo uma teoria que lembra a aposta leninista na convulsão social anti-imperialista a partir de seus elos débeis – criar as condições para a disseminação ou o fortalecimento das lutas anticoloniais por todo o continente africano, como pressuposto para o desmoronamento de toda a ordem colonial.
O pan-africanismo anti-imperialista de Frantz Fanon, no entanto, foi pautado por um internacionalismo não racialista que expandia a noção de solidariedade a todos os povos submetidos ao jogo colonial-imperialista. Assim, propunha um eixo Bandung-Acra [31], que não apenas deslocasse para o Sul o polo Leste-Oeste apresentado pela Guerra Fria, mas, sobretudo, que identificasse, insuflasse e se deixasse guiar pelos interesses dos “verdadeiros” condenados em sua autodeterminação – ignorados pelas teorias e políticas de classe nos centros capitalistas e, principalmente, por seus seguidores eurocêntricos pseudorrevolucionários nos contextos concretos em que o capitalismo se estruturou a partir da colonização [32].
Essa posição rendeu uma grande receptividade ao pensamento de Fanon em países fora da África. Dois grandes exemplos de recepção de seu pensamento que antecedem o famoso prefácio de Sartre são a Itália e o Irã. A Itália foi o primeiro país, fora a França, a conhecer o pensamento de Frantz Fanon. Graças aos laços políticos entre ele e o marxista italiano Giovanni Pirelli, mas também pelos esforços editoriais deste último, os textos fanonianos encontraram uma calorosa recepção em importantes setores da esquerda italiana, muito antes de serem conhecidos no universo anglófono. A palestra de Fanon no II Congresso de Escritores e Artistas Negros, ocorrido em Roma, em março de 1959 [33], foi imediatamente traduzida para o italiano. A edição italiana de Os condenados da terra, por sua vez, é de julho de 1962 (meio ano depois de ser publicado na França), e em 1963 saiu pela editora Einaudi Sociologia della rivoluzione algerina [Sociologia da Revolução Argelina], tradução de L’An V de la Révolution Algérienne [O ano V da Revolução Argelina], publicado em 1959 pela editora de François Maspero.
O marxista italiano Giovanni Pirelli é digno de nota não apenas pela divulgação do pensamento do psiquiatra martinicano em seu país, mas porque seu nome figura na Introdução deste volume, oferecida pelo editor Jean Khalfa, ao lado de Giulio Einaudi e François Maspero, como idealizador original da presente coleção de artigos. Como anuncia o editor, “Dos três volumes planejados, ‘Écrits politiques’ [Escritos políticos], ‘Conférences politiques’ [Conferências políticas] e ‘Écrits psychosociologiques’ [Escritos psicossociológicos], só foi publicado o primeiro, sob o título Pour la révolution africaine, em 1964” [34]. É de Pirelli, juntamente com a viúva de Fanon e o editor-chefe de El Moudjahid, Redha Malek, parte da seleção de artigos que aqui se apresenta.
Pode parecer irônico, ou no mínimo surpreendente, que os escritos políticos (revolucionários) de Fanon tenham sido retirados do esquecimento justamente pelo neto e herdeiro direto do multibilionário Giovanni Battista Pirelli, o fundador da fábrica italiana de pneumáticos que leva seu nome. A biografia do intelectual e a ruptura com a família por conta da nova esquerda católica e marxista permitiram que ele identificasse nas lutas anticoloniais e antirracistas uma relação com as lutas antifascistas ainda frescas na memória italiana. Contudo, apesar da ruptura, que o privou não apenas da fortuna, mas também da possibilidade de ser enterrado no mausoléu da família, ele manteve alguns privilégios oferecidos por sua origem de classe que lhe possibilitaram, nas fileiras do Partido Socialista Italiano, transitar entre Itália, Tunísia e Paris, onde conheceu e se tornou amigo de Frantz Fanon.
Outro exemplo de camaradagem internacional, com grandes implicações políticas, é a relação de Fanon com o intelectual militante da Frente Nacional Iraniana Ali Shariati. O intelectual iraniano, que conheceu Fanon durante sua estadia em Paris entre 1959 e 1964, traduziu inúmeras de suas obras para o farsi, língua persa falada no Irã. Em seu tratado Islamologie [Islamologia], cita Fanon como um “amigo genial” e “uma das mais belas figuras heroicas daqueles tempos vis” [35]. Apesar de sua desconfiança “e até oposição” ao nacionalismo islâmico proposto por Shariati [36], Fanon se tornou uma das principais bases teóricas da Revolução dos Aiatolás no Irã. A tradução do pensamento do psiquiatra martinicano e militante argelino empreendida por Shariati teve influência em todo o espectro político iraniano, sendo reivindicado pela direita, pela esquerda e, principalmente, pelo aiatolá Ruhollah Khomeini, o fundador da revolução [37].
A pergunta que se pode fazer, quando se considera o contexto brasileiro contemporâneo, é: “Qual a relevância de se retomar o pensamento de Frantz Fanon, um revolucionário, em um período tão crítico como o nosso, e em que a revolução não se encontra mais na ordem do dia?” [38]. É possível que a leitura destes Escritos políticos ofereça várias pistas interessantíssimas para respondê-la; porém, se seguirmos as trilhas – bastante alteradas pelo tempo, é bom que se reconheça –, a tarefa da resposta ficará a cargo de cada geração [39]. A busca por respostas, no entanto, não logrará êxito se não acertarmos as contas com uma série de equívocos que foram cometidos no passado e se repetem em um loop infinito nos novos contextos históricos. É possível concordar com a afirmação do editor-chefe Redha Malek, segundo a qual “Os condenados da terra não é mais do que um desenvolvimento e um aprofundamento de temas tratados em El Moudjahid, elaborados no dia a dia da nossa redação”.
Nestes textos, assim como em Os condenados, a preocupação com o racismo e a racialização é elemento inseparável tanto do diagnóstico quanto da profilaxia revolucionária aqui proposta com entusiasmo. É espantoso – ou seria melhor dizer, previsível – constatar, por exemplo, que a recepção de Fanon pelas esquerdas brasileiras nas décadas de 1960 e 1970 tenha ocorrido sem uma discussão mais cuidadosa, não apenas sobre a temática do racismo em seu estatuto teórico [40], mas principalmente sobre a contribuição de sua análise para a análise concreta da constituição do capitalismo brasileiro em sua via colonial de entificação [41]. Foi preciso uma nova geração de intelectuais negros leitores de Fanon, formados nas fileiras do Movimento Negro Unificado do fim da década de 1970, para que o tema do racismo e seus efeitos psíquicos e culturais fosse a ele associado, mas essa recepção também não se deu sem perdas [42].
Em contrapartida, a retomada contemporânea do pensamento de Frantz Fanon encontra novas possibilidades e caminhos não menos desafiadores. As mudanças sociais, econômicas e culturais que nos separam do contexto destes Escritos políticos são enormes. Alguns fantasmas enfrentados por Fanon, no entanto, ainda hoje nos assombram: a dificuldade das esquerdas – revolucionárias ou institucionais – para entender a relação entre capitalismo, colonialismo e racismo; as permanências e atualizações do (neo)colonialismo e suas diversas manifestações de colonialidade do ser, do saber e do poder; a dificuldade teórica e política para se estabelecer uma relação dialética entre a identidade e a diferença em um projeto anti-imperialista e emancipatório; e, sobretudo, o desafio do tempo. O horizonte temporal defendido por Fanon é o futuro. A luta anticolonial – e antirracista, se quisermos – em sua tarefa sankôfica de “voltar atrás e apanhar o que ficou perdido” [43] não é, em Fanon, um retorno ao passado pré-colonial objetivamente irreabilitável e, muito menos, um apego a uma ideia metafísica e, portanto, a-histórica de identidade que desconsidera ou invisibiliza, de um lado, as diferenças a ela implícitas e, de outro, aquilo que a experiência humana tem de universal.
Longe de advogar por um universalismo abstrato, partilhado tanto pelo humanismo burguês quanto por alguns advogados de sua superação – quando desconsideram a função histórica das lutas antirracistas e sua necessidade de afirmação estética e cultural –, Frantz Fanon nos instiga a buscar uma saída dialética que nos permita rasgar os horizontes sociais postos, inclusive a afirmação da identidade – ou da diferença – no interior das perspectivas emancipatórias, sem se perder nelas. Esse talvez seja o grande desafio para as atuais gerações de intelectuais antirracistas no Brasil.
Como argumentou em tom profético, diante de seu amigo Ali Shariati, ao problematizar a necessidade e, ao mesmo tempo, os limites do nacionalismo islâmico: Tendo em vista uma tomada de consciência universal das massas populares de seus países e sua mobilização na luta defensiva contra a agressão e as tentações das ideias, métodos e soluções malévolas e suspeitas provenientes da Europa, desejo que seus intelectuais autênticos possam explorar os imensos recursos culturais e sociais escondidos no fundo das sociedades e dos espíritos muçulmanos, na perspectiva da emancipação e para a fundação de uma outra humanidade e uma outra civilização, e insuflar esse espírito no corpo cansado do Oriente muçulmano. É a você e a seus colegas que cabe cumprir essa missão. […] Entretanto, penso que reavivar o espírito sectário e religioso entravaria mais essa unificação necessária – já difícil de conseguir – e distanciaria essa nação ainda inexistente, que é no máximo uma “nação em devir”, de seu futuro ideal para aproximá-la de seu passado. [44]
[1] Deivison Faustino, Frantz Fanon: um revolucionário particularmente negro (São Paulo, Ciclo Contínuo, 2018).
[2] Cedric Robinson, “The Appropriation of Frantz Fanon”, Race and Class, v. 35, n. 1, 1993, p. 79-91.
[3] A Conferência de Bandung foi uma reunião intercontinental de 23 países asiáticos e 6 países africanos realizada entre 18 e 24 de abril de 1955 em Bandung, na Indonésia. O Terceiro Mundo, o colonialismo, o imperialismo e as independências nacionais foram os temas que se destacaram durante a conferência, influenciando importantes pensadores do pós-guerra, entre os quais Frantz Fanon e os revolucionários argelinos.
[4] Refiro-me à chamada “crise de paradigmas das ciências sociais” com a emergência de “novos” sujeitos sociais e suas implicações teóricas e epistêmicas. Ver João E. Evangelista, Crise do marxismo e irracionalismo pós-moderno (São Paulo, Cortez, 2002) e Avtar Brah, “Diferença, diversidade, diferenciação”, Cadernos Pagu, n. 26, 2006, p. 329-76. Disponível aqui.
[5] Anthony C. Alessandrini, “Introduction: Fanon Studies, Cultural Studies, Cultural Politics”, em Frantz Fanon: Critical Perspectives (Londres, Routledge, 1999).
[6] Achille Mbembe, “A universalidade de Frantz Fanon”, Centro de Estudos Comparatistas, 2012.
[7] Stuart Hall, “The After-Life of Frantz Fanon: Why Fanon? Why Now? Why Black Skin, White Masks?”, em Alan Read (org.), The Fact of Blackness: Frantz Fanon and Visual Representation (Londres, Institute of Contemporary Arts and International Visual Arts, 1996), p. 12-37.
[8] Deivison Faustino, A disputa em torno de Frantz Fanon: a teoria e a política dos fanonismos contemporâneos (São Paulo, Intermeios, 2020).
[9] Ato Sekyi-Otu, Fanon’s Dialectic of Experience (Londres, Harvard University Press, 1996).
[10] György Lukács, Introdução a uma estética marxista: sobre a categoria da particularidade (trad. Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978).
[11] Ver Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas (trad. Renato da Silveira, Salvador, Edufba, 2008).
[12] Ver Karl Marx, “A teoria moderna da colonização”, em O capital: crítica da economia política, Livro I: O processo de produção do capital (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013), p. 836-8.
[13] Paris Yeros e Praveen Jha argumentam que as revoluções independentistas africanas e asiáticas empreendidas sob o “espírito de Bandung” foram um dos fatores primordiais da crise de lucratividade e do desmoronamento do “Welfare State keynesiano” nos centros capitalistas. Paris Yeros e Praveen Jha, “Neocolonialismo tardio: capitalismo monopolista em permanente crise”, em Agrarian South, 2020. Disponível aqui.
[14] Deivison Faustino, “Frantz Fanon, a branquitude e a racialização: aportes introdutórios a uma agenda de pesquisas”, em Tânia M. P. Müller e Lourenço Cardoso (orgs.), Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil, v. 1 (Curitiba, Appris, 2017), p. 210-41.
[15] “A explosão não vai acontecer hoje. Ainda é muito cedo… ou tarde demais” (Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas, cit., p. 25).
[16] “Carta a Ali Shariati”, p. 145 deste volume.
[17] Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas, cit.
[18] Ver Walter Günther Lippold, Frantz Fanon e a rede intelectual argelina: circulação de ideias revolucionárias e sujeito coletivo no jornal El Moudjahid (1956-1962) (tese de doutorado em história, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2019).
[19] “Quando se percebe na sua imediatez o contexto colonial, é patente que aquilo que fragmenta o mundo é primeiro o fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal raça. Nas colônias, a infraestrutura econômica é também uma superestrutura. A causa é consequência: alguém é rico porque é branco, alguém é branco porque é rico. É por isso que as análises marxistas devem ser ligeiramente estendidas a cada vez que se aborda o problema colonial” (Frantz Fanon, Os condenados da terra, trad. Enilce Albergaria Rocha e Lucy Magalhães, Juiz de Fora, Ed. UFJF, 2006, p. 56).
[20] Fanon chegou a Blida em 1953. Ver Deivison Faustino, Frantz Fanon, cit.
[21] Walter Günther Lippold, Frantz Fanon e a rede intelectual argelina, cit.
[22] Idem.
[23] Ver p. 111 deste volume.
[24] Fanon se exilou com sua família na Tunísia após romper oficialmente com a administração francesa na Argélia por meio de uma carta aberta ao ministro residente, na qual denunciava as condições estruturais de sofrimento psíquico causadas pelo colonialismo. Ver Deivison Faustino, Frantz Fanon, cit.
[25] O “arquiteto da revolução argelina”. Ver David Macey, Frantz Fanon: A Biography (Londres, New Left Books, 2012), p. 81.
[26] Walter Günther Lippold, Frantz Fanon e a rede intelectual argelina, cit.
[27] “No entanto, na capa do El Moudjahid (1962, v. 1, p. 460), número 24, publicado em 29 de maio de 1958, está a foto de Ramdane e a manchete de que foi abatido pelo inimigo francês: ‘Abbane Ramdane est mort au champ d’honneur’. Quem controlava esse tipo de informação era o Comitê de Coordenação e Execução (CCE), que o repassava ao editor-chefe do jornal, Redha Malek. O editor-geral de ambas as versões de El Moudjahid (em francês e em árabe) era Redha Malek, que respondia diretamente a Ahmed Boumendjel e ao ministro da Informação, Mhamed Yazid” (Walter Günther Lippold, Frantz Fanon e a rede intelectual argelina, cit.).
[28] O depoimento de Simone de Beauvoir a esse respeito é bastante intrigante: “O povo argelino era o seu povo [...] sobre as dissensões, as intrigas, as liquidações e as oposições que mais tarde iriam provocar tantas agitações, Fanon sabia muito mais do que podia dizer. Esses segredos sombrios, e talvez também hesitações pessoais, davam às suas palavras um tom enigmático, obscuramente prático e atormentado. [...] ‘tenho na memória duas mortes que não me perdoo: a de Abbane e a de Lumumba’, dizia” (Simone de Beauvoir, As palavras e as coisas, trad. Maria Helena Franco Martins, 2. ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2009, p. 644; grifos meus).
[29] Não se pode esquecer, no entanto, que seu nome estava na lista daqueles que seriam executados caso se tornassem obstáculo para a liderança militar da FLN. Ver David Macey, Frantz Fanon, cit.
[30] Ver “O combate solidário dos países africanos”, p. 119 deste volume.
[31] Ver “A expansão do movimento anti-imperialista e os retrógrados da pacificação” e “O combate solidário dos países africanos”, p. 111 e 119 deste volume.
[32] “Escravos de estruturas feudais e patriarcais solidificadas, os camponeses, os khemmas, os trabalhadores agrícolas, os pequenos artesãos, que hoje constituem 82% da população argelina, mantiveram-se praticamente à margem da ação social e política, da qual participavam apenas episodicamente e muitas vezes de maneira inconsciente” (Frantz Fanon, “A consciência revolucionária argelina”, p. 73 deste volume).
[33] A palestra foi posteriormente anexada por Fanon a Os condenados da terra, cit., p. 237-84.
[34] Jean Khalfa, “Introdução”, p. 25 deste volume.
[35] “Carta a Ali Shariati”, p. 145 deste volume.
[36] A “interpretação que você faz do renascimento do espírito religioso e os esforços que você empreende para mobilizar essa grande potência – que atualmente está às voltas com os conflitos internos ou acometida de paralisia –, visando à emancipação de uma grande parte da humanidade ameaçada pela alienação e pela despersonalização e cujo retorno ao islã aparece como um recuo para dentro de si mesma, será o caminho que você tomou, a exemplo de Senghor, Jomo, Kenyatta, Nyerere e Kateb Yacine, com sua empreitada de renovação do nacionalismo africano, ou então da renovação do classicismo de Henri Alleg. Quanto a mim, embora meu caminho se separe do seu, e até mesmo se oponha a ele, estou convencido de que eles acabarão por se encontrar no rumo do destino em que o homem vive bem” (“Carta a Ali Shariati”, p. 145 deste volume; grifos meus).
[37] Abdollah Zahiri, “Frantz Fanon in Iran: Darling of the Right and the Left in the 1960s and 1970s”, Interventions – International Journal of Postcolonial Studies, 24 abr. 2020.
[38] Pergunta formulada pela cientista política sul-africana Jane Anna Gordon em “Revolutionary in Counter-Revolutionary Times: Elaborating Fanonian National Consciousness into the Twenty-First Century”, Journal of French and Francophone Philosophy – Revue de la Philosophie Française et de Langue Française, v. 19, n. 1, 2011, p. 37-47.
[39] “No interior de uma relativa opacidade, cada geração deve descobrir sua missão, cumpri-la ou traí-la” (Frantz Fanon, Os condenados da terra, cit.).
[40] Deivison Faustino, A disputa em torno de Frantz Fanon, cit.
[41] José Chasin, A miséria brasileira: 1964-1994 – do golpe militar à crise social (São Paulo, Estudos e Edições Ad Hominem, 2000).
[42] Deivison Faustino, A disputa em torno de Frantz Fanon, cit.
[43] Sankofa é um provérbio implícito no ideograma acã, bastante conhecido no pensamento antirracista brasileiro.
[44] “Carta a Ali Shariati”, p. 145 deste volume; grifos meus.