30 Março 2021
“Como sinal da leitura de Dante do papa, o santo de quem leva o nome, Francisco de Assis, protagonista do canto XI do Paraíso, figura cara não só a ele, mas também a Dante, tanto que o pontífice estabelece um sugestivo paralelo entre o santo e o poeta. Assim, é chegado o momento do apelo final, que se esgarça e se irradia para diferentes destinos: às múltiplas culturas, à escola, às comunidades cristãs, aos artistas e a todos aqueles que procuram 'a verdadeira paz e a verdadeira alegria' à medida que avançam na 'peregrinação de vida e da fé... até chegarmos à meta última de toda a humanidade, o amor que move o sol e as outras mais estrelas', como diz o último verso desse poema humano e divino”, escreve Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il sole 24 Ore, 28-03-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Aniversário de Dante. O Papa Francisco promulgou a "Candor Lucis aeternae" dedicada ao grande Dante que, mesmo olhando para as misérias humanas e as vergonhas da história, se fez profeta da esperança. No dia 25 de março, solenidade da Anunciação da maternidade de Maria, inicia-se simbolicamente a viagem de Dante para a “floresta escura”. E é precisamente nesta data que o Papa Francisco publicou a sua Carta Apostólica Candor Lucis aeternae ("Esplendor da Luz Eterna") para o sétimo centenário da morte do autor daquele "sacro poema / em que tem posto a mão o céu e a terra" (Paraíso XXV, 1-2). Claro, pode ser surpreendente que um pontífice, e com ele seus antecessores, celebrem aquele que lançou no inferno entre os simoníacos, no terceiro giro da Malebolgia, um papa enquanto ainda estava vivo, Bonifácio VIII Caetani. Mas é igualmente verdade que Alighieri era um fiel inabalável e um teólogo cristão refinado.
Pois bem, uma grande parte inicial da Carta do Papa Francisco recolhe as vozes dos seus antecessores e assume as palavras claras de Paulo VI: “Nem me custa recordar que a voz de Dante se ergueu, pungente e severa, contra mais de um Romano Pontífice, e teve amargas reprimendas para instituições eclesiásticas e pessoas que foram ministros e representantes da Igreja”. Mas, como dissemos, é indubitável a certeza de que “tais atitudes inexoráveis nunca abalaram a sua fé católica firme nem o seu afeto filial à santa Igreja”. A Carta Apostólica transforma-se, assim, num verdadeiro mapa essencial da obra do Poeta, a partir de o núcleo germinativo da própria biografia de Alighieri evocado em todas as suas etapas, especialmente na "pungente melancolia" do exilado e peregrino, longe da amada e odiada Florença e dos "celerados florentinos". Mas, como o Papa Francisco finamente sugere, esta amarga experiência pessoal é transformada e sublimada "em um paradigma da condição humana" marcada por um caminho que tem duas estrelas de referência: “o desejo profundo, presente no ânimo humano, e ponto de chegada de todo autêntico itinerário humano, a felicidade dada pela visão do Amor que é Deus”. Assim se configura a missão do Poeta, que se ergue como profeta da esperança no realismo do seu olhar, na imponente sequência de misérias e vergonhas com que se pavimenta o caminho da história. Sugestiva é a referência à Epístola XIII a Cangrande della Scala em que Dante confessa que "a finalidade do todo e da parte é tirar os viventes nesta existência dum estado de miséria e conduzi-los a um estado de felicidade". Com esse programa, observa o Papa, ele "ascende a mensageiro de uma nova existência, a profeta de uma nova humanidade que anseia pela paz e a felicidade", tirando-a da lama infernal degradante para conduzi-la ao fulgor da bem-aventurança celestial.
Dante é, portanto, o "cantor do desejo humano", precisamente no sentido etimológico do termo que remete ao sideral, às estrelas, sem ceder à tentação do cansaço e do desânimo, como o adverte o guia Virgílio: “Mas por que tornas da tristeza ao meio? Por que não vais ao deleitoso monte, que o prazer todo encerra no seu seio?” (Inferno I, 76-78). Duas forças efetivas atuam neste itinerário: por um lado, a misericórdia de Deus que estende sua mão libertadora e, por outro, a liberdade humana que a segura para se livrar do vórtice tenebroso do mal. É interessante notar que o Papa Francisco reserva uma reflexão intensa à dialética graça-liberdade ao adotar como emblema o Rei Manfredi, filho de Frederico II, que no limiar da morte, trespassado por dois golpes de espada, confessa: “a Deus piedoso Alma entreguei, chorando arrependido. Fui de horrendos pecados criminoso, Mas a Bondade Infinda acolhe e abraça Quem perdão lhe suplica pesaroso” (Purgatório III, 119-123). É fácil ver a parábola do Evangelho do "Filho Pródigo" em filigrana nessas palavras.
A meta última do percurso da vida humana e do desejo autêntico é a visão suprema de Deus, mas é significativo que na contemplação da mais pura transcendência da Trindade, Dante enxergue um rosto humano: é aquele de Cristo, o Verbo divino e eterno feito carne no ventre de Maria. Por isso a “circulação”, a dinâmica trinitária, de “Da excelsa Luz três círc’los dicernidos Por cores três, de igual periferia... A própria efígie humana oferecia” (Paraíso XXXIII, 127-131). Como comenta o Papa Francisco, “o ser humano, com a sua carne, pode entrar na realidade divina, simbolizada pela rosa dos bem-aventurados. A humanidade, na sua realidade concreta, com os gestos e as palavras diárias, com a sua inteligência e afetos, com o corpo e as emoções, é assumida em Deus, no qual encontra a verdadeira felicidade e a realização plena e última, meta de todo o seu caminho”.
Uma bela surpresa surge em um capítulo da Carta semelhante a um tríptico totalmente feminino. Três mulheres sobrem ao palco. A primeira é obviamente Maria, "Virgem Mãe, por teu Filho procriada", exaltada no célebre hino do canto final XXXIII, mas já contemplada a convite de São Bernardo como "a face, que à de Cristo Mais se assemelha" (Paraíso XXXII, 85-86). A segunda é Beatriz, “o amor humano transfigurado pelo amor divino”, como destaca o pontífice, citando a voz da mulher logo no início do caminho de busca do poeta: “Sou Beatriz, que envia-te ao que digo, Amor conduz-me e faz-me instar contigo”(Inferno II, 70,72). E, por fim, eis Lúcia, uma santa mártir de Siracusa, que intervém tanto nos inícios infernais da viagem de Dante, tanto na subida à montanha do Purgatório, como na "cândida rosa" paradisíaca, sempre intercedendo pelo poeta. Mas não podia faltar, como sinal da leitura de Dante do papa, o santo de quem leva o nome, Francisco de Assis, protagonista do canto XI do Paraíso, figura cara não só a ele, mas também a Dante, tanto que o pontífice estabelece um sugestivo paralelo entre o santo e o poeta. Assim, é chegado o momento do apelo final, que se esgarça e se irradia para diferentes destinos: às múltiplas culturas, à escola, às comunidades cristãs, aos artistas e a todos aqueles que procuram "a verdadeira paz e a verdadeira alegria" à medida que avançam na “peregrinação de vida e da fé ... até chegarmos à meta última de toda a humanidade, o amor que move o sol e as outras mais estrelas”, como diz o último verso desse poema humano e divino.
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Carta apostólica ao cantor da luz. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU