23 Dezembro 2020
O local para dormir se tornou um verdadeiro pesadelo desde que indígenas moradores da comunidade Ka’Ubanoko, localizada na zona oeste de Boa Vista, receberam no dia 17 de setembro a informação de despejo por parte da Operação Acolhida do Exército Brasileiro. O prazo para que as famílias permanecessem no local era até 28 de outubro, mas ele foi adiado. Uma nova data foi sinalizada pela Operação Acolhida, marcada para este mês de dezembro, mas a incerteza de quando ela acontecerá causa aflição nos moradores.
A reportagem é de Ana Lucia Montel, publicada por Amazônia Real, 18-12-2020.
Diante de constantes ameaças de despejo, as famílias lutam para permanecer em Ka’Ubanoko. A ocupação foi criada em fevereiro de 2019 e é composta por 150 famílias venezuelanas (a maioria indígenas do povo Warao). O nome significa “meu espaço para dormir”. No último dia 9, a ocupação recebeu 46 novos moradores, que se retiraram de um dos abrigos da capital de Roraima.
“Peço que o governo brasileiro nos veja como seres humanos, por isso faço um chamado às autoridades. Temos informações que querem nos tirar daqui de Ka’Ubanoko. Queremos trabalho, não queremos dar dor de cabeça ao estado. Eu sugiro que as autoridades nos ajudem, que não nos tire daqui. Porque Ka’Ubanoko é nossa casa, estamos vivendo aqui, não podem fazer isso, há muitas crianças, muitos idosos, mulheres grávidas”, relatou Fidel Torres, 64 anos, líder da ocupação e indígena do povo Warao, que migrou da Venezuela fugindo das dificuldades econômicas do país.
O destino de 900 pessoas continua incerto. Nesta semana, de forma organizada, lideranças indígenas da ocupação tomaram um passo importante na luta para tentarem permanecer na ocupação. Em uma assembleia geral realizada no dia 15 (terça-feira), os moradores protocolaram o Documento de Consulta Livre Prévia e Informada e encaminharam para as autoridades estaduais e federais, como Ministério Público Federal, Operação Acolhida do Exército Brasileiro.
A reportagem da Amazônia Real acompanhou a assembleia dos moradores da ocupação e presenciou o clima de tensão e expectativa com a possibilidade de remoção. O encontro demonstrou que os indígenas estão e vão continuar fazendo valer suas lutas. Os moradores esperavam que o comandante da Operação Acolhida, general Antônio Barros, fosse comparecer na assembleia. O temor é que em janeiro voltem as pressões pela realocação forçada.
“Ninguém pode tomar decisões por nós, somos indígenas e conhecemos nosso direito, conhecemos nosso valor e lutamos pela nossa sobrevivência há muito tempo. Ninguém pode chegar e decidir o que tem que ser feito sem saber o que achamos, nós mesmos nos reunimos, todos juntos, para criar as nossas propostas e condições”, enfatiza Leanny Torres, cacique indígena Warao.
A Operação Acolhida apresenta a alternativa de realocá-los para um dos 11 abrigos para migrantes existentes em Boa Vista. Diante disso, as lideranças indígenas da ocupação solicitaram a realização de uma consulta prévia com as famílias que residem no local para escutar e propor propostas.
Leanny Tores, uma das lideranças durante sua fala (Foto: Yolanda Mêne | Amazônia Real)
“Apesar de todos os desafios que vivemos desde o momento que chegamos ao Brasil, temos andado com dignidade com nossas lutas. Nessa assembleia organizada pelas lideranças de Ka’Ubanoko, pela primeira vez vamos apresentar nossas propostas a quem que nos tirar daqui. Propostas que foram escolhidas através de uma consulta livre, prévia e informada, consulta que foi construída pelas mulheres, pelas crianças pelos homens, Warao, Eñepa e Pemon que vivem aqui em Ka’Ubanoko”, diz Leanny Torres.
O documento escrito pelos moradores indígenas inicia dizendo que exigir uma consulta gratuita, prévia e informada é um mecanismo para a defesa dos direitos dos povos e comunidades indígenas, diante dos desafios do mundo ocidental.
Conforme convocatória realizada pelos indígenas Warao foram convidados para participar da Assembleia Geral, Operação Acolhida, Ministério Público Federal (MPF) Organização Internacional para Imigrações (OIM), Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), Defensoria Pública da União (DPU), Conselho Indígena Missionário (CIMI), Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF), Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados (SJMR), Conselho Indígena de Roraima (CIR), Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST), Pastoral do Migrante, Fundo de populações das Nações Unidas (UNFPA), Agência Adventista de desenvolvimento e Recursos Assistências (ADRA), Cáritas Brasileira, Igreja Católica.
Os moradores de Ka’Ubanoko esperam que cada instituição ou organização valorize e respeite a lei que protege os povos originários das etnias venezuelanas: Warao, Pemon, Karina e Eñepa, conforme estabelecido pela Constituição Federal do Brasil, nos artigos 231 e 232, e assim também, garantam o bem-estar das famílias da ocupação.
As propostas apontam caminhos à reorganização do processo de acolhimento de migrantes indígenas nos abrigos. O reordenamento do espaço por meio de mudanças que permitam moradias menos quentes, a existência de cozinhas comunitárias, a liberdade de ir e vir, a possibilidade de existir geladeiras e ventiladores, e o respeito à cultura e às tradições dos povos sustentam as principais reivindicações. Uma novidade no documento é a proposta para que indígenas possam participar do programa de interiorização da Operação Acolhida.
Os moradores propõem que a segurança seja aumentada pelo Exército, e solicitam, principalmente, que os indígenas possam ser contratados para fazer a segurança e que esse trabalho seja remunerado. Para educação, foi apresentada uma educação específica, intercultural e bilíngue, de acordo com a Legislação Nacional de Apoio a Educação Escolar Indígena, e que haja inclusão de jovens e adultos nas universidades, por um sistema diferenciado de ingresso.
“Para nós, a educação não se limita à escola ou a outros processos considerados formais, mas incluindo diferentes processos de ensino e aprendizagem e socialização do conhecimento”, diz o documento de consulta.
Para alimentação, os indígenas propõem que os abrigos possam ter uma cozinha comunitária, e que o cardápio deve ser orientado por líderes indígenas. Propõem ainda que os abrigos contratem cozinheiros indígenas para que eles mesmo possam preparar a alimentação.
Na área da saúde, solicitam que seja organizada uma estação de saúde dentro do abrigo, como uma pequena enfermaria e farmácia indígena, atendendo aos cuidados primários e emergenciais. Para a cultura, apresentaram que seja criada uma fundação de cultura fora dos abrigos, e que sua coordenação seja composta por lideranças Warao, Karina e Eñepa. Com objetivo de fortalecer a sabedoria, promover, manter e preservar as diferentes culturas que vivem em Ka’Ubanoko e nos outros abrigos.
A falta de oportunidades laborais vem causando danos psicológicos nos habitantes dos abrigos, pois, convivem em um espaço com falta de privacidade, com severa vigilância militar e regras rigorosas. Os indígenas solicitam que sejam oferecidos cursos de capacitação nas áreas. O objetivo com a capacitação é que empresas possam contratar seus trabalhos, sendo uma alternativa para alcançar melhores condições de vida e autonomia econômica.
Consulta realizada pela Operação Acolhida (Foto: Yolanda Mêne | Amazônia Real)
Após receber dos indígenas a Consulta Previa Livre e Informada, a Operação Acolhida, em nota enviada à Amazônia Real, afirma que no momento está sendo realizado o processo de consulta aos moradores indígenas conforme protocolos previstos. Tal processo deve ser finalizado em dezembro e indicará a intenção da comunidade indígenas que atualmente vive naquele espaço.
A operação informou ainda que há plenas condições para que se finalize a ocupação de um espaço que não oferece as condições mínimas previstas na legislação vigente. O único interesse é de acolher, de acordo com os preceitos legais.
“Em Ka’Ubanoko tenho liberdade para sair e procurar trabalho, dividimos a alimentação, vivemos em uma comunidade organizada, dizem que o local não tem condições para que possamos morar aqui, mas eu digo que hoje tem sim, não tinha quando chegamos aqui, era tudo abandonado, sujo, o local era usado por facções criminosas, mas chegamos e transformamos esse lugar em nossa casa”, explica Baudilho Santana, um dos fundadores da ocupação.
O procurador da República Alisson Marugal, do Ministério Público Federal (MPF), informou que a instituição vem acompanhado o caso de Ka’Ubanoko desde outubro, para garantir que os moradores sejam atendidos. “O principal objetivo do MPF é permitir que a comunidade fale, traga suas demandas, as suas propostas, e que sejam efetivamente ouvidas pela força tarefa, pelo Estado brasileiro. Esse é o primeiro passo”, diz Marugal.
O procurador informou ainda que a Operação Acolhida não pode retirá-los antes que seja analisado o documento entregue da Consulta Prévia Livre e Informada.
“Após a entrega desse documento, partimos para a segunda fase do processo de consulta da ocupação Ka’Ubanoko. Esses moradores não podem ser retirados do local até que a Operação Acolhida apresente uma resposta às demandas apresentadas e solicitadas pelos moradores. Temos que aguardar, não sabemos quando essa resposta irá chegar”, afirma o procurador.
Imigrantes e indígenas venezuelanos moradores da Ocupação Ka’Ubanoko, em Boa Vista
(Foto: Yolanda Mêne | Amazônia Real)
“As crianças não comem a comida que eles dão para nós, eles choram porque não gostam. Eu já vi militares com spray de pimenta, não temos privacidade, não podemos receber visitas da nossa família, as barracas são quentes, não dá para viver no abrigo, eu não consegui, por isso que vim para Ka’Ubanoko”. A lembrança é de Ramon Parele, 56 anos. Ele, é um dos 46 indígenas da etnia Eñepa, que no dia 9 de dezembro deixaram o abrigo indígena Pintolândia, gerido pelo Exército, e agora moram em Ka’Ubanoko.
Alisson Marugaul, procurador do MPF (Foto: Yolanda Mêne | Amazônia Real)
Caso seja preciso ir para o abrigo, os indígenas reivindicam que esse local seja administrado em conjunto, e não que normas de vivências sejam impostas a eles. “Vários moradores têm experiência de abrigos, somos nós que sabemos das nossas necessidades, então também temos que fazer parte da coordenação dos abrigos, só pedimos que esses locais sejam adaptados culturalmente com nosso modo de viver”, Ramon Parele.
A ocupação Ka’Ubanoko, palavra na língua indígena Warao que significa “meu espaço para dormir”, abriga aproximadamente 226 migrantes venezuelanos não-indígenas (criolos). Os indígenas alertam que, mesmo diante da entrega da consulta prévia, não há garantia para que o processo de consulta seja respeitado pelas forças policiais de Roraima e pela Operação Acolhida.
Imigrantes e indígenas venezuelanos moradores da Ocupação Ka’Ubanoko (Foto: Yolanda Mêne | Amazônia Real)
“Vamos seguir com nossa resistência, sabemos que não vamos poder ficar em Ka’Ubanoko para sempre, nós temos consciência disso, porém precisamos de tempo, de paciência para que todas as famílias que moram aqui encontrem uma outra alternativa, esperamos que esse documento seja analisado com respeito às nossas vidas, pois somos seres humanos”, pede Leanny Torres.
Segundo dados da Operação Acolhida, dos 100 mil venezuelanos que vivem em Roraima, apenas 7 mil vivem em 13 abrigos. Atualmente, há três tipos de abrigos: para família, solteiros e indígenas. Todos os abrigos públicos são geridos pelo Exército brasileiro. A transferência compulsória para outras regiões do Brasil ou o retorno à Venezuela aparecem como objetivos estratégicos do plano de controle militar do fluxo migratório.
Ocupação Ka’Ubanoko, em Boa Vista (Foto: Yolanda Mêne | Amazônia Real)
A série “Migrante cidadão” da agência Amazônia Real acompanhou desde dezembro de 2017 os deslocamentos dos indígenas venezuelanos Warao nas cidades de Pacaraima e Boa Vista (RR), Manaus (AM), Belém e Santarém (PA).
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Roraima. Em assembleia, indígenas venezuelanos defendem permanência em Ka’Ubanoko - Instituto Humanitas Unisinos - IHU