31 Agosto 2020
Muitas famílias preferem viver fora do abrigo público, mesmo em condições precárias e sem emprego.
A reportagem é de Catarina Barbosa, publicada por Brasil de Fato, 27-08-2020.
Em seu Protocolo de Consulta, elaborado com apoio do MPF, os Warao pedem respeito e participação nas decisões sobre seu povo (Foto: Catarina Barbosa/Brasil de Fato)
Os Warao, assim como outras nações indígenas, têm direitos assegurados por uma série de normas legais. Esses documentos (leia mais no final da reportagem) afirmam que eles deveriam ser consultados sobre o seus próprios destinos, mas isso não acontece.
É por isso que, no Pará, muitos preferem viver fora do abrigo oferecido pela prefeitura de Belém, mesmo sem emprego e em situação de vulnerabilidade.
Benícia Torres Pérez mora no bairro do Tapanã, em uma comunidade conhecida como Tapanãzinho, periferia de Belém. A casa tem quatro quartos de madeira, em palafitas. A comunidade não possui saneamento básico e, quando chove, o local inunda, trazendo água com esgoto e lixo para dentro das moradias.
Sua filha, Denise Pérez, tem um ano e claros sinais de desnutrição. A menina é uma dos muitos Warao brasileiros. Benícia diz que está no Pará há dois anos, sendo um deles nessa casa. O local tem alto índice de criminalidade. Em dois anos, eles já foram assaltados quatro vezes.
Benícia Perez e sua filha Denise, uma das Warao nascida no Brasil. (Foto: Catarina Barbosa/Brasil de Fato)
No distrito do Outeiro, ainda na região metropolitana de Belém, outras famílias Warao moram de aluguel. No local, os indígenas passam dificuldades. Sem emprego, eles mal conseguem dinheiro para comprar comida para se alimentar, mas ainda assim, relatam que a vida no abrigo é "muito difícil".
Do outro lado da cidade, no distrito industrial de Ananindeua, Jorge Zapata e mais 17 pessoas moram em casas pequenas, sem janelas e pagando contas de luz que chegam a R$ 800 mensais.
Ainda assim, ele diz que não gostaria de sair de lá porque seu filho, um indígena com transtornos mentais, não consegue viver em harmonia com os outros. "É complicado", resumiu ele, que admite que gostaria de receber mais apoio do poder público.
Crianças brincam embaixo de Jambeiro em um terreno próximo ao local onde vivem, em Ananindeua. (Foto: Catarina Barbosa/Brasil de Fato)
Além de Benícia e Jorge, a reportagem visitou cerca de 60 famílias Warao na comunidade Jardim Cidadania, no bairro do Curuçambá, também em Ananindeua, na região metropolitana de Belém, que gostam do local em que vivem e não pensam em voltar para o abrigo.
Um dos motivos, além da autonomia, é que o local lembra muito o espaço em que eles viviam na Venezuela. "Nossos ancestrais sempre viveram em harmonia com a natureza, razão pela qual nossa história está profundamente ligada ao ambiente fluvial, onde vivemos tradicionalmente em palafitas, na região do baixo Delta do rio Orinoco", diz um trecho do protocolo de consulta narrado pelos indígenas que estavam no espaço.
Apesar das semelhanças e do lugar ficar às margens do rio Maguari, não há saneamento básico, a energia elétrica foi puxada de forma improvisada e apenas dois lotes são, de fato, dos Warao, porque foram doados por um morador.
Inicialmente o local abrigava apenas seis famílias Warao, mas depois outras foram chegando. Do total de lotes, somente dois são regularizados. Mas enquanto as obras do porto – previstas para o espaço – não começam, os Warao estão felizes.
"Eu espero que possam regularizar esse espaço aqui para todos. Warao não quer fazer mal para ninguém, a gente só quer ter o direito de poder continuar existindo", disse Carlo Zapata, mostrando, com orgulho, a comunidade que ajudou a construir.
Zapata diz, no entanto, que teme que o espaço não se regularize porque não sente confiança na prefeitura, e sabe que talvez que não possa permanecer ali, onde apesar dos problemas se sente bem. “A prefeitura fala para nós que vai fazer um acordo, mas não sabemos quando vai sair esse acordo. Nós gostamos de morar assim, não queremos morar dentro da cidade. Nossa cultura Warao é assim”
O Brasil de Fato procurou a prefeitura de Ananindeua para saber quais assistências são oferecidas aos indígenas no município, mas até o fechamento da reportagem não houve resposta.
"O governo não pode nos consultar apenas na última hora, quando já tiver tomado uma decisão sobre algo que seja de importância para o nosso povo". A citação consta no Protocolo de Consulta Prévia Livre e Informada dos Warao, elaborado com o apoio do Ministério Público Federal (MPF), lançado no dia 13 de julho.
O documento, escrito pelos próprios indígenas, é uma forma de evitar possíveis violações de Direitos Humanos: "Não queremos ser explorados, nem marginalizados. Não queremos ser tratados de qualquer forma, queremos respeito ao nosso povo e à nossa cultura", dizem os Warao, em outro trecho.
A consulta prévia é um instrumento criado pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989, da qual o Brasil é signatário. Em linhas gerais, o objetivo do instrumento é garantir o direito dos povos indígenas de serem consultados sempre que puderem ser afetados por uma medida administrativa ou legislativa.
As formas autônomas de tomada de decisões sociais e políticas dos indígenas estão asseguradas também pela Constituição Federal, pela Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, pela Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, pela Lei de Migrações (lei n.º 13.445), de Refúgio (lei nº 9.474) e por medidas de assistência emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente do fluxo migratório provocado por crise humanitária (lei n.º 13.684).
Apesar da diversidade de marcos legais sobre o tema, o procurador do MPF, Felipe de Moura e Palha, afirma que há no Brasil muitos entraves a serem superados para garantia dos direitos dessas populações, sobretudo, pela falta de diálogo.
"Como o protocolo foi construído há pouco tempo, nós frisamos o que é básico. Não existe e não tem como funcionar na política Warao grupo de trabalho sem a participação dos Warao. É impossível você conceber políticas públicas, executar políticas públicas sem participação", conclui.
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“Não queremos ser explorados, nem marginalizados”: indígenas Warao pedem autonomia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU