10 Outubro 2020
Em plena pandemia, comunidade Ka Ubanoko com mais de 800 migrantes, venezuelanos e indígenas, recebe ordem para deixar espaço que ocupa desde de março de 2019, em Boa Vista, Roraima. Lideranças reagem: “Não queremos ser tutelados nem obrigados a viver em condições de subordinação”.
A reportagem é de Pe. Jaime C. Patias, conselheiro Geral da Congregação dos Missionários da Consolata para o Continente América.
Às vésperas do Dia Mundial dos Migrantes e Refugiados e em meio à pandemia da Covid-19, a Operação Acolhida em Boa Vista comunicou, no dia 17 de setembro, a ordem de despejo da comunidade Ka Ubanoko (dormitório comum na língua warao) formada por 850 migrantes venezuelanos, indígenas das etnias warao, pemon, eñepa e kariña, e por não indígenas. A decisão foi tomada pela Força Tarefa do Exército brasileiro, coordenador da Operação Acolhida, apesar de não contar com a aprovação das entidades que fazem parte da Operação Acolhida. A alegação é que o Clube dos Servidores, dono do terreno no “antigo Clube do Trabalhador”, quer reabilitar o local para atender jovens e adolescentes.
Crianças em atividades na comunidade Ka Ubanoko. (Foto enviada por Pe. Jaime C. Patias)
Era o início do mês de março de 2019 quando mais de 600 venezuelanos, dentre os quais, 350 indígenas das etnias warao e eñepa, e 250 não-indígenas ocuparam o espaço. Todos estavam fora dos abrigos, muitos nas ruas e praças, outros à sobra de cajueiros no bairro Pintolândia. Os missionários da Consolata, por meio da Equipe Itinerante, acompanharam o grupo desde o início e, juntamente com a diocese de Roraima, instituições e ONGs, vêm dando apoio à comunidade.
Crianças na comunidade Ka Ubanoko. (Foto enviada por Pe. Jaime C. Patias)
Para conhecer mais sobre o Ka Ubanoko, em especial sobre os indígenas warao do Delta Amacuro na Venezuela, assista o Documentário “Odisseia Warao” produzido pelos jornalistas Marco Bello e Paolo Moiola da revista Missioni Consolata.
A odisseia continua. Os moradores do Ka Ubanoko devem desocupar o local até 28 de outubro. A única alternativa oferecida aos indígenas é um novo Abrigo em Jardim Floresta. Para os não indígenas, existe a possibilidade de interiorização em outros estados, ir para Abrigos ou assumir um aluguel. A ordem pegou de surpresa a comunidade inter-étnica que tem uma história de lutas e vem mostrando capacidades de organização e autodeterminação na gestão do espaço utilizado por indígenas não-indígenas. Eles se recusam deixar o espaço sem uma consulta livre e escreveram uma carta explicando os motivos. Pedem diálogo e solicitam a permanência, ainda que temporária, no local, por entender que “o contexto de pandemia não é apropriado para um deslocamento em massa”.
Estamos diante de migrantes e refugiados, mas também de povos indígenas que se consideram deslocados interno, sempre “em fuga”. Este é justamente o tema do Dia Mundial do Migrante e do Refugiado 2020 celebrado neste domingo, (27 de setembro): “Forçados, como Jesus Cristo, a fugir”. Nesse sentido, a Congregação das Irmãs Missionárias Scalabrinianas, promove de 14 a 30 de setembro, a “Campanha Em fuga” para sensibilizar os olhares para as situações de deslocamento interno no mundo, suas causas e consequências. Podemos aplicar essa situação à população do Ka Ubanoko, forçados a se deslocarem.As lideranças não aceitam a decisão arbitrária. “Temos uma organização segundo os nossos usos e costumes com a presença dos caciques. Como povo indígena temos direito a uma consulta livre, prévia e informada”, explica Leany Torres Moraleda, liderança warao da comunidade. “Nós somos povos indígenas conscientes da nossa realidade. Eles pensam que podem decidir por nós só por que somos indígenas migrantes. Nós conhecemos nossa história. Não somos migrantes, somos da América toda. Foram os colonizadores que nos forçaram a fugir para outros espaços, mas agora estamos regressando. Quando decidem por nós, estão violando nossos direitos de sermos protagonistas”, complementa Leany.
Dia de atendimento na comunidade Ka Ubanoko. (Foto enviada por Pe. Jaime C. Patias)
A Lei da Migração, nº 13.445 (24 de maio 2017), garante aos migrantes igualdade de tratamento e oportunidades; inclusão social, laboral e produtiva; acesso igual e gratuito a serviços sociais (art. 3º, IX-XI). Além disso, aos povos indígenas, a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), promulgada no Brasil em 19 de abril de 2004, estabelece plenos direitos à participação e a uma consulta prévia.
Em base a esses direitos, as lideranças do Ka Ubanoko estão se organizando para recorrer ao Ministério Público Federal (MPF) e à Defensoria Pública Federal (DPF). Enquanto isso, seguem as tentativas de diálogo com o apoio das organizações e da diocese de Roraima.
Lideranças reunidas na comunidade Ka Ubanoko. (Foto: Izaias Nascimento | Enviada por Pe. Jaime C. Patias)
Yidri Torrealba, representa as 160 famílias de venezuelanos no Ka Ubanoko. “Recuperamos esse local e já é reconhecido pelos vizinhos do bairro. Aprendemos a viver em comunidade implementando a educação diferenciada para as crianças já que mais de 50% não consegue vagas nas escolas. Preparamos nossa alimentação com a ajuda de ONGs, somos pessoas profissionais que trabalhamos. Juntos conseguimos superar tantos obstáculos. Queremos que nossa voz seja ouvida”, desabafa.
Os moradores da comunidade saem às ruas para conseguir o sustento, recolher latas, ferros para vender, limpar para-brisa de carros, vender diversos produtos. Alguns têm seus próprios empreendimentos como fabricação de sandálias, reciclagem, vendas de verduras, corte de cabelo, manicure, artesanato, vendas de comida rápida dentro e fora da comunidade.
Os indígenas afirmam que muitos deles não vão se adaptar a um Abrigo e terminarão nas ruas causando mais problemas. A proposta de interiorização, também não agrada.
Deirys Ramos, da etnia eñepa diz se sentir ofendida. “Conheço os meus direitos e sei o que é uma consulta prévia. Me sinto triste e enganada pelas instituições que dizem defender os indígenas e venezuelanos”. Para ela, o Abrigo Jardim Floresta não é a solução. “Não tem árvores, não tem brisa e estaremos fechados todo o dia. Faz calor, não tem privacidade. Um ser humano não merece viver num lugar assim. Não teremos nem o direito de escolher o que vamos comer. Acham que vamos nos contentar com um pouco de artesanato sem ter um trabalho digno? Lá não asseguram a educação bilíngue das crianças”, ressalta.
Pátio na comunidade Ka Ubanoko. (Foto: Izaias Nascimento | Enviada por Pe. Jaime C. Patias)
Apesar das dificuldades, é consenso entre as lideranças que o Ka Ubanoko é bem melhor que um Abrigo, pois todos se sentem livres para tomar decisões, organizar a vida com normas que são assumidas, respeitadas e vividas por todos. Eles têm recebido apoio de ONGs, e mesmo em uma vida precária, consideram um bom lugar para reiniciar a vida no Brasil segundo os quatro verbos propostos pelo Papa Francisco: “Acolher, Proteger, Promover e Integrar”.
Em Boa Vista, tem o abrigo Pintolândia que é destinado aos indígenas e coordenado pelo ACNUR com gerência da Fraternidade Internacional (FFHI). Hoje ele conta com 538 indígenas. Segundo Relatório de Atividades para Populações Indígenas do ACNUR, dos 5 mil refugiados e migrantes indígenas venezuelanos registrados em território brasileiro desde 2018, 65% são solicitantes de refúgio. A maior parte está na região Norte. No entanto, muitos deles já se encontram em 17 diferentes estados do Brasil. Em relação ao povo warao, em Roraima são cerca de 1,3 mil indígenas. No Pará são mais de 900 e no Amazonas, 600. Embora tenham vindo do país vizinho, esses dados mostram o grande fluxo de indígenas deslocados internos. Estes são ainda mais vulneráveis, enfrentando dificuldades para o acesso à documentação, moradia, saneamento básico, meios de subsistência, entre outros.
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Roraima. Comunidade Ka Ubanoko ameaçada de despejo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU