17 Dezembro 2020
Com renda reduzida pela crise, população mais vulnerável deixa de pagar aluguel e tem recorrer a ocupações de imóveis abandonados na capital paulista. "As condições pioraram assustadoramente", diz ativista.
A reportagem é de Larissa Linder, publicada por Deutsche Welle, 11-12-2020.
Antes da pandemia de covid-19 bater às portas, Talita dos Santos, 29 anos, desempregada, morava com dois filhos pequenos e o marido em uma quitinete no bairro do Brás, em São Paulo, que alugava por R$ 800. Há cerca de oito anos na fila da moradia popular, ela diz ter se cansado de esperar e de viver em ocupações, e nos últimos anos foi possível pagar por um imóvel, mesmo que as contas ficassem apertadas.
Mas a renda do marido, vendedor ambulante de roupas, foi embora com a chegada da pandemia. Mesmo com acesso ao auxílio emergencial, ela, o companheiro e três filhos – um deles então recém-nascido – precisaram se mudar em maio para uma ocupação em um prédio na avenida Rio Branco, centro da capital paulista.
Uma reintegração de posse marcada para o último domingo (06/12), a fez passar os primeiros dias de dezembro procurando por imóveis abandonados para onde pudesse se mudar. “A sensação é de derrota, a gente vive igual bolinha de pingue-pongue, para lá e para cá”, explica.
Vizinha de Talita e primeira a chegar na ocupação, Janaína Xavier, 40 anos e oito filhos, viveu a mesma situação. Com a redução da renda familiar, que dependia dos bicos de cozinheiro do ex-marido, foi preciso deixar a quitinete em que morava com a família na região da Cracolândia. Líder comunitária há mais de uma década, soube do prédio desocupado por meio de uma conhecida, e deu início à ocupação. Ao todo, 21 famílias passaram a viver lá em meio à pandemia. Antes, todas pagavam aluguel.
A reintegração de posse acabou adiada, mas a suspensão temporária não pôs fim ao problema de quem ficou sem casa. “Houve um entendimento, até da própria Polícia Militar e do oficial de justiça, de que sem a presença da assistência social, que já não tinha estado na reunião de preparação, não tinha como fazer”, explica o advogado Vitor Inglez de Souza, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, que trabalha em convênio com a Defensoria Pública do Estado. Sem ter para onde ir, muitos acabariam na calçada em frente ao prédio.
Sem um levantamento, não é possível saber se houve um aumento no número total de ocupações na capital paulista por conta da pandemia. Mas movimentos e organizações que acompanham o tema afirmam que a história de Janaína e Talita se repete pela cidade e arredores.
A pandemia e o consequente agravamento da situação econômica do país deixaram sem possibilidade de pagar aluguel um contingente de pessoas que já vivia em algum nível de vulnerabilidade. Acabaram empurradas para ocupações e favelas que nasceram desse contexto, numa última tentativa de não ir para a calçada. É o caso do Jardim Julieta, na zona norte da capital, onde 400 famílias ergueram barracos em um terreno público.
“Sabemos, do nosso trabalho de campo, que há várias como essa (ocupação da avenida Rio Branco), como é o caso do Jardim Julieta, há outra em Diadema”, exemplifica Talita Gonsales, pesquisadora do Observatório de Remoções. Segundo o coordenador da Frente de Luta por Moradia (FLM), entidade que congrega 13 movimentos autônomos, Osmar Borges, “são várias” as ocupações que surgiram no contexto da pandemia.
“As condições pioraram assustadoramente, tem muitas novas ocupações, tem muita gente nova nas ocupações chegando de outros lugares”, afirma Souza.
Um agravante, dizem organizações e a Defensoria, é que muitas das pessoas removidas acabam sem assistência. No caso da ocupação da avenida Rio Branco, a Secretaria Municipal de Habitação afirmou, por meio de nota, que tentou intermediar um acordo entre as partes para a permanência das famílias, como tem feito em outros casos, mas que não houve acordo por parte do proprietário.
A secretaria ainda disse que ofertou aos ocupantes o cadastro nos programas habitacionais do município, e que eles “não se enquadram em qualquer possibilidade de atendimento via auxílio aluguel, conforme os parâmetros definidos na Portaria SEHAB 131/15”.
“Nos termos da portaria, não se enquadram, mas a portaria tem sido esvaziada, porque antes ela previa diversas situações de vulnerabilidade, e em 2019 a gestão cortou essas hipóteses. Estão esvaziando a política do atendimento provisório, e jogando tudo no colo da Assistência Social”, afirma o advogado do Centro Gaspar Garcia. A afirmação é corroborada pelo defensor público Rafael Negreiros, do Núcleo de Habitação e Urbanismo da Defensoria do Estado de São Paulo. A Prefeitura, no entanto, nega que haja qualquer esvaziamento da política habitacional, “pois cerca de 23 mil famílias recebem atualmente o benefício”.
Segundo a advogada do Núcleo de Defesa de Direitos da População em Situação de Rua (NDDH-SP) Kelseny Medeiros Pinho, a Assistência Social encontra dificuldades em dar conta do quadro. “Existe um déficit de 13 mil vagas (no sistema de acolhimento municipal), e para famílias o déficit é maior ainda, porque 80% das vagas se destinam a homens desacompanhados”, diz.
“Em geral, o apoio e a assistência são quase inexistentes. Em toda reintegração a gente tem uma luta para não remover e para conseguir alguma política pública (assistencial), mas o judiciário não se coloca como garantidor desses direitos”, afirma o defensor público Estado de São Paulo, Rafael Negreiros, do Núcleo de Habitação e Urbanismo.
No mesmo ano em que ficou mais evidente a vulnerabilidade habitacional, cresceu o número de remoções na região metropolitana de São Paulo. Entre março e setembro, foram 16, ante 11 no mesmo período de 2019. Os números são do Observatório de Remoções, e não incluem despejos por falta de pagamento de aluguel. Historicamente, cerca de 80% das remoções ocorrem por reintegração de posse.
Em todo o país, entre março e agosto deste ano, em torno de 6,3 mil famílias sofreram remoções e mais de 18,8 mil estiveram sob ameaça de serem removidas, conforme sistematização de dados da Campanha Despejo Zero, organizada por dezenas de entidades que passaram a pressionar pela suspensão dos despejos durante a pandemia.
Em resposta a um relatório enviado pela Campanha, o relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Direito à Moradia, Balakrishnan Rajagopal, disse em um comunicado em julho, que o Brasil deveria suspender todas as ordens de despejo contra famílias durante a pandemia.
Rajagopal também se mostrou preocupado com um veto presidencial a uma proposta do Congresso de limitar o impacto dos despejos. O relator da ONU se referia à única regulamentação de abrangência nacional sobre o tema que avançou no Congresso, mais especificamente o artigo 9º da lei 14.010/2020, que impedia despejos de inquilinos entre março e outubro deste ano. O artigo foi vetado pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, e o veto acabou sendo derrubado pelo Congresso apenas no final de agosto.
Segundo Gonsales, faltou uma política nacional que desse conta de proteger as pessoas de remoções durante a pandemia, diferentemente do que aconteceu em outros lugares, como Estados Unidos, Argentina e Índia. Dentro do país, afirma, o único estado a fazer uma lei nesse sentido foi o Paraná.
No Estado de São Paulo, de acordo com a Defensoria Pública, a Justiça tem decidido de formas distintas sobre os pedidos de suspensão de remoções, ficando a cargo de cada juiz definir como proceder no caso concreto.
O quadro que se desenha em São Paulo na pandemia está diretamente relacionado a um dos componentes do déficit habitacional, o ônus excessivo com aluguel, na avaliação da coordenadora de Projetos da Construção do Ibre-FGV, Ana Maria Castelo. Também compõem o cálculo do déficit a precariedade das moradias, a coabitação (diferentes famílias que convivem em uma mesma casa por necessidade) e o adensamento excessivo em moradias.
Mas é o gasto oneroso com aluguel o mais agudo dos ingredientes. Um estudo da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), conduzido por pesquisadores da FGV, revelou que o déficit habitacional brasileiro era de 7,97 milhões de moradias em 2019. Desse total, 43% se referem a uma parcela da população que ganha até três salários mínimos e gasta mais de 30% da renda com aluguel.
Embora o déficit total tenha caído 1,5% entre 2017 e 2019, principalmente em razão da redução no número de habitações precárias, o gasto excessivo com aluguel cresceu 2% no período.
Além do contexto de crise e estagnação econômica do país, que fez cair a renda das famílias nos últimos anos, a pressão crescente sobre os preços dos alugueis nos maiores centros urbanos colaborou para agravar o problema. “Em princípio, a gente não vê como isso vai retroceder”, diz Castelo.
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SP: O drama dos despejados na pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU