15 Dezembro 2020
O cardeal australiano George Pell concedeu uma entrevista a Monica Maggioni, para o programa Settestorie, do canal Rai Uno. O jornal La Repubblica, 14-12-2020, transcreveu o diálogo. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eminência, no dia 11 de dezembro de 2018, há exatamente dois anos, o senhor foi julgado culpado por abusos sexuais de dois menores, um fato que teria ocorrido 20 anos antes. O que pensou naquele momento?
Foi uma surpresa enorme, até porque não só os meus advogados, mas também advogados não diretamente ligados a mim defendiam que não havia como me declarar culpado, e até o magistrado que me enviou a julgamento disse que, se as provas do meu cerimoniário e do sacristão foram considerados credíveis, nunca haveria um júri que me condenaria. Eu achava que as duas possibilidades se confirmariam, ou que haveria um júri suspenso, incapaz de decidir, e foi o que aconteceu da primeira vez, ou eu seria considerado não culpado. Por isso, foi uma surpresa enorme para mim.
Como o senhor avalia o comportamento geral durante o processo de acusação por parte dos seus acusadores e da mídia?
Os processos legais não são infalíveis. Só o papa é infalível e, entre outras coisas, em um número limitado de ocasiões... A opinião pública estava muito envenenada e hostil em relação à Igreja pela questão dos crimes de pedofilia e pela forma inadequada como eles foram abordados em algumas ocasiões. Em suma, eu não posso reclamar do processo, exceto em uma ocasião específica. Os jurados eram pessoas da sociedade civil, embora, neste momento, haja processos abertos contra os números um dos jornais por terem violado o embargo do tribunal e por terem fomentado a opinião pública contra mim. O erro gigantesco foi cometido pelos dois juízes da maioria da Corte de Apelação. Ele foi denunciado publicamente e foi um duro golpe contra a reputação desses dois juízes. Para mim, essa foi a parte mais difícil contra mim. Eu podia entender que a opinião pública estava contra mim, embora não consiga entender por que dois juízes especialistas puderam chegar a essas conclusões.
Naquele momento, como cardeal, o senhor teve um papel decisivo. Se pensarmos novamente sobre dois anos atrás, dentro da Cúria vaticana, o senhor obteve alguma resposta sobre o que estava acontecendo?
Quando você está em uma situação terrível como aquela, eu acredito que a pior coisa que você pode fazer é fingir que não está naquela condição ou continuar se lamentando sobre como é difícil. Eu tentei continuar vivendo. A situação era horrível, eu sabia que podia recorrer da decisão, que não acabara ali. Eu também sabia que, se as coisas realmente saíssem muito mal nesta vida, eu poderia argumentar com sucesso o meu caso perante o Bom Deus na próxima vida. Mas com certeza foi um grande golpe. Grande.
Depois de tudo isso, em março de 2019, o senhor foi condenado a seis anos de prisão. Como o senhor recorda exatamente aquele primeiro dia atrás das grades?
Foi algo completamente novo para mim, e eu só tinha que esperar e ver o que aconteceria. Acho que recebi algumas garantias de que os guardas se comportariam profissionalmente, não que deveriam ser gentis, mas pelo menos não houve violência ou agressão verbal contra mim. Eu tinha um chuveiro quente, um vaso sanitário, uma cama com colchão. No fundo, o que mais um homem deve querer? E, depois de alguns dias, também tinha uma televisão. E, acima de tudo, sempre me deixaram ficar com o meu breviário, o meu livro de orações, e isso foi de grande ajuda.
Agora, o senhor relata aqueles dias, aqueles 404 dias, em um livro que está sendo publicado justamente nestes dias nos Estados Unidos. Como o senhor passava os seus dias? Acima de tudo, o que pensava durante aqueles dias?
Eu havia construído um ritmo cotidiano. De manhã, eles me davam os remédios, depois me davam café da manhã. Eu assisti mais televisão na prisão do que em todo o resto da minha vida. Eu assistia ao programa da madrugada no Canale 7 e, em geral, eu gostava. Depois, fazia as minhas orações, depois a meditação e também tinha que me mexer um pouco.
Tendo sido julgado por um crime horrendo, sentia esse olhar sobre o senhor?
É claro, absolutamente sim. Mas, como eu lhe disse, é inútil passar o tempo chorando sobre si mesmo e se desesperando por si mesmo. Era uma situação terrível, mas eu estava lá, tinha que continuar e fazer o melhor que podia.
Sentiu alguém próximo, muito próximo? Onde estava a Igreja naquele momento?
É claro, eu tinha muitas pessoas próximas. A minha família foi completamente leal a mim. Eu tinha muitíssimos ótimos amigos. Apenas poucos católicos praticantes eram hostis e acreditavam que eu era culpado, enquanto a grande maioria dos que iam à igreja não acreditavam nessa história, e eu sabia disso. E não esqueçamos o ensino cristão que diz que as coisas boas nascem do sofrimento. E acho que essa é uma diferença importante entre nós, cristãos, e as pessoas que não têm fé. E, então, você pode oferecer o seu sofrimento a Deus por algum bom propósito. E essa foi uma consolação.
Depois, no dia 7 de abril deste ano, o senhor foi absolvido. E, no dia em que foi absolvido, disse que não alimentava ódio pelo seu acusador, agradecia justamente a sua família, os seus advogados... Ouviu o papa naquela ocasião?
Sempre soube que ele me apoiava, sabia que ele acreditava na minha inocência e que esperava que eu fosse libertado. Foi uma grande consolação. O papa sempre me apoiou ao longo dessas dificuldades.
E depois o senhor voltou, agora está aqui, nós estamos falando naquele Vaticano que, em certa medida, foi o lugar onde o senhor desempenhou um papel importantíssimo durante quatro anos. O que pensa? Como está vivendo isso? Aliás, neste momento, o senhor não tem um papel ativo.
Não, não tenho papéis ativos. Tenho quase 80 anos e acredito que Roma está cheia de cardeais octogenários que gostariam de ter mais coisas para fazer. Estou satisfeito com aquilo que alcançamos no trabalho. Encontramos muitos obstáculos, não fizemos todos os progressos que gostaríamos. A situação econômica do Vaticano neste momento é séria, mas me consolei pensando que entendemos que, pelo menos, se você julgar com precisão onde está, se você tiver pessoas inteligentes e decentes, poderá entender a melhor forma de seguir em frente em uma situação difícil. Mas, se você estiver em um mundo de hipocrisia, então é muito difícil. Não sabemos precisamente quantas pessoas vão para o inferno, mas sabemos bem se estamos perdendo dinheiro. As dívidas estruturais também existiam antes da Covid. É um momento difícil, financeiramente, para o Vaticano.
Quando se encontrou com o Papa Francisco, qual a primeira sensação que o senhor teve quando se encontraram?
Eu estava muito feliz por estar de volta. Eu estava acostumado a me encontrar com o papa a cada duas semanas, para deixá-lo a par do que eu estava fazendo. Por isso, fiquei muito feliz por ter voltado para vê-lo naquela maravilhosa sala do Palácio Apostólico. É um edifício fantástico, repleto de história, algo ao qual eu atribuo muito valor. Acho que a primeira coisa que ele me disse foi: “Obrigado pelo seu testemunho”. E eu fui muito grato a ele por isso. Mais tarde, ele também me disse: “Você tinha razão sobre muitas coisas’, e eu acho que ele se referia às questões econômicas sobre as quais realmente não há mais muitas dúvidas.
Em agosto de 2015, no Meeting de Rimini, o senhor disse esta frase: “Nós preparamos, talvez pela primeira vez na história, um balanço de todo o dinheiro e das propriedades do Vaticano, abrangente e preciso. E descobrimos que havia 1,3 bilhão que não estavam visíveis nos balanços, e isso é interessante”. O que significava essa descoberta, que talvez era apenas uma parte de uma descoberta?
Isso não era um problema, no sentido de que não era a descoberta de uma dívida, mas de um dinheiro existente que não estava escrito nos livros contábeis. E isso era indicativo de uma forma muito primitiva de gerir as coisas e da falta de informações precisas. Na época, eu acredito que havia poucas pessoas no Vaticano, se é que havia, capazes de apresentar um quadro preciso de como era a situação financeira vaticana.
Eu fiz parte de um conselho de 15 cardeais que geriram as finanças durante anos – e havia grandes personalidades entre nós, como o cardeal Meisner, de Colônia, o cardeal Mahony, de Los Angeles, o cardeal George, de Chicago –, e nos esforçamos enormemente para ter clareza, mas sem nenhum sucesso. Eu acho que foi Meisner quem disse que precisou lutar 20 anos antes que o Conselho para a Economia fosse instituído. Havia dinheiro por toda a parte, escondido. Uma vez, um homem de negócios italiano, com diversas filiais no país, me disse que isso ocorre em muitas partes da Itália. O dinheiro não era roubado, estava simplesmente ali, escondido, fora dos livros, para os tempos de vacas magras, em caso de necessidade, para gerir crises ou coisas semelhantes. Em si mesmas, não eram más notícias, mas era um indicativo do nível subdesenvolvido de informações que tínhamos.
O senhor descreve isso como algo primitivo e não gerido. Era só isso ou também havia o elemento do dolo, na sua opinião?
Havia muitíssima desorganização, muitos furos nas informações, o método era primitivo, mas, acima de tudo, isso abre espaço para algumas pessoas para roubar e corromper. A falta de sofisticação, os furos nas informações constroem um terreno ideal. Uma vez, a princesa Gloria Turn und Taxis, na Alemanha, me disse há cinco anos, antes da reforma financeira, que o Vaticano a lembrava de uma velha família nobre que estava indo à ruína. Eram extravagantes, incompetentes e representavam o terreno ideal para os ladrões. Talvez seja um pouco duro, não é toda a história, mas certamente descreve uma boa parte da história.
Aqui, neste momento, é natural lhe perguntar se o senhor já ouviu ou suspeitou de que havia um cruzamento entre essas duas partes da sua história, o seu trabalho pela transparência, pela abertura, pela reorganização das contas e aquilo que lhe aconteceu.
É claro que eu suspeitei. Todos os personagens de maior peso que trabalharam juntos na reforma financeira, cada um de nós – acho que com pouquíssimas exceções – foi atacado pela mídia no nível da reputação, de uma forma ou de outra. E, por outro lado, todos nos lembramos do que aconteceu com Calvi, que se suicidou debaixo da ponte de Londres, com as mãos atrás das costas, uma forma estranha de se enforcar. E lembramos aquilo que aconteceu com o outro, Sindona, envenenado na prisão... “Tempos antigos”.
Hoje, muitas vezes, usa-se a destruição da reputação. Um senhor que trabalhou comigo e fez um grande trabalho, chamado Danny Casey, um gerente de negócios em Sydney, muito eficiente e capaz, encontrou, veja só, o seu carro queimado na frente de casa. Ora, certamente se trata de uma coincidência, já que se sabe que os carros sempre pegam fogo sozinhos... Mas, em suma, aqui todas as pessoas mais prudentes suspeitam de que há uma ligação direta entre as duas.
Na Austrália, todos aqueles com quem eu trabalho não têm dúvidas de que o nexo é evidente. Temos evidências, nenhuma prova ainda, mas certamente muita fumaça. Temos criminosos que foram ouvidos dizendo: “Pell está fora do jogo. Agora temos uma estrada inteira pela frente”. Outra pessoa, quando o auditor foi demitido, disse: “Agora há uma segunda bomba ao longo da estrada”. Outro criminoso, desde os primeiros dias, dizia: “Temos a Corte australiana para dar um jeito nele”. É claro que tudo isso ainda é fumaça, ainda não podem ser consideradas como prova, mas continua sendo uma possibilidade.
Eminência, em uma entrevista recente, o senhor disse: “Talvez tivesse sido muito melhor para a Igreja que essas coisas nunca tivessem acontecido, e eu não tivesse que ser vingado deste modo”. Por que ele usou o termo “vingado”?
Acho que já fui vingado pela Suprema Corte, não há nada a acrescentar. Acho que provamos que o crime do qual eu era acusado era impossível. Ele teria acontecido em cinco ou seis minutos logo após a missa, e os acusadores tinham um aliado perfeito para cerca de cinco desses minutos, porque eu ainda estava na procissão. E nem mesmo uma testemunha confiável pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. A minha família sempre me disse que teria sido diferente se a máfia tivesse me caçado, se outros elementos, talvez os maçons, tivessem me caçado. É muito pior se quem tenta destruir você é alguém de dentro da Igreja. Por isso, eu espero que nunca haja provas suficientes para demonstrar que o dinheiro do Vaticano foi usado não necessariamente para corromper diretamente, mas nem para envenenar a atmosfera pública contra mim. Eu espero que não haja prova alguma para estabelecer isso, pelo bem da Igreja.
Há uma investigação em andamento sobre isso. Mas posso lhe perguntar... O senhor tinha clareza sobre o que estava arriscando, porque, ainda naquele discurso de 2015, o senhor disse precisamente: “A próxima onda de ataques à Igreja provavelmente será causada por escândalos” que, na época, eram escândalos de fundo sexual ou financeiro. Então, o senhor tinha clareza de que o caminho seria esse.
Sim, e acho que não era preciso ser um gênio para entender isso, bastava uma compreensão normal do que estava sendo criado. A onda veio do mundo anglo-saxão inicialmente porque os ataques à Igreja nos últimos 20 ou 30 anos foram sobre a questão da pedofilia, mas esse filão está se esgotando. Basta pensar que a comissão australiana está discutindo casos que, em quase a sua totalidade, datam do século passado, e, na sua grande maioria, datam de mais de 25 anos atrás. Nós cometemos um erro na Austrália ao não dizer, durante o trabalho da comissão, que enfrentamos esse problema com decisão e despedaçamos essa corrente há 25 anos. No entanto, acho que isso está acabando. Quem não gosta da Igreja vai buscar novas formas de nos atacar, eu já dizia isso e repito. Por essa razão, e também por outras mais simples, nós temos que pôr ordem no plano econômico. É preciso transparência, metodologias modernas, até porque as pessoas não dão dinheiro para a Igreja para ver ele sendo roubado.
O senhor parece mais confiante sobre a situação agora. Acha que o caminho certo foi tomado?
Sim, realmente acho que sim. Acho que fizemos progressos. Acho que o Pe. Guerrero é um homem honesto e capaz, que fez muitos progressos, acho que o novo Conselho de Finanças, com sete mulheres, está fazendo um bom trabalho. São mulheres muito qualificadas, e acho que será muito difícil para os malfeitores lidar com elas. Nós, homens, somos mais sentimentais. Espero que o novo Conselho, ao ver um furo no cobertor, diga: “Há um furo no cobertor”.
Um jornal italiano dizia há algumas semanas que um novo ataque está vindo justamente da Austrália e até se pensa em incluir o nome do papa entre os possíveis indiciados de uma nova onda de acusações, sempre sobre a questão do controle ou não dos crimes de fundo sexual. O senhor acha que essa história acabou ou teme que possa haver novos capítulos?
Nunca se pode dizer que acabou. Também não tenho certeza se a minha história acabou, mas não acho que haja qualquer possibilidade de envolver o papa. Na Austrália, em 1996, instituímos duas comissões independentes, e a resposta de Melbourne também previa indenizações. Nós submetemos todas as acusações a esses organismos independentes que foram criticados por serem duros demais ou porque o dinheiro não era suficiente. Ok, mas fizemos, e era tudo independente, fizemos isso seis anos antes do caso Spotlight, o caso de Boston. Somos absolutamente fiéis a esse método. Não acho que haja qualquer possibilidade de envolver o papa.
Eminência, para o senhor, será um Natal muito diferente do ano passado...
Certamente...
Como vai vivê-lo?
Eu estarei aqui em Roma. Vamos comer a típica culinária australiana que, no meu caso, é anglo-irlandesa. Comeremos presunto de peru, o pudim natalício, iremos à missa, cantaremos o hino – na Austrália cantamos o hino mais do que vocês, na Itália... Senti falta dessa grande festa quando eu estava na prisão.
O que pensará sobre aquele Natal passado?
Bem, ele passou. O dia de Natal foi quase como outro dia qualquer. Talvez comemos um pouco melhor. Nesse sentido foi um pouco mais Natal. Além disso, pude assistir à missa de Natal e todas as outras cerimônias na televisão. A televisão foi de grande ajuda para mim.
Pelo menos, servimos para alguma coisa...
Certamente.
O senhor chegou a pensar que estaria em Roma no ano seguinte?
Eu esperava por isso, mas não tinha certeza se conseguiria, porque sabia que, de um ponto de vista lógico, forense, a minha posição era muito, muito forte. Mas ela sempre havia sido forte, mas eu não tive sucesso. Então, eu não tinha certeza absoluta de que as coisas mudariam. Mas agora estou aqui e agradeço a Deus por isso.
E nós agradecemos ao senhor pelo seu tempo e paciência.
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“Os processos judiciais não são infalíveis.” Entrevista com o cardeal George Pell - Instituto Humanitas Unisinos - IHU