11 Dezembro 2020
Papa Francisco, o primeiro Papa a vir do Novo Mundo, tem uma visão mais ampla do que nós chamamos de mundo ocidental do que seus predecessores. Ele organizou a maior reunião eclesial sobre a região amazônica na América do Sul, e sua preocupação com o capitalismo e racismo, embora esses temas não sejam desconhecidos na Europa e na Ásia, parece apontar para as manifestações americanas desses males.
Nós podemos ver isso no novo livro de Francisco, “Vamos sonhar juntos: O caminho para um futuro melhor”, publicado em 1º de dezembro, como ele pensa sobre a pandemia de covid-19, assim como sobre tópicos controversos, como gastos militares, aborto, violência policial, tratamento aos migrantes e refugiados, movimentos de protestos e o papel da mulher.
O artigo é de Thomas Reese, jesuíta estadunidense, publicado por National Catholic Reporter, 09-12-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Os leitores surpreender-se-ão com o quão relevante é a mensagem do livro para os católicos estadunidenses e os líderes do país.
Como os Estados Unidos gastam mais com o exército do que qualquer outro país, ele está claramente pensando em nós quando exorta o leitor a observar “que uma nação gasta em armas, e seu sangue corre frio”.
E como produzimos e vendemos mais armas do que qualquer outro país, sua condenação ao comércio de armas atinge seu alvo. “As surpreendentes quantias gastas no comércio de armas poderiam ser usadas para alimentar toda a raça humana e educar todas as crianças”, lamenta. “O gasto em armas destrói a humanidade”.
Ele também recorda de seu discurso de 2015 no Congresso dos EUA, no qual condenou a pena de morte e expressa choque de que “até mesmo os cristãos tentam justificá-la”.
Francisco também acredita que a covid-19 deve ser levada a sério. Ele observa que a pandemia atingiu ainda mais as mulheres “porque é mais provável que elas estejam na linha de frente da pandemia” como profissionais de saúde. Elas também são “mais difíceis de atingir economicamente”.
Ao mesmo tempo, ele relata: “Os países com mulheres como presidentes ou primeiros-ministros, em geral, reagiram melhor e mais rapidamente do que outros, tomando decisões rapidamente e comunicando-as com empatia”.
Sua experiência lhe ensinou que “as mulheres, em geral, administram muito melhor que os homens. Elas entendem melhor os processos, como levar os projetos adiante”.
Ele destaca as economistas para receber elogios especiais, pois seu “pensamento inovador é especialmente relevante para esta crise”. Seus comentários parecem estar alinhados com a nomeação de mulheres para cargos econômicos importantes em sua administração pelo presidente-eleito Joe Biden, incluindo a primeira mulher como secretária do Tesouro e mulheres nomeadas para chefiar o Conselho de Consultores Econômicos e o Escritório de Administração e Orçamento.
Ele se refere a economistas como Mariana Mazzucato e Kate Raworth, que influenciaram seu pensamento ao desafiar “a obsessão irrefletida de nossa cultura com o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) como o único objetivo primordial de economistas e formuladores de políticas”.
As mulheres também devem ser ouvidas na Igreja. “Em minha experiência pastoral em diferentes órgãos da Igreja”, diz ele, “alguns dos conselhos mais nítidos vieram de mulheres que eram capazes de ver de ângulos diferentes e que eram acima de tudo práticas, com uma compreensão realista de como as coisas funcionam e as limitações das pessoas e potencial”.
Francisco parece um pouco na defensiva ao descrever longamente as mulheres que nomeou para cargos em Roma e anteriormente em Buenos Aires. Embora ele veja um papel para as mulheres como líderes na Igreja, “dizer que elas não são líderes verdadeiras porque não são padres é clericalista e desrespeitoso”.
Francisco também volta à sua preocupação central com os migrantes e refugiados, outro tema polêmico nos Estados Unidos, cuja situação foi agravada pela covid-19. “Quando o vírus atinge um campo de refugiados”, reclama ele, “é uma injustiça que clama aos céus”.
O bloqueio imposto por causa da pandemia mostrou, ele escreve, que “as necessidades básicas das sociedades mais desenvolvidas estão sendo atendidas por migrantes mal pagos, mas eles são bode expiatório e injuriados e negados ao direito a um trabalho seguro e decente”. Isso certamente é verdade nos EUA.
“Precisamos acolher, promover, proteger e integrar quem vem em busca de uma vida melhor para si e para seus familiares”, afirma.
Ele vincula a questão do aborto à migração, embora reconheça que “muitos ficarão irritados ao ouvir um Papa voltar ao tema do aborto”.
“A chegada de uma nova vida humana – seja o nascituro no útero ou o migrante em nossa fronteira – desafia e muda nossas prioridades”, escreve ele. “Com o aborto e o fechamento das fronteiras, recusamos esse reajuste de nossas prioridades, sacrificando vidas humanas para defender nossa segurança econômica ou para amenizar nosso medo de que a paternidade vá destruir nossas vidas”.
Francisco está desapontado porque, embora alguns apoiem um ou outro, poucos apoiam tanto o nascituro quanto o migrante.
Em outra referência explícita aos EUA, o Papa condena o “abuso de poder que vimos no horrendo assassinato policial de George Floyd”. Francisco fala positivamente dos protestos em todo o mundo que se seguiram à morte de Floyd. “Muitas pessoas que de outra forma não se conheciam foram às ruas para protestar, unidas por uma indignação saudável”.
Embora o Papa não mencione explicitamente o movimento Black Lives Matter, os movimentos populares recebem amplo tratamento em seu livro. Embora condenando “a falácia de fazer do individualismo o princípio organizador da sociedade”, ele afirma: “Precisamos de um movimento de pessoas que sabem que precisamos umas das outras, que têm um senso de responsabilidade para com os outros e o mundo”.
Mas nem todos os movimentos devem ser abraçados. “Interpretando e rezando sobre os eventos ou tendências na luz do Evangelho, nós podemos detectar movimentos que refletem os valores do Reino de Deus ou seus opositores”.
Nós deveríamos olhar para os movimentos que “fome e sede de justiça”, ele escreveu citando o Evangelho de Mateus. “Se discernirmos em tal anseio um movimento do Espírito de Deus, isso nos permitirá se abrir a esse movimento em pensamento e ação, e assim criar um futuro de acordo com o espírito das Bem-aventuranças”.
Ele exorta “a Igreja a abrir suas portas mais amplamente a esses movimentos... oferecendo ensino e orientação, mas nunca impondo doutrinas ou tentando controlá-los”.
Mas os movimentos “marcados por sua rigidez e autoritarismo” devem ser evitados. Ele observa que mesmo na Igreja, “os líderes e outros membros se apresentavam como restauradores da doutrina e da Igreja, mas o que mais tarde aprendemos de suas vidas nos diz o contrário”.
Também devem ser evitados os movimentos que trazem “um espírito raivoso de vitimização”, escreve ele, chamando grupos que se recusaram a usar máscaras e “protestaram, recusando-se a manter distância, marchando contra as restrições de viagem – como se medidas que os governos devem impor para o bem de seu povo constituem algum tipo de ataque político à autonomia ou liberdade pessoal!”.
Francisco também exorta aqueles que querem derrubar estátuas a irem mais devagar. “Aqueles que derrubaram estátuas o fizeram para chamar a atenção para os erros do passado e para negar honra aos que cometeram esses erros”, reconhece ele.
“Mas isso deve ser feito por meio da construção de consenso, por debate e diálogo, ao invés de atos de força”, escreve ele.
“Vamos olhar para o passado de forma crítica, mas com empatia, para entender porque as pessoas deram como certo o que agora nos parece abominável”, ele insiste, referindo-se, creio eu, mais às estátuas de Junípero Serra do que aos generais confederados. “E então, se tivermos que pedir desculpas pelos erros cometidos pelas instituições da época, podemos fazê-lo, mas sempre tendo em mente o contexto da época”.
Francisco vê nesses movimentos “uma fonte de energia moral, uma reserva de paixão cívica, capaz de revitalizar nossa democracia e reorientar a economia”. Ele os vê como “um exército com apenas as armas da solidariedade, esperança e senso de comunidade”. Estas são palavras encorajadoras para jovens estadunidenses.
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O novo livro do Papa fala aos estadunidenses sobre racismo, imigração e equidade de gênero. Artigo de Thomas Reese, s.j. - Instituto Humanitas Unisinos - IHU