02 Dezembro 2020
"A vida pode ser muito simples como a experimentou Charles de Foucauld. Nazaré é ao mesmo tempo o lugar de oração e o lugar onde todos os homens e mulheres podem encontrar um amigo, um irmão; é uma casa bem simples onde todos podem encontrar a Jesus", escreve Miguel Savietto, membro da Fraternidade Leiga Charles de Foucauld.
O papa Francisco termina a Fratelli Tutti recordando a figura do Beato Charles de Foucauld como alguém que soube viver a fraternidade a ponto de entregar a própria vida como irmão universal. A pouco mais de cem anos um tiro mortal o fez cair nas areias do deserto do Saara. Cumpria assim seu desejo de “gritar o Evangelho com a própria vida”.
Lembrar do “profeta do deserto” é falar de alguém que viveu intensamente aquilo que acreditava. O testemunho de uma vida entregue até a morte pelo seu “Bem Amado Senhor e Salvador" como ele costumava dizer.
Ao mesmo tempo, como diz o pe. Frederico Carrasquilla devemos manter uma dupla atitude: acolhida das intuições que nos vem de Charles de Foucauld enquanto um ser humano como todos nós que trilhou um caminho de despojamento e ao mesmo tempo olhá-lo como alguém que assinala o ponto de chegada e o sentido de sua busca: Jesus de Nazaré.
A vida deste homem nos interpela ao oferecer uma experiência concreta de seguimento que nos conduz a uma interpretação mais profunda da vida de Jesus.
Um outro místico mais próximo de nós Thomas Merton escreveu algo lapidar que pode muito bem expressar o que foi a vida de Charles de Foucauld. Diz Merton:"Sabe alguém que encontrou sua vocação, quando cessou de pensar em como vivê-la e começa a viver".
Irmão Carlos, como gostam de chamá-lo sua família espiritual, encontrou a pérola de que fala o evangelhos e por ela despojou-se de tudo. Ele não é um teólogo, um teórico da fé mas alguém que fez uma experiência profunda de encontro com o Cristo; embarcou nesta aventura e de modo radical. Sua vocação é para nós homens e mulheres da eficiência, dos resultados, das categorias lógicas e classificatórias de difícil compreensão. Deste modo ao invés de falar do conteúdo de sua fé é melhor falar das intuições de sua fé.
Ao deixar-se interpelar pelo Evangelho ele não o faz a partir de categorias racionais tão em voga no seu tempo mas a partir da intuição de que ser cristão é assumir em cheio na própria vida a prática de Jesus de Nazaré. Dirá ele: “A semelhança é a medida do amor”.
Quem diz intuição, diz luz penetrante que vai até o mais profundo de uma verdade e deixa no coração uma incurável queimadura. Sua conversão a partir de seu encontro com Cristo na igreja de Santo Agostinho em Paris marcará sua vida para sempre. Conversão que não é em primeiro lugar uma mudança de costumes mas um voltar-se para Deus. A princípio não busca mudar seu comportamento, muda porem o centro de sua vida.
Podemos afirmar que a fé e a vida de irmão Carlos são marcadas por grandes intuições que ele sente como uma eterna novidade que o impulsiona e à qual ele abre sua vida. Para ele, a intuição que se apresenta é um tempo favorável, porque brota das exigências do Evangelho. Assim, dirá ele por exemplo sobre sua conversão em 1888 aos 30 anos:"Assim que acreditei que havia um Deus compreendi que não poderia fazer outra coisa senão viver só para Ele; minha vocação religiosa data da mesma hora que a minha fé. Deus é tão grande e há tanta diferença entre Deus e tudo o que não é Ele!"
A profunda intuição que marcará a vida de Foucauld é Nazaré.
Foi caminhando pelas ruas de Nazaré (a cidade) que sentiu uma atração pela vida de Jesus em Nazaré. Para ele Nazaré imprime em Jesus sua maneira de ser, o seu ser histórico. É lá, no concreto da vida que Jesus se apropria da Boa Nova.
A sucessão dos acontecimentos imprevisíveis marcará a vida de irmão Carlos obrigando-o a mudança de rumo, de direção. O horizonte não muda, o eixo central será sempre Nazaré, o Nazareno.
“Voltemos sempre ao Evangelho” dirá ele, o mesmo que dizer: voltemos sempre a Nazaré, a Jesus de Nazaré: trabalhador, operário, que se relaciona com seus vizinhos, que ajuda no sustento da casa, que frequenta a sinagoga, que obedece os pais, que entra em contato com a doença, com a dor, com a morte.
E este Jesus bem concreto que por assim dizer grita o “evangelho com a vida” o afastará de uma religiosidade desencarnada uma vez que Nazaré não é uma teoria espiritual, ou uma ascese ou um objetivo a ser alcançado como coroamento de todo um esforço espiritual. Nazaré é o hoje, se manifesta no cotidiano. Não se vê em Irmão Carlos grandes discursos sobre o amor, a caridade, a misericórdia. Sempre para ele a pergunta: “Nesta situação, o que faria Jesus de Nazaré?”. Simples assim!
Irmão Carlos assume a vida de Nazaré como um compromisso de amor e não como uma “camisa de força”; aos apelos da realidade ele tem a liberdade de mudar, re-avaliar, re-visar seus projetos uma vez que o amor é livre. Ele muda os planos com liberdade. Por exemplo: ele não quer a ordenação mas depois muda de ideia ao ver o presbiterato como maneira privilegiada de servir aos irmãos.
Dois aspectos da mística de Nazaré são fundamentais em sua espiritualidade: a hospitalidade, e viver a fraternidade no coração do mundo.
Em carta a sua prima Sra. de Bondy, Irmão Carlos se expressa desta maneira: "Estou muito feliz... os pobres soldados me procuram sempre... os escravos enchem a casinha que foi possível construir... os viajantes vêm diretamente à fraternidade... pobres em quantidade... Tudo ainda esta se arrumando,"
E quando a hospitalidade é negligenciada principalmente aos pobres ele se enche de indignação. Os soldados franceses cristãos abusam do poder diante dos seus vizinhos e amigos e ele se irrita: “Em todo caso, envergonho-me diante dos tuaregues por causa dos seus latrocínios (dos soldados franceses) ... bem recebidos pelos chefes com presentes e hospitalidade, portam-se como selvagens. A cada momento tomamos conhecimento de um ato de brutalidade e roubo..."
Lembremos que irmão Carlos antes de ir para o deserto foi trapista. Na tradição trapista o hóspede será sempre sinal da presença do Senhor. Com este sentimento já arraigado em si mesmo ele encontra outra tradição, a dos habitantes do Saara que consideram o hóspede um enviado de Deus.
A acolhida que os religiosos muçulmanos dispensam aos hóspedes em suas fraternidades do deserto nada mais fez que confirmar para o irmão Carlos a importância da hospitalidade a todos e aos mais pobres em especial como sinal distintivo do amor daquele Jesus cujos pais não encontraram lugar na hospedaria.
Sempre que procura explicar por carta o gênero de vida que leva no deserto, a hospitalidade aparece como uma das atividades mais importantes. Em carta enviada aos seus superiores na França em 1902 ele escreve: "... mas os hóspedes, pobres, escravos, visitantes, não me deixam um momento... desde o dia quinze, quando terminamos a casa para hóspedes, todos os dias temos hospedes para comer, para dormir, para jantar; sem contar com um velho enfermo permanente...".
Sabe-se quanta importância Irmão Carlos dava à adoração da Eucaristia. As horas que permanecia diante do sacrário eram inegociáveis, exceto... para atender um hospede, um pobre.
O que está por detrás destas atitudes? O desejo de "amoldar-me ao que Jesus fazia em Nazaré... fazendo ao próximo todo o bem que permitam os parcos meios ... como fazia Jesus em Nazaré..."
Ao modo da hospitalidade tuaregue, hospedar não é somente oferecer um prato de comida, uma esteira para descansar, um gole de água. Faz parte da hospitalidade as longas, tranquilas e descontraídas conversas. Irmão Carlos está convencido de que a conversação aproxima as pessoas, supera divisões, facilita e possibilita a amizade.
E com júbilo irmão Charles de Foucauld expressa uma pequena alegria pelo apostolado da amizade. Diz ele em carta a seus superiores: “Começam a chamar minha casa de 'Fraternidade'”.
No regulamento dos Irmãozinhos do Sagrado Coração, congregação religiosa que Irmão Carlos queria fundar ele escreve: “Cercarão de cuidados especiais os pobres e infelizes...não darão preferência a pessoas... darão a todos os hóspedes, mais pobres ou mais ricos, a mesma alimentação, as mesmas acomodações, os mesmos cuidados, vendo em todos unicamente, Jesus. Que sua universal e fraterna caridade brilhe como um farol... que ninguém ignore num raio de longa distância, que eles são os amigos universais , os irmãos universais...”
Intimamente ligado à dimensão da hospitalidade da espiritualidade de Nazaré está o viver a fraternidade universal no coração do mundo, na concretude das relações. Como observa Antoine Chaterland "Somente há amor universal no particular, no amor àquele que está diante de mim, não na ideia a respeito daquele que está longe, daquele que eu nunca vi." (O caminho rumo a Tamanrasset)
A percepção da universalidade do Evangelho levaria irmão Carlos a mudar de rumo a partir da sua inserção na realidade com que se defronta.
Por mais que valorizasse a clausura, a separação concreta do lugar de meditação e oração, quando entra em contato com seus vizinhos percebe que a clausura é um empecilho àquilo que ele descobre como sua vocação: o Apostolado da amizade. E anota em seu caderno: “Nada de clausura, como Jesus em Nazaré. Nem mesmo uma clausura ideológica ou simbólica (sou religioso, sou diferente, sou mais santo, sou especial) ... Pelo contrário, viver cada vez mais próximo dos seus vizinhos, dos pobres, dos nômades. Viver em relações de proximidade e amizade. Ele quer estar cada vez mais próximo como Jesus em Nazaré pois Jesus vivia próximo de seus vizinhos, não era um separado mas um simples homem do povo com um oficio, uma identidade e suas relações".
E quem era Irmão Carlos para os tuaregues, um missionário, um monge, um ermitão, um sacerdote?
Desde seu primeiro dia nas areias do deserto, até a hora de sua morte, ele era o “marabou”(o homem de Deus): que reza, que não está casado, que cura, dá conselhos, distribui esmolas, que é bom para todos. Este é o retrato que os vizinhos tinham dele. O retrato do bom religioso. Um marabou, homem unido a Deus mas não separado porque unido ao homens e mulheres do lugar por laços de profunda amizade e reverencia.
O irmão Marc, ex-prior dos irmãozinhos de Jesus faz a seguinte provocação: “Talvez precisamos nos perguntas não ‘Como viver Nazaré hoje?’ Mas ‘Por que viver hoje Nazaré?’ Afinal, é importante para nós viver Nazaré?
Para Irmão Carlos, Nazaré expressa uma forma de ser que se traduz em viver no meio do povo, imerso plenamente no cotidiano sendo um a mais. Ele quer realizar sua consagração a Deus não longe do povo mas em meio ao povo.
Desta maneira ele inova rompendo uma concepção de consagração a Deus que necessitaria separar-se dos outros. Pelo contrário, assume a relação com os demais, pessoa a pessoa e por outro lado ao insistir na vida simples junto com os pobres dá um salto qualitativo para aquilo que o papa Francisco tem insistido magistralmente: “Uma Igreja em saída”.
A teologia latino-americana deu um salto significativo quando anos depois de irmão Carlos descobre que a divindade de Jesus aparece com maior claridade em sua vida ordinária e não propriamente nos acontecimentos extraordinários. Jesus veio anunciar o sentido profundo da existência humana não pelos meios de poder: político, econômico, religioso mas pelo poder do não-poder, por isto com diz irmão Carlos “a pobreza e em geral os meios pobres são os que melhor revelam a divindade de Jesus”.
A vida pode ser muito simples como a experimentou Charles de Foucauld. Nazaré é ao mesmo tempo o lugar de oração e o lugar onde todos os homens e mulheres podem encontrar um amigo, um irmão; é uma casa bem simples onde todos podem encontrar a Jesus.
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Charles de Foucauld e a hospitalidade no centro do mundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU