Por: Márcia Junges | Edição Ricardo Machado | Tradução Vanise Dresch | 10 Dezembro 2016
Falar em hospitalidade suscita, em muitas ocasiões, a fantasia da “hospitalidade absoluta”, mas encarar os desafios à convivência com as alteridades desde este espectro pouco ajuda para enfrentarmos as grandes questões contemporâneas da convivialidade. “Ser hospedeiro/hóspede é entregar-se a uma dependência que pode significar uma dissolução do eu, como Derrida assinala a respeito da hospitalidade absoluta ou incondicional. Entre a lógica da dádiva e da contradádiva e aquela do sacrifício, existe uma relação de complementaridade paradoxal”, pontua o professor e pesquisador Alain Montandon, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Ser acolhido é dispor-se a todos os riscos e colocar seu destino nas mãos do hospedeiro”, complementa.
Etimologicamente, os termos “hospes” e “hostis” têm uma mesma origem. Ter em conta esta dimensão permite ampliarmos os sentidos que estão em jogo na ideia de hospitalidade. “O hospedeiro/hóspede e o inimigo têm, portanto, em sua origem, uma importante noção em comum, a noção de compensação, de tratamento de igual para igual, ato esse que visa a aplainar o status a priori hostil do hóspede”, explica Montandon. “Se Lévinas vê no rosto a alteridade inapreensível do outro, a acolhida desse outro reside no reconhecimento do estrangeiro que está em mim mesmo”, ressalta.
Alain Montandon | Foto: Arquivo Pessoal
Alain Montandon é professor emérito de literatura geral e comparada na Universidade Blaise Pascal - Clermont II, na França. É também membro honorário do Institut Universitaire de France, na cadeira de literatura comparada e sociopoética. É autor de diversas obras, das quais destacamos a versão em português de O Livro da hospitalidade: acolhida do estrangeiro na história e nas culturas (São Paulo: Editora Senac, 2011). Destacamos ainda suas últimas obras em francês, Voyage sentimental de Laurence Sterne (Édition critique, Classiques Garnier, 2015); Théophile Gautier, Ménagerie intime. La Nature chez elle (OC VIII,1) (Champion, 2014); e La plume et le ballon (Paris: Éditions Orizons, 2014).
Ele é o organizador da importante obra intitulada Livro da Hospitalidade. São Paulo: Editora Senac, 2011.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que é a hospitalidade para além das acepções comuns? Quais são seus pressupostos centrais em uma perspectiva filosófica?
Alain Montandon - A hospitalidade pressupõe o reconhecimento do outro e uma relação interativa entre os homens. De um lado, há o desejo de ser acolhido. É o desejo de Ulisses, que, ao aportar em uma costa estrangeira, sempre se pergunta: “Ai de mim! que mortais aqui se albergam?/ Bárbaros são, injustos e ferozes,/ Ou tementes aos deuses e hospedeiros?” . É sua súplica constante à espera de uma acolhida benevolente. Mas essa tensão e essa expectativa vão além do simples desejo de presença, alimento, repouso, do único desejo de contato humano. Ser acolhido reativa, sem dúvida, as nostalgias primordiais e arcaicas que serviram de modelo: a segurança, o calor do refúgio, o alimento contínuo, o rosto da mãe. A mão, o olhar, a boca participam da criação dos vínculos, do reconhecimento do outro e de si mesmo, da oralidade, oralidade essa que faz a transição entre o dentro e o fora, o comer e o ser comido, o canibalismo e o ogro. Daí a pergunta: quem, o hospedeiro ou o hóspede, comerá o outro?
No entanto, a hospitalidade não reside apenas no desejo de ser acolhido, sendo também desejo de acolher, desejo de receber e desejo de dar.
"Le maître de céans n'ayant de souci plus urgent que celui de faire rayonner sa joie sur n'importe qui, au soir, viendra manger à sa table et se reposer sous son toit des fatigues de la route, attend avec anxiété sur le seuil de sa maison l'étranger qui verra poindre l'horizon comme un libérateur. Et du plus loin qu'il le verra venir, la maître se hâtera de lui crier: "Entre vite, car j'ai peur de mon bonheur."[1]
Esse desejo tem muitas razões, dentre as quais, a de querer ter um hóspede que distraia da solidão, que traga notícias de outros lugares e que ofereça o prazer de uma companhia, de uma presença.
IHU On-Line - Em que sentido a hospitalidade é “intrusiva” e comporta uma face da violência, transgressão e hostilidade?
Alain Montandon - Atravessar um limiar é uma transgressão ritualizada. O limiar é a linha de demarcação de uma intrusão, pois a hospitalidade é intrusiva, comporta, queiramos ou não, um lado de violência, de ruptura, de transgressão ou até mesmo de hostilidade, ao que Derrida chama de hostipitalidade. A invasão do domínio do Outro é um problema tanto de proxêmica quanto de propriedade. “Território é terra mais terror”. Eis a questão do próprio, daquilo que constitui minha identidade no pertencimento a um território, a um espaço em que o outro é visto, de uma maneira ou outra, como um intruso. O gesto da hospitalidade consiste, primeiramente, em afastar a hostilidade latente em qualquer ato de hospitalidade, pois o hóspede, o estrangeiro, é seguidamente visto como reservatório de hostilidade: seja ele pobre, marginal, errante, sem teto, seja o louco ou o vadio, ele representa uma ameaça.
Mas as ambiguidades e as ambivalências desse momento do encontro e da acolhida envolvem hostilidades latentes ou explícitas. Não se sabe a quem se recebe e, em retorno, o temor gera a hostilidade manifesta do hospedeiro e sua inospitalidade fundamental. A chegada de um hóspede inesperado, de caráter supostamente hostil, pode comprometer o pertencimento, daquele que acolhe, ao seu próprio território. Quem se convida, como na novela de Maupassant, “O amigo Joseph”, já aparece, antes do conto O Horla, como uma ameaça para a zona próxima, para o espaço da identidade e da intimidade do proprietário, usurpadas pelo parasita.
A preocupação do emigrado, sinônimo de sua desassistência ante a possível acolhida, manifesta-se por um sentimento de perseguição. Antes mesmo de desembarcar, Karl afirma: “Ademais, tem-se aqui um preconceito contra os estrangeiros”. A angústia paranoide responde a essa hostilidade latente, que ele antecipa, do novo grupo social. A língua estrangeira também é fator de exclusão.
“Aqui, as pessoas não gostam dos estrangeiros”, este é um leitmotiv antigo, encontrado até mesmo na utópica Esquéria (ou Feácia) da Odisseia. Essa rejeição tem sua razão, é claro, no temor do não familiar, do desconhecido, daquele que poderia ser um bandido, um pirata, como aqueles que vagam “pelo mar sem rumo” e “que se aventuram, apostando sua vida e devastando as costas estrangeiras” . Existem, no entanto, razões mais profundas para esse temor: o estrangeiro é um intruso na esfera doméstica, na vida privada e íntima, no estreito círculo da existência cotidiana, familiar e pessoal. A angústia pela intrusão, que pode chegar à recusa de acolher, presta-se a uma análise tanto psicológica quanto sociológica da intimidade.
O grupo social pode sentir como se fosse um perigo o ingresso de um elemento externo e diferente em seu meio. Cada grupo se distingue por um modo de funcionamento que se apoia na coerência de seus membros e na exclusão daqueles que dele não fazem parte. A distinção estabelece tanto a identidade quanto a diferença, a identidade de pertencimento a uma sociedade e a exclusão dela. Sabe-se o quanto o jogo social é hostil à mistura, ao heterogêneo, ao composto, ao díspar. Quem se assemelha se une e, inversamente, quem é diferente se ignora, não deve nem pode unir-se.
IHU On-Line - Por outro lado, quais são os nexos que unem a hospitalidade e o diálogo entre culturas e suas diferentes religiosidades?
Alain Montandon - Na hospitalidade clássica, encontramos regras que parecem bastante universais em muitas culturas. Assim, por exemplo, a regra dos três dias parece disseminada entre os árabes bem como entre os alemães, os quais explicam que, passados três dias, “o hóspede, como o peixe, começa a cheirar mal”. Esse provérbio indica justamente que um limite temporal deve ser respeitado (tanto por razões econômicas, quanto por razões psicológicas, pois mais de três dias poderiam significar que o hóspede se enxerta, acomoda-se e põe em perigo a economia doméstica). É psicológico também, pois um hóspede acaba pesando, perturbando o equilíbrio habitual que fora aceito, mas por um tempo restrito. São três dias simbólicos que definem o enquadramento e os limites: um tempo para acolher, um tempo para a estada e um tempo para partir.
Receber o estrangeiro é não só aceitar sua diferença, mas também querer que ele respeite os próprios códigos culturais do hospedeiro. Em outras palavras, o convidado também deve respeitar as regras que estabelecem limites para a sua intrusão. O Kanun, que rege a hospitalidade na Albânia há vários séculos, menciona, por exemplo, que não se deve levantar a tampa da panela, uma regra particularmente significativa e simbólica para os limites da acolhida: a despeito de uma hospitalidade muito generosa, aberta e aparentemente ilimitada, mantém-se reservado um domínio (que, no caso, é a administração do lar e da alimentação). Interdito significativo e interessante, que demonstra bem que o hóspede não tem todos os direitos e permanece à margem, mesmo no centro da família que o acolhe. Isso não exclui, obviamente, o diálogo entre as culturas, que começa pela curiosidade pelo outro, pelo desejo de compreender, pela tolerância e a aceitação, ou seja, pela acolhida da alteridade.
IHU On-Line - Em que medida pode se falar na hospitalidade como um respeito radical à alteridade?
Alain Montandon - O respeito radical à alteridade faz parte da fantasia de uma hospitalidade absoluta. Ser hospedeiro/hóspede é entregar-se a uma dependência que pode significar uma dissolução do eu, como Derrida assinala a respeito da hospitalidade absoluta ou incondicional. Entre a lógica da dádiva e da contradádiva e aquela do sacrifício, existe uma relação de complementaridade paradoxal. Derrida pensa que a hospitalidade absoluta ou incondicional “supõe uma ruptura com a hospitalidade em sentido corrente, com a hospitalidade condicional, com o direito ou o pacto de hospitalidade” . Ele vê nela uma “pervertibilidade irredutível”. As ficções, construções do imaginário (conto, romance, teatro), tentam representar e encenar essa constelação paradoxal da hospitalidade entre o interesse próprio e o sacrifício de si mesmo, entre o pragmatismo e a utopia. Ser acolhido é dispor-se a todos os riscos e colocar seu destino nas mãos do hospedeiro. Mais do que qualquer outra, é a figura de uma oralidade devoradora que se evidencia. Primeiro, porque buscar refúgio é buscar uma compensação para o estado de desamparo primordial, que é a fome. O comer/ser comido confrontam-se constantemente. Engolir, sorver, devorar são fantasias que reativam um temor originário na relação com o outro: a perda da identidade, a perda de si mesmo e o despedaçamento do corpo. Outra fantasia mais moderna relacionada com esse atentado à integridade é a contaminação, a epidemia, o contágio. O estrangeiro, o forasteiro, é o doente, o portador de micróbio ou vírus. O que vem de fora, do outro lado da fronteira, é o fora-do-lugar, o parasita, o alien.
IHU On-Line - O que a ideia de hospitalidade tem a nos dizer em um tempo marcado pelo crescimento vertiginoso dos refugiados e dos imigrantes?
Alain Montandon - Convém distinguir o que diz respeito à hospitalidade como interação entre indivíduos da hospitalidade como manifestação coletiva (hospitalidade institucionalizada, clerical, estatal etc.). É curioso observar como toda e qualquer ideia de hospitalidade parte de e se refere a uma hospitalidade individual como modelo ideal de humanismo, a ponto de criar confusões singulares, como, por exemplo, aquela que designa o acolhimento de populações migrantes com o termo hospitalidade – o que é obviamente diferente da hospitalidade individual, pois a hospitalidade estatal é de outra natureza, embora a noção implique, nos dois casos, a prevalência de uma mesma preocupação de acolhimento e dignidade humana.
IHU On-Line - Por que a hospitalidade pode ser, também, agonística?
Alain Montandon - Em francês, a palavra hôte designa tanto aquele que recebe quanto aquele que é recebido, o hospedeiro e o hóspede. Por que essa ambiguidade? A resposta é dada por Benveniste na análise etimológica que ele faz dessa palavra. A palavra hôte vem de hospes. Mas hospes tem um estranho parentesco etimológico com hostis, o estrangeiro, o inimigo. O hospedeiro/hóspede seria, então, um inimigo? Esses traços de natureza etimológica explicam-se pelo contexto político e jurídico do mundo antigo grego e romano, que forjou o conceito de hospedeiro/hóspede.
Na origem das duas palavras, hospes e hostis, encontra-se o verbo hostire, tratar de igual para igual, compensar, pagar em troca. Em francês, hostis deu hostile [hostil]. O hospedeiro/hóspede e o inimigo têm, portanto, em sua origem uma importante noção em comum, a noção de compensação, de tratamento de igual para igual, ato esse que visa a aplainar o status a priori hostil do hóspede. O hospedeiro/hóspede é, por essência, estranho e outro, e essa alteridade fundamental é perigosa. Nessas duas forças em confronto, o hospes e o hostis, cada uma delas pode se tornar refém [otage, em francês]. O refém clássico é o hóspede mantido em ostage pelo hospedeiro, por aquele que representa o poder do lugar, o déspota.
No entanto, pelo jogo perverso da ambiguidade fundamental da palavra, todo hospedeiro pode tornar-se refém do hóspede. Temos aqui uma dialética amigo-inimigo, ou até mesmo senhor-escravo. Devemos retomar “a questão do estrangeiro” formulada por Jacques Derrida e René Schérer. Ambos definem os termos dessa relação dialética. Para assinalar “a lei paradoxal e pervertedora”, Jacques Derrida escreve: “Esse outro se torna um sujeito hostil do qual corro o risco de me tornar refém” . E René Schérer afirma: “O hóspede é um inimigo potencial” . Não esqueçamos que ele o é por natureza, pois, no centro mesmo do conceito de hóspede, encontra-se o conceito de estrangeiro. Falando de uma “hospitalidade absoluta, incondicional, hiperbólica”, Derrida diz: “É como se a hospitalidade fosse impossível: como se a lei da hospitalidade definisse essa impossibilidade, como se não pudéssemos deixar de transgredi-la [...]” .
IHU On-Line - Por que as leis da hospitalidade (embora não escritas) não abrangem apenas o anfitrião, mas também aquele que é acolhido? O que isso significa? Poderia recuperar a ideia de hospitalidade a partir da perspectiva de Marcel Mauss, como dádiva?
Alain Montandon - “[...] que mortais aqui se albergam?/ Bárbaros são, injustos e ferozes,/ Ou tementes aos deuses e hospedeiros?” A hospitalidade é inconcebível sem os deuses. O acolhimento do estrangeiro é legitimado, quase de maneira universal, por um imperativo religioso. No fenômeno da hospitalidade, há algo da ordem do mana, que remete a algo mágico, embora indeterminado. (Mana é um termo polinésio, mas encontramos esse conceito em muitos outros povos. Ele designa a emanação da força espiritual do grupo e, segundo Marcel Mauss, é criador de laço social.)
Em As formas elementares da vida religiosa, Durkheim afirma que as coisas sagradas são definidas como “aquelas que os interditos protegem e isolam”. Dizer que a hospitalidade é sagrada implica, portanto, não somente o tabu, mas também um pertencimento à divindade. O sagrado seria uma força transcendente, uma potência que os sociólogos interpretam como sendo aquela de uma sociedade percebida por seus membros como exterior a eles e atribuída a uma divindade. A hospitalidade, também, é sagrada por ser fundadora e sobrenatural: o hóspede é o símbolo da mediação entre duas esferas totalmente diferentes. É o desconhecido que vem de longe, que é temido, um ser inapreensível que penetra em um lugar delimitado, num espaço circunscrito, aquele da morada. Todo estrangeiro, por sua alteridade inquietante, possui essa dimensão numinosa na qual Rudolf Otto via a essência do sagrado. O desconhecido gera temor e tremor, mesmo que traga também abertura para o mundo exterior, mesmo que traga novas palavras. É ao mesmo tempo ameaça e dádiva .
O hóspede é uma figura sagrada, e essa sacralização, que é certamente uma maneira de circunscrever o caráter de exterioridade, de desconhecido, do estrangeiro naquilo que ele pode conter de ameaçador.
No Ensaio sobre a dádiva, Marcel Mauss considera a hospitalidade uma das atividades típicas da troca não mercantil. As atividades que entram no campo de análise da dádiva são, primeiramente, coletivas: “não são indivíduos, são comunidades que se obrigam mutuamente”, clãs, tribos, famílias; além disso, não se limitam a bens e riquezas, a móveis e imóveis, tampouco a coisas economicamente úteis, mas incluem “gentilezas, festejos, ritos, serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras...”. A hospitalidade é essencialmente concebida pelo vértice da reciprocidade. Recusar-se a dar, deixar de convidar “equivale a declarar guerra; significa recusar a aliança e a comunhão”. Ao contrário, a dádiva e o convite significam o estabelecimento do laço social.
IHU On-Line - Qual é a importância de Kant para a reflexão acerca da hospitalidade?
Alain Montandon - Para formular os princípios de seu projeto de paz perpétua, Kant se apoia na noção de hospitalidade estatal, que deve ser pensada do ponto de vista jurídico e não filantrópico. Ele afirma que esse direito fundamenta a obrigação de conceder um direito de visita, mas não de residência, e explica esse direito por um outro direito, o da posse da Terra por todos os homens: “Esse direito, devido a todos os homens, estende-se à sociedade, em razão do direito da posse comum da superfície da Terra, na qual, por ser esférica, os homens não podem dispersar-se infinitamente, devendo então se suportarem uns aos outros, e nenhum deles tem originariamente mais direito do que o outro de ocupar tal lugar.” Esse direito à hospitalidade insere-se necessariamente, segundo Kant, em seu projeto de paz perpétua, pois permite estabelecer relações pacíficas entre diferentes partes do mundo, o que vai de encontro à conduta inospitaleira de certos Estados que conquistam, oprimem e saqueiam outros. Apoiando-se em A paz perpétua para formular sua concepção da hospitalidade, Jacques Derrida lamenta tal limitação e procura conceber a hospitalidade como acolhimento, mais além do direito à visita.
IHU On-Line - Que outros filósofos são fundamentais para o debate dessa temática?
Alain Montandon - A própria noção de acolhida, como abertura e sujeição a outrem, encontra-se no centro da reflexão filosófica de Lévinas dedicada à subjetividade, uma vez que a acolhida permite pensar a relação não apenas com o outro, mas também consigo mesmo. Integrando-a na hospitalidade, Lévinas atribui à acolhida o papel de novo conceito operatório. Para compreender como a noção de hospitalidade pode passar do receber alguém ao receber de alguém e, em maior medida, para entender a verdadeira natureza incondicional da acolhida, é necessária uma leitura transversal dessa noção nas dimensões metafísica, ética e religiosa que encontramos em Totalidade e infinito, “imenso tratado da hospitalidade”. Jacques Derrida escreve: “Na medida em que diz respeito ao ethos, isto é, à morada, à casa, ao lugar da estada familiar, tanto quanto ao modo de viver ali, de se relacionar consigo mesmo e com os outros, outros como os seus ou como estrangeiros, a ética é hospitalidade, totalmente coextensiva à experiência da hospitalidade, seja ela ampliada ou limitada.” Se Lévinas vê no rosto a alteridade inapreensível do outro, a acolhida desse outro reside no reconhecimento do estrangeiro que está em mim mesmo.
O principal filósofo da hospitalidade foi Derrida, na França, mas poderíamos citar também, na Alemanha, Jabès e Hans-Dieter Bahr.
IHU On-Line - A partir dos estudos realizados pelo Centro de Pesquisas de Literatura Moderna e Contemporânea (CRLMC, na sigla em francês), quais são as principais interações hospitaleiras na literatura?
Alain Montandon - As pesquisas realizadas pelo CRLMC (agora CELIS) sobre as representações sociais (ver a revista) trataram de muitas interações hospitaleiras, principalmente no teatro, nos romances e contos, e culminaram em muitas publicações. Eu mesmo publiquei um livro intitulado Désirs d’hospitalité. De Homère à Kafka (PUF, 2002) (traduzido para o italiano: Elogio dell’Ospitalità. Storia di un rito. Salerno Editrice, Roma, 2004; e para o romeno: Despre ospitalitate. De la Homer la Kafka. Iasi, Institutul European, 2015), que analisa as interações hospitaleiras de muitos autores (Klossowski, a literatura libertina, de Crébillon a Mandiargues, Goethe, Flaubert, Rousseau, Maupassant, Landolfi, Vercors, Pirandello, Camus e, obviamente, Franz Kafka).
IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Alain Montandon - Concluindo, há tantas coisas a dizer sobre a hospitalidade, que consegui apenas esboçar algumas respostas. Aconselho a leitura de Le Livre de l’hospitalité. Accueil de l’étranger dans l’histoire et les cultures (sob a direção de Alain Montandon), Bayard, 2004, 2036 p. Este livro foi traduzido no Brasil: O Livro da Hospitalidade. Acolhida do estrangeiro na história e nas culturas. Sob a direção de Alain Montandon. Tradução de Marcos Bagno e Lea Zylberlicht; Editora Senac, São Paulo, 2011, 1438 p.
Além de muitas obras coletivas que publicamos.
Notas:
[1] Pierre Klossowski, Roberte ce soir, in Les lois de l'hospitalité, L'Imaginaire Gallimard, 1965, p. 110. “O anfitrião, preocupado apenas em transmitir sua alegria a quem viesse, à noite, comer à sua mesa e repousar sob seu teto do cansaço da estrada, espera ansiosamente, à soleira da porta de sua casa, o estrangeiro que ele vê despontar no horizonte como um libertador. E assim que o avista a distância, o anfitrião trata de exclamar: ‘Entre depressa, pois tenho medo da minha felicidade.” [Tradução livre] (Nota da IHU On-Line).
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Hospitalidade, a difícil e necessária dádiva da reciprocidade. Entrevista especial com Alain Montandon - Instituto Humanitas Unisinos - IHU