01 Dezembro 2020
“Há resistências em dar aos indígenas o devido lugar nas estruturas eclesiais”.
“A cor vermelha do cardinalato, mais que um convite a defender o Papa, é defender o Evangelho”. Assim se expressa dom Felipe Arizmendi Esquivel, arcebispo emérito da diocese de San Cristóbal de las Casas, no México, nesta entrevista ao Religión Digital. Um dos 13 novos cardeais nomeados pelo Papa, Arizmendi vive o Evangelho e, portanto, a Igreja samaritana, pobre e inculturada que propõe Francisco.
A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada por Religión Digital, 28-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Estás vivendo a concessão do cardinalato como o último serviço a prestar à Igreja, mais que uma honraria?
Sempre estive disposto a servir à Igreja em qualquer missão que me foi confiada. Não sei se esta nomeação de cardeal será a última; porque também quando já não puder fazer mais coisas, talvez no leito de um hospital, peço ao Espírito que me dê a sabedoria e a força de oferecer esses sofrimentos como um aporte também à missão da Igreja. O cardinalato se pode ver como uma honra, e sim o é, porém mais que honra é um convite a seguir dando a vida no serviço cotidiano.
O cardinalato segue conservando, no entanto, sinais e símbolos externos principescos. Não teriam que ser suprimidos?
O papa Francisco deu passos para simplificar muitas coisas no estilo de vida do papado e dos ministérios hierárquicos; isto é parte da renovação eclesial que o Concílio Vaticano II pediu e que os antecessores de Francisco também promoveram. No entanto, a história tem muito peso e muitas pessoas resistem a essa simplificação. Em uma ocasião o papa Francisco me confiou algo que lhe custa, é o que ele considera como “tortura do protocolo”.
Não gosto das roupagens que põem a nós cardeais, não somente pelo seu elevado custo, mas também porque nos fazem ser vistos como “príncipes”, coisa que o Papa critica muito. Por agora toleramos, eu ofereço como um sacrifício.
O que significa, hoje, para você, no México, estar disposto a defender o Papa até dar a vida por ele?
Desde janeiro de 1979, quando João Paulo II visitou o México pela primeira vez, senti que tudo o que ele nos disse em suas mensagens não poderia ser desperdiçado. Por isso fui ao jornal principal de Toluca, solicitando poder escrever sobre a atualidade, iluminando-os com o Evangelho e com o Magistério Pontifício. Desde então, escrevo a cada oito dias sobre temas atuais, com o método ver-julgar-agir, para oferecer ao público a luz que recebemos do Espírito e que nos atualiza em tantos documentos do Magistério eclesial. Espero continuar a prestar este serviço, que é também uma forma de defender o Sucessor de Pedro. No entanto, a cor vermelha do cardeal, mais do que um convite a defender o Papa, é defender o Evangelho, é dar a vida por Cristo e pelo seu Povo, que é também o que os Papas procuram fazer.
O seu barrete é uma recompensa por aquela Igreja inculturada, que dom Samuel Ruiz iniciou e seus sucessores seguiram em San Cristóbal?
Desde o primeiro bispo efetivo desta diocese, erigido em 1539, que foi Frei Bartolomé de Las Casas, houve bispos muito comprometidos com a inculturação do Evangelho e da Igreja. Digo “bispo efetivo”, porque dois bispos foram nomeados antes: um se arrependeu e renunciou antes de chegar; o outro morreu no caminho. A contribuição do meu antecessor, dom Samuel Ruiz, foi muito valiosa, em meio a mal-entendidos de toda espécie, mas também o anterior, dom Lucio Torreblanca, promoveu iniciativas ousadas, como o movimento catequético com os indígenas, a maioria casado, para as comunidades mais remotas, o que tem sido fundamental para a promoção do diaconato permanente dos indígenas. O cardinalato, portanto, não é apenas o meu reconhecimento, mas de uma Igreja que, de forma sinodal, continua lutando para encarnar o Evangelho nas culturas originárias. Meu sucessor, dom Rodrigo Aguilar, esteve profundamente envolvido neste processo.
Aliás, o que o Papa Francisco lhe disse, depois de rezar no túmulo de Tatik Samuel, em sua viagem a Chiapas?
O Papa veio a esta diocese para estar com os indígenas. Esse foi o seu principal motivo. Tanto que, como me disseram as autoridades do Vaticano, quando o governo federal se recusou a nos visitar, ele insistiu em fazê-lo. Quando o encontramos em Roma para preparar muitos detalhes de sua visita, sugeri que, tendo que estar na catedral com os enfermos e idosos, ele parasse por um momento no túmulo de Tatik Samuel. Ele me perguntou se eu considerava isso relevante e eu disse a ele que seria um péssimo sinal não o fazer. Ele concordou imediatamente. Nada comentou comigo no final.
Você se sente, de alguma forma, o cardeal dos índios?
Seria muito fingimento da minha parte. O Papa nomeou o bispo Toribio Porco Ticona, bispo quechua da Bolívia, que também fala aymara, como cardeal. O cardeal brasileiro Claudio Hummes promoveu muito a pastoral indígena na Amazônia. O cardeal Alberto Suárez, arcebispo emérito de Morelia, no México, conduziu o processo de canonização de “Tata Vasco”, grande apóstolo dos indígenas Purépecha. São muitos os bispos, padres, religiosos e agentes pastorais que dão a vida pelos povos indígenas, sem publicidade. Dedico este reconhecimento a eles e a eles. O Papa quer destacar a importância dessas culturas, que também enriquecem a Igreja. Um detalhe muito importante neste sentido é que mudou os cânones, de modo que não foi mais a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos que aprovou as traduções indígenas da Liturgia, mas que esta é da responsabilidade das Conferências Episcopais, que são aqueles que sabem mais sobre essas culturas; esta Congregação só dará a “confirmação” de que o processo seguido está em comunhão com a fé e a prática da Igreja.
A Igreja espanhola deve pedir desculpas aos povos indígenas? E o Papa?
Desde João Paulo II, depois Bento XVI, e em várias ocasiões por Francisco, o perdão já foi pedido, em nome de toda a Igreja, não apenas da Espanha. A obra evangelizadora também foi exaltada com todas as suas luzes, sem ignorar as sombras. Quem continua exigindo esse pedido de perdão mostra sua ignorância sobre o que já foi feito.
Como defensor dos imigrantes, você gostaria que o próximo presidente dos Estados Unidos não fosse Donald Trump?
Seja quem for o governante de qualquer país, a nossa missão é acolher, proteger, promover e integrar os migrantes. Devemos continuar lutando para que todos os migrantes, latinos e outras culturas sejam respeitados nos Estados Unidos, mas também devemos continuar lutando em nosso país para que centro e sul-americanos que passam entre nós, assim como africanos e asiáticos que não estão faltando, encontre um clima de fraternidade. Para eles, nas diferentes dioceses do país, foram criados mais de uma centena de abrigos, onde lhes é oferecido o melhor atendimento. Devemos continuar a lutar para que as leis de imigração sejam aprimoradas e os migrantes sejam tratados como seres humanos.
A hierarquia da Igreja mexicana segue o papa Francisco no fundo?
Não há um único bispo que manifeste não estar em comunhão afetiva com o papa Francisco. Uma das nossas características sempre foi a harmonia com os Papas de diferentes épocas. No entanto, devido à multiplicidade de compromissos pastorais, visto que nossos bispos são muito dedicados ao povo, os documentos e linhas pastorais, neste caso, do papa Francisco nem sempre são totalmente conhecidos. Por exemplo, ele insiste em que sejamos uma Igreja pobre para os pobres, e nem sempre refletimos isso em nossas festas pessoais ou eclesiais. O espírito mundano nos aprisiona. Ele nos dá um exemplo de proximidade com os indígenas, nem sempre damos a eles uma atenção amorosa e há resistência em dar-lhes o seu lugar nas estruturas eclesiais.
Pensas que se devem a que as resistências de alguns prelados às reformas do Papa?
O estilo de vida do papa Francisco e alguma de sua insistência pastoral, por exemplo, em relação aos homossexuais e migrantes, aos pobres e indígenas, encontram resistência daqueles que levaram um outro estilo de vida, outra concepção da forma como um Papa deve se vestir, se comportar e falar. Dizem que o Papa deve falar mais da Palavra de Deus, da vida espiritual, como se estivessem separados da vida real. Os pobres, os migrantes, os presos, os órfãos e as viúvas estão no coração de Deus e no centro do Evangelho. Porém, não podemos condenar os inimigos do Papa, porque se consideram autênticos católicos e devem preservar o que chamam de catolicismo autêntico. Eles não compreenderam realmente o Papa e temos que nos entender e amar, além de nossas diferentes eclesiologias.
A Igreja sairá mais forte ou enfraquecida da pandemia de covid-19?
Essa pandemia pegou todos nós de surpresa e, a princípio, a assistência pastoral ficou paralisada. Mas agora estamos aprendendo que existe outra maneira de ser Igreja, de servir ao povo, de celebrar e pregar. Além disso, e isto é o mais importante, aumentou a solidariedade do nosso povo para com aqueles que mais sofreram as consequências das doenças e do desemprego. Estamos aprendendo a nos mover neste mundo digital, mas também doente e limitado. O Espírito Santo está nos ajudando a continuar a obra de Jesus nestes novos tempos.
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“Não gosto da roupagem que colocam em nós cardeais, é cara e de príncipe”. Entrevista com o novo cardeal mexicano Felipe Arizmendi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU