24 Novembro 2020
“A polarização em questões morais e éticas entre os dois partidos políticos – da sexualidade e casamento à imigração e liberdade religiosa – se reflete no campo religioso e vem piorando há décadas. Mas é agravado neste momento pelo ressurgimento na cultura dominante de convicções religiosas anticientíficas e neomedievais e sua expressão por meio de teorias da conspiração. Precisamos lembrar que o projeto católico estadunidense é inseparável do projeto de dois séculos de fazer da Igreja um pilar da liberdade estadunidense”, escreve Massimo Faggioli, historiador italiano e professor na Villanova University, em artigo publicado por Commonweal, 23-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A era Trump representa um extraordinário período na história das relações entre o governo dos EUA e o papado. Eu penso em setembro de 2015, quando Donald Trump anunciava sua candidatura, papa Francisco viajava para os Estados Unidos. Católicos estadunidenses procuravam correr em torno do Papa, enquanto a maioria não levava a candidatura de Trump a sério. Então sua campanha iniciou, e ele começou a ganhar força com suas promessas sobre construir muros e banir muçulmanos.
No início de 2016, durante uma conferência em voo do México para casa, o Papa descreveu essas propostas políticas como “não-cristãs”. Trump respondeu chamando a declaração do papa Francisco de “infeliz”. Isso estava claro e gravado que Francisco e Trump representavam visões de mundo divergentes, uma divisão que EWTN e Fox News alegremente assumiram e amplificaram, dirigindo uma narrativa que, se não conduzindo para um cisma formal, não obstante, cheirava a um catolicismo nacionalista enquanto minavam a crença na unidade da Igreja. E isso se tornaria cada vez pior desde então.
Durante a campanha de 2016, o Vaticano fortaleceu, não tão secretamente, Hillary Clinton. Deixando de lado a sua posição sobre aborto, ou o fato de que como secretária de Estado ela não visitou o Vaticano (tornando-se a primeira secretária de Estado desde o governo Nixon a não visitar o Papa) – ela ainda era a menos pior de duas opções ruins.
A vitória de Trump em novembro chocou o Vaticano, mas aderiu a velhos adágios diplomáticos: “nunca fechar uma porta” e “fazer-se previsível”. Claro, essa não era a forma do novo presidente. Enquanto ele se comportava de acordo com o protocolo em sua visita com a primeira dama do Vaticano em maio de 2017, mesmo projetando um senso de normalidade diplomática, operadores como Newt Gingrich e Steve Bannon estavam simultaneamente forjando conexões com clérigos anti-Francisco em um projeto político que objetivava subverter o status quo tanto na Europa quanto na Igreja Católica. A ideia era introduzir no coração simbólico e administrativo do catolicismo um patógeno que seria conhecido como trumpismo, talvez fazendo Roma a capital paralela de um novo continente anti-Europeu e anti-Francisco. Esse projeto, felizmente, falhou. O extraordinário ataque do secretário de Estado Mike Pompeo, feito em outubro passado, contra a soberania diplomática da Santa Sé sobre a renovação do acordo provisório de setembro de 2018 com a China, de várias formas serviu como prova. Mais que isso, sua birra deve servir como benefício para o trabalho de Francisco, como o Vaticano está apto a sinalizar para o mundo que não recebe ordens dos EUA.
O Vaticano só pode ficar satisfeito com a chegada de Biden à presidência e com isso o retorno da estabilidade diplomática. O papa Francisco reconhecendo o resultado da eleição presidencial e parabenizando Biden em 12 de novembro (enquanto Trump ainda não o reconhece) indica o alívio que Roma sente.
A preferência do novo governo pelo multilateralismo se alinha com a do Vaticano, e eles também convergem em questões importantes como migração e meio ambiente. Em breve haverá um novo embaixador na Santa Sé e, após o mandato de Calista Gingrich (terceira esposa de Newt), a nomeação pode enviar alguns sinais interessantes. Lembre-se de que o presidente Obama nomeou o professor de teologia católica Miguel Diaz (2009-2013) e ex-presidente dos Catholic Relief Services Ken Hackett (2013-2017). Também pode haver mudança na missão diplomática do Vaticano nos Estados Unidos: em janeiro, o núncio papal, o arcebispo Christophe Pierre, completa setenta e cinco anos, idade em que um bispo católico deve apresentar sua renúncia ao Papa.
No entanto, não está tão claro o que a eleição de Biden significará no front eclesial. Trump claramente ajudou a criar a atmosfera que encorajou e capacitou os católicos de direita não apenas a montar sua campanha contra Francisco, mas também a atacar o catolicismo de Biden. As tentativas de cisma podem ter falhado, mas é difícil acreditar que a saída de Trump irá acalmar esses esforços, pelo menos enquanto Francisco for Papa e Biden estiver na Casa Branca. E embora os EUA sob Biden possam parecer mais adequados a este papado, vale lembrar que os documentos mais importantes que Francisco escreveu – Laudato si', Amoris laetitia e Fratelli tutti – falam aos Estados Unidos de uma forma direta e crítica. Eles não sugerem de forma alguma o antiamericanismo, mas sugerem uma visão do mundo que é pós-americana.
Claro, também há o fato do catolicismo de Biden. O Papa e o novo presidente podem ser quase da mesma geração, mas Biden representa um tipo específico de catolicismo americano que está rapidamente se tornando parte do passado – um catolicismo moldado pela tradição dos imigrantes europeus e formado por uma educação amplamente fornecida por ordens religiosas (masculinas e femininas), viviam em regiões densamente povoadas do Nordeste e Meio-Oeste. Agora que a Igreja estadunidense é mais étnica e geograficamente diversa, não se pode dizer que ele representa seu presente ou seu futuro. Também permanece a divisão entre os católicos estadunidenses que mesmo um construtor de pontes como Francisco dificilmente sanará. É desanimador, mas instrutivo, notar a recusa de quase todo o episcopado dos EUA em condenar os ataques republicanos à democracia, que vão desde a supressão dos eleitores até o enfraquecimento do processo eleitoral por meio de alegações infundadas de fraude. Seu reconhecimento morno (na melhor das hipóteses) da vitória de Biden é desconcertante, assim como sua recusa, até agora, de abrir um diálogo com o presidente eleito. Desde já, Trump ainda se recusa a ceder e persiste em seus esforços para anular os resultados de uma eleição que ele claramente perdeu – enquanto os bispos não dizem nada. O silêncio sugere não neutralidade, mas partidarismo, e apenas acelera o colapso da credibilidade.
No momento, há uma necessidade urgente de um retorno à normalidade, e os bispos dos EUA podem ajudar dizendo coisas normais. A polarização em questões morais e éticas entre os dois partidos políticos – da sexualidade e casamento à imigração e liberdade religiosa – se reflete no campo religioso e vem piorando há décadas. Mas é agravado neste momento pelo ressurgimento na cultura dominante de convicções religiosas anticientíficas e neomedievais e sua expressão por meio de teorias da conspiração (não é apenas um problema dos EUA; a estação de rádio católica mais popular da Itália, a Rádio Maria, tem recentemente vendido a teoria de que a covid-19 foi criada por elites cosmopolitas para destruir a Igreja). Precisamos lembrar que o projeto católico estadunidense é inseparável do projeto de dois séculos de fazer da Igreja um pilar da liberdade estadunidense. Podemos ter um novo presidente. Mas devemos nos preocupar com os danos duradouros que a pessoa que está saindo deixou. O trumpismo ainda ameaça a contribuição católica ao consenso moral-religioso na base da democracia dos EUA, juntamente com a viabilidade do próprio projeto católico.
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Recomeço com Roma, mas não em casa. O Vaticano saúda Biden. E os bispos dos EUA também o saudarão? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU