Para construir a Economia de Francisco e Clara

Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”

07 Novembro 2020

“O cerne dessa economia civilizatória constitui a democratização dos recursos econômicos e, consequentemente, da sociedade, de modo a haver equilíbrio socioeconômico e também na relação com o planeta - a nossa Casa Comum, como ressalta a Francisco na encíclica Laudato Si' - que não pode ser aviltada, devendo ser efetivamente cuidada. Há necessidade, portanto, de seu enfrentamento concreto através de medidas que levem ao real equilíbrio entre mercado e Estado, bem como à disseminação e o fortalecimento dos ‘implantes socialistas’. Tal economia nova, necessariamente, não tem caráter exclusivo materialista, ou seja, contempla efetivamente a dimensão da espiritualidade” escreve André Ricardo de Souza, professor de sociologia da UFSCar, membro da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara - ABEFC e da Associação Brasileira de Pesquisadores de Economia Solidária - ABPES, em artigo para a coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”, publicada semanalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

A arte que ilustra esta Coluna é uma obra de Kassio Massa, arquiteto, urbanista e artista visual com graduação pela FAU Mackenzie, e mestrando na mesma universidade. Atua com desenho, fotografia e meios digitais.

 

Eis o artigo.

 

Breve introdução

 

Esta pequena reflexão [1] abrange aspectos que considero fundamentais na contribuição brasileira como resposta ao chamado do Papa Francisco para pensar e buscar a mudança socioeconômica do mundo, sendo tal mobilização denominada no Brasil: Economia de Francisco e Clara. Do universo nacional de experiências e propostas que a compõem e deve ser compartilhado com outros países, ressalto cinco faces:

1) renda básica;

2) economia solidária

3) orçamento participativo;

4) educação popular;

5) dimensão da espiritualidade.

 

Cabe dizer que há outras também importantes, havendo destaque para os aspectos ambientais.

 

Renda básica

 

O tema da renda emergencial surgiu em 2020 como uma solução necessariamente imediata para dezenas de milhões de pessoas sem salário ou renda fixa. O desafio é passar dela, em face da crise do novo coronavírus, para a universal e perene renda básica da cidadania, algo que possibilite a toda pessoa ter resguardada sua sobrevivência e da sua família enquanto um direito assegurado pelo Estado (Parijs, 1995; Suplicy, 2013).

A viabilidade da renda básica passa pela criação de um fundo específico a ser alimentado também com recursos oriundos de impostos progressivos, contemplando a taxação condizente de grandes lucros e fortunas. Trata-se, não de uma panaceia, mas sim de uma forma efetiva de eliminação da pobreza extrema, com a grande vantagem de não sujeitar indivíduos ao trabalho aviltante, algo que contribui efetivamente para que os salários como um todo não sejam puxados para baixo.

 

Economia solidária

 

Constitui um amplo conjunto de iniciativas coletivistas de: produção, comércio, consumo, poupança e crédito, necessariamente orientadas por princípios igualitários e democráticos. Esse universo abrange cooperativas, empresas recuperadas ou em reabilitação de processos falimentares, pequenos empreendimentos associativos (pré-cooperativas), bancos comunitários e associações locais de troca de mercadorias e serviços mediante o uso de uma moeda social própria através dos empreendimentos econômicos solidários, trabalhadores desempregados e marginalizados vêm, desde os anos 1990, obtendo um meio de sustento e, por vezes, redefinem sua identidade social. Tal construção identitária se baseia na retomada dos princípios do cooperativismo europeu e pioneiro do século XIX, principalmente a autogestão (Singer, 1998 e 2002; Singer; Souza, 2000; Cattani, 2003). Sua bandeira fundamental, vale frisar, é a autogestão, afirmando valores para além da atividade econômica em si, ligados à ideia de democratização da sociedade.

Como sublinhava o saudoso professor de economia da USP Paul Singer, os empreendimentos de economia solidária (EES) constituem “implantes socialistas” na sociedade capitalista, concebendo ele o socialismo como algo necessariamente democrático e construído de baixo para cima na sociedade (Singer, 1998, p. 121-122). Nos EES não há o que Marx (1975) denominou mais valia, a parte decorrente da produção do trabalhador que não lhe é paga na forma de salário ou participação nos lucros, mas sim geradora de acumulação. Convém lembrar que na economia solidária a absoluta maioria dos trabalhadores não recebe salários, mas sim retiradas, sendo que eles, enquanto também proprietários dos empreendimentos, não têm seus excedentes chamados de lucros, mas sim ‘sobras’. Evidentemente, Singer não subestimava efetivamente o papel do Estado na grande transformação social [2], mas atribuía ao aparato estatal menos importância do que fazem os defensores do socialismo verticalizado.

 

Orçamento participativo

 

Como outro exemplo de implante socialista Singer apontava o orçamento participativo (OP). Trata-se de uma experiência de gestão originária do Brasil [3] que ganhou projeção em 1989, na cidade de Porto Alegre, então administrada por Olívio Dutra, também do PT (Dutra; Benevides, 2001; Santos, 2002; Oliveira, 2016). Da capital gaúcha o OP se espraiou para algumas outras cidades brasileiras também com governos progressistas e, principalmente, para cerca de mil e quinhentos municípios de outros países, abrangendo as Américas e a Europa, com destaque para os territórios que compõem o Reino Unido (Bateman, 2019).

Tal experiência consiste basicamente em reunir cidadãos em plenárias para discutir e deliberar sobre a destinação de recursos orçamentários. Trata-se de um exímio exercício de democracia participativa, algo que exige firme vontade política dos gestores e elevado grau de organização popular mediante a prática dialógica (Habermas, 1994).

Lamentavelmente, porém, houve nas cidades brasileiras, geridas por partidos de esquerda, um arrefecimento e até desaparecimento dessa imprescindível vontade política levando ao refluxo dessa importante experiência.

Embora o OP seja associado conceitual e historicamente com a gestão pública municipal, ele, em tese, não se circunscreve apenas a recursos orçamentários de cidades. Ou seja, feitas as devidas adaptações - legislativas, normativas, culturais e políticas - tal experiência tem possibilidade de ser aplicada não só a outras instâncias de governo (estadual e até nacional, dados os avanços da tecnologia de informação e comunicação), mas também a variadas instituições públicas em que os indivíduos que as integram ou fazem reconhecido uso contínuo delas podem ser chamados a opinar sobre o uso de seus recursos e também seus rumos, tais como: hospitais, universidades e escolas médias e fundamentais, por exemplo.

Relacionada com o OP, vale dizer, está todo o debate sobre a real democratização do uso de recursos que compõem os orçamentos públicos.


Educação popular

 

A perspectiva da educação popular, que tem o nosso brasileiro Paulo Freire (1987) como a grande referência internacional, esteve presente na disseminação, a partir dos 1960, das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e das pastorais sociais que compõem o cristianismo da libertação (Löwy, 2000). Mais que isso esteve na base também do desenvolvimento de importantes frentes laicas de luta por direitos cidadãos, a começar pelo Movimento de Educação de Base (MEB), se fazendo presente em muitos movimentos sociais.

Paul Singer costuma se remeter a Freire para apontar o modo como o movimento da economia solidária deveria se organizar, algo que acabou mesmo acontecendo, em grande medida, através de cursos, plenárias, fóruns, tendo havido bastante empoderamento dos trabalhadores e das trabalhadoras. A bela trajetória da cooperada costureira que se tornou gestora pública Nelsa Nespolo (2014) ilustra bem esse fato. Isto, evidentemente, deve estar e já começa a se mostrar presente também na mobilização nacional em prol da Economia de Francisco e Clara.

 

Dimensão da espiritualidade

 

Verifica-se que a dimensão da espiritualidade, que é de crescente reconhecimento científico, sobremaneira na área médica (Veer, 2009; Koening, 2012; Toniol, 2017), deve ser considerada também na economia [4]. Trata-se de um aprofundamento a partir da constatação de que a economia é feita sim de bens tangíveis, duráveis e de consumo, além de serviços, mas não se restringe a isso. Ou seja, há fatores não apenas materiais e culturais, mas também espirituais, próprios da condição humana, que devem ser devidamente considerados.

As inúmeras práticas voluntárias constituem atividades econômicas nas quais os executores prestam serviços e algumas vezes repassam ou entregam diretamente bens de consumo, mas sobremaneira doam e recebem também bens espirituais, que não podem ser contabilizados. Junto com os pagamentos em dinheiro ou através de algum tipo de escambo, algo mais ocorre, havendo outras formas de recompensa que não devem ser subestimadas. São esses tais ganhos imateriais que, por exemplo, levam muitas pessoas a prosseguirem em pequenos empreendimentos de economia solidária, geradores de baixa renda, mas também de um expressivo grau de satisfação individual [5]. No trabalho caraterizado por tal espiritualidade, as pessoas adquirem uma força peculiar.

Na economia assumidamente espiritualizada não faz sentido, por exemplo, a existência de grandes prédios urbanos que armazenam comercialmente objetos não utilizados por seus donos, sendo eles espécies de ‘cemitérios de coisas’ guardadas at aeternum, em detrimento dos explícitos limites ambientais do planeta. Evidentemente, se contrapõe também a todo tipo de acumulação exacerbada - base da concentração e da desigualdade socioeconômicas - algo expresso numa verdadeira adoração ao dinheiro (Bejamin, 2013). E rejeita ainda o intenso consumismo com base naquilo que o Papa Francisco costuma chamar de “cultura do descarte”.

 

Considerações finais

 

Tanto a economia solidária quanto o orçamento participativo têm a dimensão democrática como algo central e estruturante. Consolidado como uma importante marca administrativa de prefeituras progressistas, o OP atraiu os olhos do mundo e vem aos poucos se disseminando internacionalmente. Mas, paradoxalmente, como visto, entrou em refluxo no Brasil a partir dos anos 2000 devido, sobretudo, à falta de vontade política dos gestores públicos. A alegação da dificuldade de implementá-lo, somada à ideia de sua suposta pouca visibilidade eleitoral, lamentavelmente, fizeram essa genuína política pública brasileira, na prática, ser posta de lado.

A educação popular, tal como delineada por Paulo Freire, constitui outra grande marca nacional, além de uma característica fundamental de movimentos eclesiais e sociais que têm grande importância na busca da democratização social. Por fim, a valorização da dimensão da espiritualidade constitui o reconhecimento de que a economia vai além da prestação de serviços pagos e da produção e venda de bens: materiais, culturais e simbólicos.

Pode-se dizer que os principais valores dessa economia espiritualizada são: gratuidade, solidariedade, reconhecimento, gratidão e reciprocidade. Eles ligam, de fato, as pessoas e as mobilizam fortemente. O ser humano, conforme apontam crescentes grupos médicos-científicos, não dispõe apenas de uma estrutura corpórea, mas sim também de uma dimensão espiritual, que não poderia ser negligenciada.

Penso que o cerne dessa economia civilizatória constitui a democratização dos recursos econômicos e, consequentemente, da sociedade, de modo a haver equilíbrio socioeconômico e também na relação com o planeta - a nossa Casa Comum, como ressalta a Francisco na encíclica Laudato Si' (2015) - que não pode ser aviltada, devendo ser efetivamente cuidada (Boff, 1999). Há necessidade, portanto, de seu enfrentamento concreto através de medidas que levem ao real equilíbrio entre mercado e Estado [6], bem como à disseminação e o fortalecimento dos ‘implantes socialistas’. Tal economia nova, necessariamente, não tem caráter exclusivo materialista, ou seja, contempla efetivamente a dimensão da espiritualidade. Isto porque nós nos alimentamos e fazemos uso também de bens que não podem ser comprados e que devem circular amplamente, tal como os elementos da natureza, conforme apontaram, há oito séculos, Clara e Francisco de Assis.


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Referências bibliográficas

BATEMAN, George Robert. The Transformative potential of Participatory Budgeting: creating an ideal democracy. Abingdon, Routledge, 2019.
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. Petrópolis, Vozes, 1999.
BUTTERWORTH, Eric. Spiritual economics: the principles and process of true prosperity. Unity School of Christianity, Unity Village, 1993.
CATTANI, Antonio David (Org). A outra economia. Porto Alegre, Veraz, 2003.
DUTRA, Olívio; BENEVIDES, Maria Victoria. Orçamento Participativo e Socialismo. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2001.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
KOENIG, Harold G. Medicina, religião e saúde: o encontro da ciência e da espiritualidade. Porto Alegre, L&PM, 2012.
LÖWY, Michael. A guerra dos deuses: religião e política na América Latina. Petrópolis, Vozes, 2000.
MARX, Karl. O Capital. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975.
NESPOLO, Nelsa Inês Fabian. Tramando certezas e esperanças: a história não para… São Leopoldo, Oikos, 2014.
OLIVEIRA, Osmany Porto de. Mecanismos da difusão global do Orçamento Participativo: indução internacional, construção social e circulação de indivíduos. Opinião Pública, v. 22, n. 22, 2016 p. 219-249.
PAPA FRANCISCO. Carta encíclica Laudato si': sobre o cuidado da casa comum. São Paulo, Paulinas, 2015.
PARIJS, Philippe Van. Real Freedom for all: what (if anything) can justify capitalism? Oxford, Oxford University Press, 1995.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Orçamento Participativo em Porto Alegre: para uma democracia distributiva. In: Democratizar a Democracia. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002.
SINGER, Paul. Uma utopia militante: repensando o socialismo. Petrópolis, Vozes, 1998.
SINGER, Paul. Introdução à economia solidária. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2002.
SINGER, Paul; SOUZA, André Ricardo de Souza (Orgs). A economia solidária no Brasil: a autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo, Contexto, 2000.
SUPLICY, Eduardo Matarazzo. Renda básica de cidadania: a saída é pela porta. São Paulo, Cortez e Fundação Perseu Abramo, 2013.
TONIOL, Rodrigo. Atas do espírito: a Organização Mundial da Saúde e suas formas de instituir a espiritualidade. Anuário Antropológico, v. 42, 2017, p. 267-299.
VEER, Peter van der. Spirituality in modern society. Social Research: an International Quarterly, vol. 76, nº 4, 2009, p. 1097-1120.

 

Notas

[1] Versão sumarizada e modificada de artigo publicado na Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar (disponível neste link). Agradeço a Klaus Raupp pelo convite para editar o texto e ao coletivo da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC), que o debateu comigo na reunião de 1 de agosto de 2020, fazendo sugestões.

[2] Ele fazia questão de ressaltar a diferença entre a revolução política (historicamente rápida) e a revolução social, por sua vez, lenta, tal como foi a passagem do regime feudal ao capitalismo industrial (Singer, 1998).

[3] Foi implementada pela primeira vez em 1983, na cidade capixaba de Vila Velha pelo prefeito do prefeito do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) Vasco Alves, sendo consolidado por sucessor do Partido dos Trabalhadores (PT) Magno Pires. Devo ao colega sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira esta informação.

[4] De algum modo isso já vem sendo esboçado mediante o uso de termos cristãos e da chamada autoajuda (Butterworth, 1993). 

[5] Isso, evidentemente, não significa que elas não almejam e tampouco devam deixar de buscar a elevação de suas retiradas e sobras

[6] Cabe dizer que o mercado, quando pautado pelos direitos humanos e cidadãos, cumpre papel social relevante, sendo algo pré-capitalista e que deverá existir também na sociedade pós-capitalista, a ser construída.

 

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