19 Abril 2018
"Meu pai tinha verdadeira paixão pelo PT. Mas o seu modo de amar o partido era parecido com aquele por meio do qual torcia para o Corinthians: sem nunca perder a objetividade", escreve André Singer, filho de Paul Singer e professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP, em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 18-04-2018.
Paul Israel Singer nasceu em Viena em 24 de março de 1932. O seu pai, Artur, morreu quando ele tinha apenas dois anos. Filho único e órfão de pai, Paul foi criado pela mãe, que fugiu do nazismo com ele para o Brasil em 1940, aonde chegou exatamente no dia em que meu pai completava o seu oitavo aniversário. Paul Singer tinha uma profunda gratidão pelo Brasil, a gratidão que talvez só conheçam os que perderam tudo e encontraram acolhida em outro lugar.
Por isso, começo esta oração de despedida com um agradecimento. Em meu nome e no das minhas irmãs, Suzana e Helena, quero agradecer pelo meu pai aos que aqui vieram hoje, aos que mandaram mensagens desde ontem quando souberam da sua morte e aos que tiveram um bom pensamento por ele nesta hora dura. Tenho certeza de que o meu pai, onde quer que ele esteja, está contente de saber que o seu amor por esta terra foi correspondido por tanta gente.
Os primeiros anos no Brasil foram duros. Minha avó era costureira e a pequena família vivia com bem pouco. Meu pai começou a trabalhar por volta dos 14 anos para ajudar. Fez curso médio de eletrotécnico. Empregou-se na elevadores Atlas. Filiou-se ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. Teve participação destacada na greve dos 300 mil em 1953.
Mas apesar das dificuldades das primeiras duas décadas no novo país, os relatos do meu pai sobre a vida aqui sempre foram cálidos. O aprendizado da nova língua, tão diferente, a descoberta de novos colegas e amigos na escola, o prazer infinito da leitura, as andanças pela cidade como office-boy, o cotidiano da fábrica. Tudo era contado sem qualquer ressentimento. Pelo contrário, na visão dele sobressaía a maneira pela qual o Brasil era aberto e receptivo.
Em meados da década 1950, Paul Singer tomou uma das decisões cruciais da sua vida. Tinha se engajado em um movimento sionista de inclinação socialista. Os colegas da época dizem que ele tinha um papel de liderança no grupo, que preparava a migração para Israel. Pretendiam viver no kibutz e construir uma nova sociedade pela base. Porém, na última hora, meu pai resolveu ficar no Brasil. Escreveu uma carta, defendendo lutar pelo socialismo aqui, em lugar de partir para o Oriente Médio. Em casa, ele nos contava que a mãe se recusara a viajar com ele e ele não poderia deixar a mãe. Minha avó adotara o Brasil como morada definitiva e essas raízes seguraram o meu pai aqui.
Aí começa a transformação do metalúrgico em professor. Entra no curso de economia da Universidade de São Paulo, milita no Partido Socialista Brasileiro, onde se ligou ao grupo socialista democrático ao qual pertencia Antonio Candido, com quem reteve uma ligação para o resto da existência. Casa-se com a Melanie, mãe da Suzana e da Helena, sua companheira por 50 anos. Levado por Fernando Novais começa a frequentar as reuniões do seminário do Capital, fundado por Fernando Henrique Cardoso e José Artur Giannotti. O golpe de 1964 o apanha no início da carreira docente. Junto com os amigos do seminário funda o Cebrap em 1969, centro que se revelaria capaz de levar adiante a reflexão iniciada na USP.
Esta não é a ocasião para discutir a obra de Paul Singer. Foram dezenas de livros, artigos, conferências e entrevistas em meio século de atividade ininterrupta. Cabe destacar, contudo, que toda a sua produção foi orientada por aquele compromisso fundamental assumido quando decidiu permanecer no Brasil: buscar os caminhos para que o socialismo democrático se tornasse uma opção para a sociedade brasileira. Uma das marcas do trabalho do meu pai foi a ligação entre teoria e prática. Sem nunca parar de escrever, Paul Singer foi um militante até o fim da vida. O engajamento na fundação do Partido dos Trabalhadores, em 1980, e na economia solidária, por volta de 1992, foram reflexo desse engajamento.
Meu pai tinha verdadeira paixão pelo PT. Mas o seu modo de amar o partido era parecido com aquele por meio do qual torcia para o Corinthians: sem nunca perder a objetividade. Me lembro dele, já enfraquecido, me dizendo que era preciso reunir os companheiros para pensar o que fazer. Pensar e pensar coletivamente eram os traços fundamentais do Paulo Singer que eu conheci e acompanhei.
A economia solidária foi descoberta da maturidade. Quando se encerrou o ciclo de prosperidade que o país viveu entre 1930 e 1980, o desemprego se tornou estrutural. Meu pai juntou a ideia de que o socialismo precisava ser construído por baixo, dentro do capitalismo, e não como algo que vem de fora, com a situação de penúria dos trabalhadores. Passou a propor a auto-organização em cooperativas como saída que atendia, ao mesmo tempo, às duas necessidades.
Por 25 anos, ele semeou ideias de autogestão e cooperativas pelo Brasil inteiro. Sentia-se completamente realizado com os avanços do que ele chamava “o movimento”. Dirigiu a Secretaria de Economia Solidária nos governos Lula e Dilma com imenso orgulho e alegria. Fechou o ciclo de sua vida por onde havia começado: implantando o princípio kibutzim da produção coletiva em solo brasileiro.
Por ter conseguido realizar o seu sonho, e vendo todos vocês aqui, tenho certeza que meu pai diria que, apesar de todas as dificuldades do momento, vai dar certo. Que se persistirmos e continuarmos a pensar juntos vai dar certo.
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Paul Singer (1932-2018), um breve depoimento de despedida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU