Em luta pela não violência. Entrevista com Judith Butler

Foto: Terence Faircloth | Flickr CC

29 Setembro 2020

Judith Butler é uma das filósofas mais conhecidas do panorama contemporâneo. Ela inaugurou o debate sobre a identidade de gênero. Também se devem a ela importantes contribuições éticas e políticas centradas particularmente nos temas do poder e da violência.

O seu livro mais recente, recém-publicado na Itália pela editora Nottetempo, intitula-se “La forza della nonviolenza. Un vincolo etico-politico” [A força da não violência. Um vínculo ético-político].

Butler conversou com Donatella Di Cesare, filósofa e professora da Universidade “La Sapienza” de Roma, em entrevista publicada por L’Espresso, 27-09-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis a entrevista.

 

Em seu novo livro, você escreve que “vivemos em um tempo de grandes atrocidades e de mortes insensatas”. Essa correta constatação vem acompanhada da denúncia daquela violência perpetrada pelo Estado, que exerce seu próprio poder discriminando as “pessoas não brancas” e, em geral, criminalizando a dissidência. Como responder? De uma forma muito corajosa, você desconstrói o preconceito da esquerda em relação à não violência. E mostra como a autodefesa é ilusória: porque se pressupõe que haja um eu íntegro (integralista), transparente, idêntico a si mesmo, embora saibamos muito bem como o eu já está sempre implicado nas vidas alheias – e as vidas alheias no eu. Portanto, a alavanca do seu discurso sobre a não violência é a crítica à ética egológica. Pode nos falar sobre isso?

Em muitos debates, a não violência é tratada como uma questão de moral individual ou como uma posição política irrealista e impraticável. Se considerarmos a base tanto ética quanto política da não violência, deveremos reconhecer que ela requer uma crítica do individualismo e uma rejeição da versão da realidade imposta pela realpolitik. Quando alguns de nós agem de modo violento, isso não vai apenas contra os objetos, os outros, as instituições e a natureza, mas também despedaça os laços sociais que nos sustentam.

É claro, existem instituições pelas quais somos explorados e prejudicados, além daquelas que realmente devem ser desmanteladas. A não violência pode envolver todos os tipos de estratégias de “desmantelamento”, incluindo a greve, o boicote e a “desplataformização” [deplatforming]. Porém, mesmo uma violência considerada instrumental traz mais violência para o mundo, tornando-o um lugar ainda mais violento.

Além disso, a violência que ataca as nossas relações sociais acaba sendo um ataque contra nós mesmos, pois prejudica as condições de uma vida vivível. Ser não violento não significa demonstrar a nossa virtude como indivíduos, mas sim reconhecer que somos definidos pelas nossas relações sociais com outros seres vivos. Em suma, significa compreender que somos seres relacionais e não egológicos, justamente.

 

O mito do Palácio de Inverno já ruiu há muito tempo. A violência, precisamente, acaba se servindo de quem pretende usá-la como simples instrumento. “Um ato violento contribui para a construção de um mundo mais violento”, você escreve. A não violência (sem hífen!), portanto, não é uma postura moral. Em vez disso, é uma política que deveria frear a destruição sistêmica. Muitas vezes, você também fala de “resistência”. É um sinônimo? Quem resiste não se resigna, aumenta a vigilância, abre caminhos transversais... Porém, isso me parece redutivo em comparação com aquilo que você quer dizer.

Se pensarmos na não violência de uma forma nova, não mais apenas como uma reação física, então poderemos começar a ver que instituições inteiras são violentas e que devemos lutar para modificá-las ou aboli-las. O movimento pela abolição das prisões, por exemplo, denuncia a sua violência.

As prisões operam como se fossem legitimadas para punir quem está dentro. Mas a violência que elas exercem não difere daquela que pretendem punir ou conter. Isso vale ainda mais para os centros de detenção nos quais os migrantes são detidos em condições indescritíveis. A política migratória deveria ser repensada e concebida como uma rede de distribuição de alimentos. A partir daí, deveríamos nos perguntar, então, o que significa reestruturar essas instituições e essas economias de uma forma não violenta. A resistência continua sendo para mim um termo importante, porque um aspecto da não violência é se recusar a reproduzir a violência sofrida por um indivíduo ou por um grupo naquela que se tornaria uma escalada. Eu vejo a não violência no seu traço agressivo e criativo, mas também a vejo como uma forma de resistência. No entanto, é verdade que, para mim, “resistência” não é o único nome para essa política...

 

Você faz referência a Gandhi. Parece-me que hoje há uma grande novidade no espaço público, ou seja, aqueles que eu chamo de “novos desobedientes”. Penso em Mimmo Lucano, em Carola Rackete. Mas não se trata da desobediência civil tradicional, que, no fundo, não rompe com o Estado de direito. Os “novos desobedientes” se movem no limite do espaço público, cruzam-no, sacodem a arquitetura política, desestabilizam a ordem Estado-cêntrica. Não é por acaso que eles ajudam os migrantes... Por isso, são criminalizados.

Parecem-me muito interessantes esses movimentos que já recorrem ao digital e tentam usar o espaço público para desmantelar as políticas que produzem precariedade, racismo, violência contra as mulheres e as pessoas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais).

E é particularmente interessante ver agora as suas ações em tempos de pandemia, por exemplo, as manifestações do Black Lives Matter, que seguem os protocolos de segurança e são predominantemente não violentas. As novas ideias de igualdade, liberdade e justiça não são mais geradas na política eleitoral, mas nos movimentos de massa. Quando a lei se torna injusta – como no caso da Europa, que criminaliza quem tenta salvar as vidas dos migrantes –, então é justo se tornar criminoso. Ou talvez devêssemos dizer “criminoso” entre aspas, pois é a própria lei que é criminosa. Da mesma forma, a resistência, durante o fascismo, teve que lutar contra um regime legal, mas violento e racista.

 

Nesse livro, você relança uma crítica, que já havia delineado em parte anteriormente, ao conceito de “vida nua”. Eu concordo muito com a sua crítica. Se dissermos que os migrantes amontoados nos campos de concentração ao longo das fronteiras da Europa são “vida nua”, correremos o risco de os relegar a um abismo apolítico, a uma indigência existencial da qual seria difícil sair. Em suma, essa tendência interpretativa essencializa a vida nua que, isolada no seu mutismo, oprimida no seu destino trágico, não poderia opor nenhuma resistência. Para você, os excluídos, mesmo assim, continuam sempre em uma relação...

Acima de tudo, devemos nos interrogar sobre a perspectiva em que se considera a “vida nua”. Eu acredito que, do ponto de vista assumido por Agamben, o da soberania estatal, aqueles que são “vida nua” foram privados de todos os direitos legais, até mesmo da condição de sujeito. A lei que deveria protegê-los é retirada ou suspensa por decisão soberana. É inútil dizer que eu estou bem ciente dessas exclusões da proteção legal e, obviamente, eu as critico. Além disso, certamente não faz sentido depender do poder soberano onde é possível se retirar e assim evitar que o ser humano continue sendo exposto à violência e à degradação. O problema é que toda a cena é desenhada como se houvesse a lei de um lado e a vida do outro.

Contudo, aqueles que são privados do status jurídico por vários poderes soberanos interconectados podem, mesmo assim, fazer parte de redes de solidariedade, podem agir politicamente e encontrar formas para defender a sua própria mobilidade. Ser abandonado pelas formas soberanas do poder não significa que não existam outras formas de resposta. Assim, um grupo pode ser abandonado, mas precisamente como tal pode se organizar. Não vejo contradição nisso.

 

“Ni Una Menos” significa perdas que não deveríamos ter aceitado, mulheres que não são dignas de luto. Como talvez você deve saber, na Itália as mulheres – refiro-me realmente a todas elas – são marginalizadas no espaço público. Se aparecem, pagam o preço do insulto sexista. E não por acaso o feminicídio é um evento quase cotidiano, aliás narrado em termos sensacionalistas ou na forma do epílogo inelutável. Depois de décadas, não se consegue articular outra narrativa e não se consegue ter voz. Muitas estão esgotadas.

Eu partilho o mesmo desconforto. E mal consigo ler as estatísticas dos feminicídios nos diversos países, incluindo os Estados Unidos. Temos um presidente que ficaria feliz em negar a existência desse crime. A lição que aprendi com as feministas latino-americanas é que matar uma mulher, uma trans, uma gay ou uma lésbica deve ser considerado um crime em si. Para muitas pessoas, essas mortes são um mistério, ou o resultado de paixões e encontros privados – mas não são entendidas como formas sistemáticas de violência que devem ser impedidas em nível político, institucional e especialmente na prática dos movimentos. Grande parte disso depende de como a história do feminicídio é narrada. Alguns jornais fornecem versões sensacionalistas, e, por isso, o tema é ignorado.

A narrativa da singular vida de uma mulher (e obviamente incluo a das mulheres trans) deveria ser apresentada juntamente com uma análise que, além de dar conta do feminicídio, levasse em consideração todos os álibis que o endossam. O movimento Ni Una Menos conseguiu reunir milhões de pessoas que não só se opõem à violência contra as mulheres, mas que também pedem paridade salarial, assistência à saúde e formas mais radicais de liberdade social e política. É um movimento baseado na raiva e na alegria, e é a isso que ele deve o poder extraordinário que ele tem na América Latina e na Europa.

 

Na minha opinião, a pandemia é um evento epocal. Até ontem, podíamos nos considerar onipotentes entre os escombros, os primeiros e os únicos também no primado da destruição. Esse primado nos foi tirado por um poder superior ao nosso e mais destrutivo. Além disso, o fato de ser um vírus, uma ínfima porção da matéria organizada, torna o evento ainda mais traumático. Até mesmo a menor criatura pode nos destronar, nos destituir, nos descalçar. Em sua opinião, vai mudar o nosso modo de viver e de perceber a vulnerabilidade?

 

Por um lado, o vírus nos expõe, nos faz nos sentirmos criaturas precárias. De certa forma, não faz diferença entre ricos e pobres, porque estamos sempre sujeitos ao seu efeito letal de qualquer maneira.

Por outro lado, porém, vemos que os países que adotaram poucas medidas são aqueles cujos hospitais têm falta de pessoal e estão mal equipados. A diferença entre quem vive e quem morre, então, depende da desigualdade social, do modo como os serviços públicos foram demolidos pelo neoliberalismo, mas também pelos sistemas de discriminação racial. Nos Estados Unidos, as comunidades não brancas sofrem de doenças graves, em alguns casos mortais, precisamente porque as instituições de saúde há muito tempo estão subfinanciadas – e essa também é uma forma de discriminação.

O vírus, portanto, é destrutivo e nos faz nos sentirmos vulneráveis. Mas também nos leva a olhar para as formas brutais de desigualdade social que tornaram tantas vidas supérfluas. Cada vida, no seu potencial de dor, tem significado aqui e agora. Ainda não aprendemos a perceber a ideia da igualdade radical de todas as vidas, do seu igual valor. Para fazer isso, deveríamos primeiro nos perguntar quem são aqueles cujas vidas não são consideradas importantes, quem são aqueles cujas vidas não foram consideradas dignas de serem preservadas.

Para muitas pessoas, especialmente para as excluídas, humilhadas, abandonadas por governos nacionalistas e racistas, a tarefa de sobreviver é infelizmente cotidiana, e elas a enfrentam sem aquela ajuda institucional que deveria ser garantido a todos.

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