04 Agosto 2020
“Mais de 2,1 bilhões de pessoas em todo o mundo não têm acesso à água potável segura e 4,5 bilhões não têm uma rede de saneamento adequada. Ao se pensar sobre esses números, pode nos vir à cabeça as áreas rurais dos países pobres e atrasados, mas o que está por detrás são problemas políticos e lógicas de acumulação por desapropriação”, escreve Yayo Herrero, antropóloga, ativista e ecofeminista, em artigo publicado por Ctxt, 31-07-2020. A tradução é do Cepat.
Somos água. São água 83% de nosso cérebro, 75% do coração, 85% dos pulmões e 95% dos olhos. Se nos drenam, após eliminar a água, sobra muito pouco. Sendo assim, poderíamos dizer que nosso olhar, pensamento, respiração e batimentos cardíacos dependem da água.
De nosso planeta, 71% está coberto por água. Apenas 2% é de água doce e metade dela é acessível, a outra metade está retida dentro das geleiras.
A água, como todo bem da natureza, é finita. A quantidade de água na Terra hoje é a mesma que havia no ano 1800, mas a população humana passou de um bilhão de pessoas que havia naquele momento para mais de 7,7 bilhões na atualidade e com estilos de vida, especialmente nos países mais ricos, muito mais consumidores de água.
Ninguém fabrica água. Nenhuma economia e nem tecnologia produz água. É a própria dinâmica auto-organizada da natureza que é responsável por regenerá-la. O que às vezes se denomina, de uma forma um tanto enganosa, como produção de água é, em todo caso, tratá-la quimicamente para torná-la potável ou engarrafá-la e transportá-la.
O Sol aquece a Terra e seu calor evapora a água do mar, rios, mares e pântanos. Derrete os gelos que se tornam água líquida e que, depois, também se transforma em gás e evapora. A água evaporada se condensa em nuvens, que nada mais são do que gotículas de água em suspensão que podem retornar à Terra na forma de chuva, granizo e neve. A água não volta ao mesmo lugar porque o vento faz as nuvens viajarem e, portanto, a água cai em outro lugar.
Ao cair, voltará a ser filtrada pela terra e acabará novamente em rios, mares e lagos. Será parte de corpos vegetais, animais, de fungos... Este processo se repete inúmeras vezes. Essa repetição sucessiva se chama ciclo da água. É possível que a água que hoje compõe 95% de nossos olhos ou 85% de nossos pulmões seja a mesma que beberá alguma tataraneta dentro de muitos anos.
Nenhuma sociedade, nenhum ser vivo permanece sem água. Todas as grandes civilizações nasceram às margens de rios ou de grandes lagos. A maior e menor disponibilidade de água moldou as culturas. A Veiga de Granada e Alhambra demostram isso.
Não usamos a água apenas para beber. Esta é realmente uma parte muito pequena. De alimentos a roupas, de energia ao papel, do turismo ao transporte, de remédios a Coca-Cola... Todos os bens e serviços que usamos precisam de água.
A água é finita. É verdade que é um bem renovável, mas não se renova na velocidade que o metabolismo agro-urbano-industrial gostaria, mas se regenera na velocidade do ciclo da água, que tem um ritmo muito diferente daquele do processo econômico. O resultado do choque entre os tempos dos ciclos que sustentam a vida, como o ciclo da água, e os tempos da economia convencional é o que chamamos de crise ecológica.
Estou ciente de que até agora não disse nada além de obviedades. Isso é o que estudamos na escola nos primeiros anos dos cursos primários. E se é tão óbvio, por que a economia e a vida de muitas pessoas foram construídas como se não existisse esse ciclo, como se a água fosse ilimitada, como se o acesso a ela não fosse algo básico para a segurança e sobrevivência das pessoas e de todos os seres vivos?
Como pode ser que chamemos de progresso um processo que faz com que a água, inicialmente abundante, se torne escassa devido ao seu uso imprudente, desperdiçador e irracional? O que é que faz com que, tendo diante dos olhos o declínio e a poluição massiva de fontes de água potável, não se planeje ou organize a economia com consciência da dependência da água?
O processo de “desenvolvimento” e crescimento econômico se correlacionam com um forte aumento no uso da água, com a perda de suas fontes e com a deterioração de sua qualidade. O consumo de água no mundo cresce mais rápido que a população. Nos últimos cem anos, o Mar de Aral quase secou completamente. As transferências de água realizadas na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) para o Uzbequistão e o Cazaquistão para irrigar, principalmente algodão, destruíram um dos quatro maiores lagos do mundo.
O rio Colorado, que fornece água potável a 40 milhões de pessoas, irriga 16.000 quilômetros quadrados de lavouras, mantém onze parques naturais e sete reservas de animais selvagens no Arizona, Califórnia, Colorado, Novo México, Nevada, Utah e Wyoming, assim como parte do território do México, também está em declínio.
O lago Poopó, na Bolívia, desapareceu devido à mudança climática e a extração de água para irrigação e mineração nos canais dos rios que desaguam nele. O lago Chade, localizado na fronteira entre Chade, Níger, Nigéria e Camarões, vem minguando ao longo do tempo e devido ao avanço do Saara e a extração de água para a irrigação.
Em 2015, a organização Ecologistas em Ação levou a Paris um relatório devastador sobre a situação da água na Espanha. Nele, alertava-se sobre os cenários que se projetavam em um futuro próximo, caso nada fosse feito. Atualmente, a Espanha tem 20% menos água disponível do que há 30 anos e, inversamente, aumentou em 20% as terras irrigadas, nos últimos 18 anos. Isso se falarmos em irrigação legal, porque existem milhares de hectares de irrigação que são ilegais e que absorvem as águas subterrâneas de poços que secam em alta velocidade.
Sem falar da apropriação da água que supôs o modelo tijoleiro nacional, que alguns chamaram de desenvolvimento e que estimulou a construção de centenas de urbanizações com campos de golfe – que consomem grandes quantidades de água - em verdadeiras terras secas ou em zonas inundáveis.
A mudança climática está alterando profundamente o ciclo da água e agrava a situação. A água do mar aquece, o gelo nos polos derrete, o nível do mar aumenta, os aquíferos subterrâneos recebem menos água, os rios e os lagos secam mais, mudam os ritmos das precipitações, acentuam-se as secas, são modificadas a disponibilidade e a temperatura das águas e se altera o estado dos habitats de água doce e a vida das espécies que nelas vivem, também dos seres humanos.
A disponibilidade de água doce também é afetada. Choverá menos em muitos lugares do mundo. A península ibérica é um dos lugares onde essa tendência vai ser fortemente notada. Muitos ambientes aquáticos que antes eram permanentes, secam temporariamente. A água subterrânea será reduzida em todo o mundo e dela dependem muitos rios e lagos, além de ser a fonte de água para muitas pessoas nos povoados e cidades. Doñana, Las Tablas de Daimiel e o lago de Valência receberão menos água, enquanto, ao mesmo tempo, aumentarão os sistemas de irrigação e as urbanizações que demandam água ao seu redor.
A situação nas Ilhas Canárias, que já dependem da água transportada por barcos, é dramática. Em locais como o Delta do Ebro, que já estava bastante afetado pela falta da chegada de sedimentos devido à construção de barragens e reservatórios, o aumento do nível do mar e a chegada de tempestades, como Gloria, estão impedindo a vida e os cultivos em regiões que durante milhares de anos foram habitadas. Fazem desaparecer territórios que sustentaram a vida, durante muito tempo.
Com menos água, a poluição se concentra muito mais: poluição por nitrogênio, fósforo, matéria orgânica e metais pesados que acabam gerando, basicamente, a morte. Não há mais nada a lembrar do que as ondas de peixes moribundos nas margens do Mar Menor, em Murcia, e a água podre em um território que depende do turismo.
O uso irracional da água, as ações que não olham ao redor e se perguntam se há ou não água suficiente para serem implementadas e quais consequências podem ter são, para mim, um dos sinais mais evidentes da falta de cautela e cuidado por todos os seres vivos.
Mais de 2,1 bilhões de pessoas em todo o mundo não têm acesso à água potável segura e 4,5 bilhões não têm uma rede de saneamento adequada. Ao se pensar sobre esses números, pode nos vir à cabeça as áreas rurais dos países pobres e "atrasados", mas o que está por detrás são problemas políticos e lógicas de acumulação por desapropriação.
Podemos vê-las bem pertinho. Milhares de pessoas que trabalham temporariamente na coleta de frutas vermelhas, em Huelva [Espanha], vivem em barracos feitos com papel, papelão e plástico e não têm acesso à água. Sabemos das longas e perigosas viagens que realizam, majoritariamente por mulheres em assentamentos no Sul Global, para abastecer-se de água. Também em Huelva, para obter água, precisam percorrer longas distâncias. Colhem as frutas e legumes que acabarão nas mesas europeias em condições de semiescravidão e em plena pandemia não possuem água nem para lavar as mãos. A água escassa engorda os vegetais para exportação, mas quem faz a colheita não tem direito à água.
É legítimo possuir, negociar e administrar a água para obter lucro, se é imprescindível para que a vida possa existir? Deveria ser legal gerenciar a água olhando apenas para a lucratividade econômica e não para a vida que sustenta? Como pode ser legal cortar a água de pessoas pobres, se não podem pagar, ou roubá-la de povos e territórios, usados como grandes minas e vertedouros? Como pode ser legal tirá-la de outros seres vivos?
Em todo o mundo se produzem guerras pela água e muitos povos resistem para defendê-la.
Em inícios de 2000, sob pressão do Banco Mundial, Hugo Banzer, presidente da Bolívia, assinou um contrato com a transnacional americana Bechtel para a privatização do serviço de abastecimento de água em Cochabamba. O contrato foi concedido a um consórcio formado pela Bechtel e outras empresas, entre elas Abengoa. Pouco tempo depois, houve um grande aumento nas tarifas de água que provocou protestos massivos. Havia pessoas que tiveram que tirar seus filhos e filhas das escolas e deixaram de ir ao médico para poder pagar pela água.
A enorme repressão desdobrada não conseguiu reprimir a revolta e, finalmente, o Governo rescindiu o contrato. A Bechtel denunciou e reivindicou indenizações milionárias, mas se viu obrigada a renunciar por causa da mobilização dentro do país e da solidariedade e denúncia internacional. Antidesenvolvimentistas, índios, ignorantes, raposas... Assim eram chamados aqueles que resistiam. Mas, no final, venceram. O documentário La corporación. ¿Instituciones o psicópatas? e o filme También la lluvia testemunham todo esse processo.
No momento atual, no Chile, no Cajón del Maipo, na região metropolitana de Santiago, a capital, vive-se um fenômeno semelhante. A água está privatizada, não apenas a rede ou o serviço de abastecimento, mas a própria fonte. Pertence a Aguas Andinas, que por sua vez pertence a Aguas de Barcelona. Aguas Andinas tem o poder de fazer o que quiser com a água e agora planeja vendê-la para uma usina estadunidense de geração hidrelétrica, que foi ampliada sabendo que não havia água suficiente para materializá-la. Coloca-se em risco o abastecimento de água potável em Santiago do Chile, além de destruir um ecossistema já bastante afetado pela mudança climática.
Várias organizações resistem há anos. Entre elas, Mulheres pelo Maipo. “Vão cozinhar”, "vão cuidar de seus filhos e dar de comer ao marido". Cachorras, vagabundas, prostitutas são os nomes que recebem. Isso parece familiar? Elas se deitam no chão, fazem mandalas com seus corpos e impedem a entrada de caminhões. “Montamos alguns tacos - assim são chamados os bloqueios no Chile - do caralho”, orgulham-se. Agem assim desde 2007. E não param.
A Comunidade de Madri tentou, desde 2008, vender 49% do Canal de Isabel II. Bancos, fundos de investimento de várias nacionalidades, empresas de água espanholas estavam ansiosas para participar do processo. BBVA, Tinsa, Rothschild e Cuatrocasas trabalharam no estudo da operação. Em 2012, em 4 de março, a Maré Azul, na qual Ladislao Martínez desempenhou um papel fundamental, organizou um referendo popular para consultar sobre a privatização da água. Mais de 160.000 pessoas participaram. Nesse mesmo dia, o jornal El Mundo publicou um artigo infame em que se acusava Ladis de ser um latifundiário. Na primeira versão do mesmo, foram fornecidos até dados pessoais como o seu endereço. A reação de apoio ao ativista foi tremenda e, felizmente, o assédio não foi muito mais além.
Em todos os lugares, as tentativas de privatizar e monopolizar a água são constantes. Imagine, nós somos água, nossa economia é água e é finita. Possuir as fontes, a distribuição, a purificação e o saneamento é um negócio seguro.
A situação é insustentável e, se não fizermos nada, avançaremos para um colapso da água, que em nosso país provavelmente ocorrerá quando chegar a próxima seca plurianual.
Depois, trataremos a crise como se fosse um problema imprevisto e inesperado. Olharemos para o céu nos perguntando por que não chove e perfuraremos mais fundo tentando alcançar o que resta. Mas é um problema político, é um problema de escala, é um problema de limites. É um problema de diálogo, de busca de consensos, de pensar sobre as necessidades e em como satisfazê-las de maneira justa. Cuidar e defender a água é defendermos a nós mesmas.
Tornarmo-nos conscientes de em qual medida somos água e qual é o papel da água na criação de comunidades humanas, na geopolítica e na economia. Conhecer as rotas atmosféricas, superficiais e subterrâneas das águas e seu ciclo, saber como isso já afeta a mudanças climática. Parar os processos de poluição. Garantir o acesso à água para os seres vivos. Planejar a escala dos diferentes setores em função das necessidades a serem satisfeitas e a água realmente existente. Garantir o tratamento da água como um bem comum, e não como uma mercadoria, é uma condição necessária para simplesmente continuar enxergando, pensando, respirando e pulsando.
A abordagem política de todas essas questões é ao que nos referimos quando falamos em colocar a vida no centro. Gabriela Mistral, em seu poema Agua, expressa com beleza quando diz: “Tenha uma fonte por minha mãe”.
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Água. Artigo de Yayo Herrero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU