30 Julho 2020
“Consagrados e consagradas adoeceram e morreram por proteger a vida das pessoas e por estar muito próximos de quem sofre. Devemos dar graças a Deus por esse testemunho de santidade e nos inspirarmos nele para fazer crescer nossa disponibilidade para o Reino de Deus”. Assim expressa o cardeal João Braz de Aviz, prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica (CIVCSVA) em entrevista a SomosCONFER. Depois dos piores momentos da pandemia do coronavírus na Europa durante os meses de março, abril e maio, o responsável máximo pela Vida Religiosa analisa o tempo vivido sem perder de vista a situação de emergência agora ocorre na América. O ministro vaticano reflete sobre que Vida Religiosa faz-se necessária na Espanha e no mundo nesta “nova normalidade”.
A entrevista é publicada por Vida Nueva Digital, 27-07-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Apesar da quarentena, a CIVSCVA seguiu o serviço da Vida Religiosa no mundo. Como viveu nestes meses de confinamento?
Ficamos em casa por dois meses e meio por causa do coronavírus. No entanto, o trabalho no Dicastério continuou. A emergência provocou nos consagrados questionamentos que necessitavam respostas imediatas. Seguindo a orientação das autoridades do Vaticano para a emergência, tentamos alcançar todos de forma online.
Pessoalmente, em casa, pude cuidar melhor do relacionamento com os dois religiosos que trabalham comigo e crescemos em um relacionamento fraterno, aprendendo a nos ouvir mais e descobrindo o valor das pequenas coisas necessárias para cada dia, como limpeza, despesas ou culinária. Consegui dedicar mais tempo para estudar e também para descansar e cuidar da saúde. O tempo gasto em oração aumentou e até melhorou, e retomei a adoração eucarística com as irmãs.
Em casa, decidimos não nos fecharmos em nossos próprios cuidados e proteção, mas ajudar a servir comida para os pobres acolhidos pela comunidade de Santo Egidio junto ao Vaticano. Uma das irmãs ia duas vezes por semana. Eu, por causa da minha idade, tive que ficar em casa. Da paróquia que serve os latino-americanos em Roma, recebemos a notícia de que eles precisavam de ajuda, especialmente comida para muitas pessoas que não tinham nada para comer porque não podiam trabalhar. Por esse motivo, alocamos parte de nosso salário para comprar e entregar os produtos à paróquia.
Acompanhamos as notícias todos os dias e pudemos compartilhar em oração as tristezas de tantas pessoas que perderam membros de sua família e que nem sequer puderam vê-los pela última vez e dizer adeus a eles. Enquanto em Roma sentimos a proximidade constante do Papa com seus gestos e palavras tão próximos, enquanto a pandemia crescia e destruía nossa segurança humana.
A Vida Consagrada caracteriza-se por estar sempre ao serviço de quem a necessita. Como valoriza a missão de tantos religiosos e religiosas entregados durante essa pandemia?
A presença de muitos consagrados e consagradas ao lado dos doentes e suas famílias neste período de pandemia foi significativa. Como muitos padres, também consagrados e consagradas morreram por proteger a vida dos demais e estar próximos de quem sofre. Devemos dar graças a Deus por este testemunho de santidade e nos inspirarmos nele para fazer crescer nossa disponibilidade para o Reino de Deus.
Depois desta pandemia que nos demonstrou que somente unidos podemos seguir adiante – como disse o Papa – de qual Vida Religiosa a Igreja e a sociedade necessitam hoje?
Muitos homens e mulheres consagrados, neste momento da história, estão tentando identificar com mais precisão o núcleo do carisma do fundador, fundando-o de modo diferente das tradições culturais e religiosas de outros tempos, para se deixarem guiar pela sabedoria da Igreja em seu atual Magistério que, de uma maneira particular desde o Concílio Vaticano II, quis estar atento aos sinais de nosso tempo para anunciar e testemunhar o Evangelho de Cristo.
Este é um processo vital que acreditamos ser solicitado pelo Espírito Santo a entrar com toda a humanidade nesta mudança de tempo em que Francisco guia com muito cuidado toda a Igreja. Homens e mulheres consagrados precisam de coragem (o Papa fala de "parresia") para se identificar com o caminho de toda a Igreja, porque antes de qualquer outra realidade, a Igreja é nossa Casa comum, de toda a Vida Consagrada, chamada agora para caminhar juntos em sua coessencialidade com a hierarquia. Os modelos de formação herdados não são mais suficientes para isso.
A prática de muitos comportamentos deve mudar para assumir uma formação inicial e contínua, porque o Espírito que a anima é dinâmico. A formação não pode parar em um determinado período da vida. Toda a vida (do útero à morte) é um tempo de formação. Os formadores também estão em processo de formação e devem tomar consciência de sua fragilidade e tendem constantemente a testemunhar a sequela Christi, juntamente com aqueles que estão em suas mãos para serem formados.
Antes de tudo, formar para seguir Jesus e, sob essa luz, formar para seguir os fundadores e fundadoras. Em vez de transmitir modelos já feitos, Francisco nos encoraja a criar processos vitais marcados pelo Evangelho que nos ajudam a entrar nas profundezas dos carismas dados a cada um. Esses processos apoiarão uma vida fraterna em comunidade, capaz de satisfazer nosso desejo de vida familiar, onde somos livres, leves e felizes nos relacionamentos. Não será este um bom caminho para que a fidelidade à nossa consagração seja um relacionamento ao longo da vida entre irmãos e irmãs unidos?
Como vês a Vida Religiosa espanhola?
Na Espanha, como em outros países da Europa, Oceania e América, a Vida Consagrada sofre com a falta de vocações, envelheceu muito e é ferida pela falta de perseverança. As saídas são tão frequentes que Francisco chama esse fenômeno de “hemorragia”. Isso é verdade tanto para a vida contemplativa masculina, quanto à feminina. Faz dez anos que vemos crescer a decisão de renovação. O Santo Padre nos ofereceu documentos e um acompanhamento próximo.
A mudança de época está provocando uma nova sensibilidade para retornar ao seguimento de Cristo, a uma vida fraterna sincera em comunidade, a reforma dos sistemas de formação, a superação do abuso de autoridade e a transparência na posse, uso e a administração dos bens. Porém velhos e pequenos modelos evangélicos ainda resistem a uma mudança necessária para um testemunho do Reino de Deus inserido no momento presente.
O envelhecimento da Vida Consagrada, especialmente na Europa, Oceania e América do Norte, e a baixa presença de jovens nela, é um sinal evidente da diminuição das vocações para a Vida Consagrada. Muitos institutos tornaram-se pequenos ou estão desaparecendo. A família também sofre uma crise em seu testemunho cristão. Em qualquer estado da vida, sabemos, a vocação é um presente de Deus, é um chamado cheio de amor que Ele faz a seus filhos e filhas, acima de tudo, para seguir Jesus segundo o Evangelho. Francisco nos lembra que em todas as vocações somos chamados ao “radicalismo evangélico”.
No Evangelho, essa radicalidade é comum a todas as vocações. De fato, não existem discípulos da “primeira classe” e outros da “segunda classe”. O caminho evangélico é o mesmo para todos. Próprio da Vida Consagrada, por outro lado, é a profecia, isto é, homens e mulheres consagrados vivem nesta terra um estilo de vida que antecipa os valores do Reino de Deus: castidade, pobreza e obediência na forma de vida de Cristo. Somos chamados a uma maior fidelidade e a entrar com toda a Igreja em sua reforma da vida proposta e realizada por Francisco.
Há alguns meses, o próprio Vaticano, pelo suplemento “Donne Chiesa Mondo” (Mulher Igreja Mundo, caderno do jornal L’Osservatore Romano), alertava sobre a síndrome de burnout em religiosas. Preocupa-lhe, como prefeito da CIVCSVA, que esta situação se generalize? Como pode ser atrativo este tipo de vida para os jovens que se deparam com pessoas “avinagradas”, como as denomina o papa Francisco?
Há institutos que diminuíram consideravelmente em número. Este fenômeno não foi acompanhado de uma revisão das estruturas, obras e casas. Uma estrutura muito grande gerenciada por poucas pessoas impõe um peso desproporcional aos membros. Pior ainda quando esse peso é deixado sobre os ombros dos jovens. Há também o fenômeno de uma vida consagrada marcada por autoridades centralizadas demais, de preferência com relações legais e tributárias, pouco capazes de uma atitude paciente e amorosa de diálogo e confiança. Em muitos casos, a relação homem-mulher consagrada apresenta um sistema doente pelas relações de submissão e dominação que retira o sentido de liberdade e alegria, uma obediência mal compreendida.
Por outro lado, as lacunas deixadas no período de formação inicial ou formação permanente permitiram o desenvolvimento de atitudes pessoais pouco identificadas com o chamado à Vida Consagrada em comunidade, para que os relacionamentos sejam contaminados e criem solidão e tristeza. Em muitas comunidades, houve pouco desenvolvimento da consciência de que para nós o outro, a outra, é a presença de Jesus, e que, no relacionamento com Ele amado no outro, podemos garantir sua presença constante na comunidade (cf. Mt 18, 20). Essa renovação, provocada por uma espiritualidade de comunhão na qual o outro se torna central em nossa experiência de Deus, também leva a esclarecer a experiência da autoridade como serviço e não como um domínio marcado mesmo com falsas motivações espirituais.
Com a Jornada Pro Orantibus já celebrada, a Vida Contemplativa, que tem sua maior fortaleza na Espanha, viu 32 mosteiros serem fechados em 2019. A clausura não goza de boa saúde?
Francisco ofereceu diretrizes para a clausura em dois documentos: “Vultum dei quaerere” e “Cor orans”. A vida contemplativa, de fato, não está destinada a desaparecer, mas deve refletir com transparência o ideal de vida evangélica dos fundadores e fundadoras que está em sua base. A Igreja recebeu da Vida Contemplativa ao longo dos séculos uma experiência autêntica do rosto de Deus e aprendeu a ter um coração de oração. Precisamos da vida contemplativa, como precisamos de comida e água para viver. A vida contemplativa, no entanto, não pode ser uma ilha paralela à vida da Igreja, mas seu tesouro bem integrado ao seu corpo.
O Papa tem recebido críticas no seio da Igreja. No entanto, colocou-se junto à Vida Religiosa...
O amor do Papa pela Vida Consagrada ressoa em sua afirmação no início do Ano da Vida Consagrada (2015): “Escrevo-vos como Sucessor de Pedro, a quem o Senhor Jesus confiou a tarefa de confirmar na fé os seus irmãos (cf. Lc 22, 32), e escrevo-vos como vosso irmão, consagrado a Deus como vós”. Nestes sete anos de pontificado, todos os consagrados experimentaram da sua proximidade. Não nos falta luz para caminhar e seguir o Senhor.
Você conhece bem a Vida Religiosa na Espanha? Que mensagem enviaria neste momento de dificuldade?
Gostaria de lembrar as palavras do Papa: “Consagradas e consagrados são chamados a serem mulheres e homens de encontro. Quem realmente conhece Jesus se torna testemunha e faz possível o encontro para os demais”.
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“Temos um sistema doente pelas relações de submissão, de obediência mal-entendida”, afirma cardeal João Braz de Aviz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU