22 Julho 2020
Os aplicativos para controlar a propagação do vírus através da geolocalização dos cidadãos colocam sobre a mesa o velho debate entre segurança e liberdade. Os países asiáticos, como China, Coreia do Sul e Cingapura, lançaram aplicativos para controlar a pandemia. Na Europa, Alemanha, Itália, Áustria, Estônia, Portugal, Irlanda e Suíça também anunciaram sistemas de controle. Na Espanha, o aplicativo de rastreamento do vírus Radar, baseado em bluetooth e para uso voluntário, é testado em um programa piloto implementado em La Gomera, desde o início de julho.
A matemática Cathy O’Neil fez um alerta sobre como os dados podem levar os governos a tomar medidas equivocadas, durante a pandemia. O’Neil, autora do livro Armas de destrucción matemática. Cómo el big data aumenta la desigualdad y amenaza la democracia (Capitán Swing, 2016) e doutora em Matemática pela Universidade de Harvard, garante que os dados não são confiáveis porque não oferecem um número real de infectados, nem de mortos e questiona a eficácia do rastreamento de cidadãos através da geolocalização de seus dispositivos para interromper o vírus.
A entrevista é de Susana Pérez Soler, publicada por La Marea, 20-07-2020. A tradução é do Cepat.
É enfática em que não podemos confiar nos dados de pessoas infectadas, hospitalizadas, intubadas e mortas pela pandemia de coronavírus. Por quê?
Destacaria três aspectos centrais: não há evidências suficientes para saber o número real de infectados, portanto, estima-se que o número real possa ser dez vezes maior do que o informado, a maioria dos países não relata mortes fora de hospitais, como as que ocorrem em centros geriátricos e nas casas (o número de mortes na França aumentou 40%, quando isto começou a ser feito), e a política para estipular as causas de morte não é coerente.
Sabemos muito pouco sobre o vírus, embora nos esforcemos para quantificar tudo. Sou especialista em coleta de dados, sendo assim, posso inspecionar e ler padrões para ver as fragilidades do Big Data, mas a maioria das pessoas simplesmente confia nos dados porque são “objetivos”.
É um assunto urgente desmascarar esse mito. No entanto, conhecer com precisão esses dados ajudaria a salvar vidas?
Compreender melhor os dados, estabeleceria melhor nossas expectativas e nos permitiria tomar melhores decisões. Por exemplo, saber que a curva de mortos não é simétrica, mas que sobe rapidamente e desce lentamente, nos ajudaria a antecipar um longo confinamento em casa. Isso poderia indiretamente salvar a vida de muitas pessoas. Se as expectativas forem mal estabelecidas, devido à interpretação incorreta dos dados, conduziremos as pessoas a deixar sua casa antes que seja seguro.
Na Espanha, o Governo estuda a possibilidade de geolocalizar os cidadãos por meio de seus telefones celulares para proteger a saúde de todos, durante as fases de desaceleração. A tecnologia poderia ajudar durante a saída da quarentena?
Cingapura, que usou celulares para combater a Covid-19 e é citada como um exemplo de sucesso, não interrompeu a curva graças à tecnologia. O primeiro ministro do país atribuiu seu triunfo ao trabalho do detetive tradicional, ou seja, a entrevistar intensamente os infectados e seus contatos e localizá-los. Apenas uma em cada seis pessoas em Cingapura baixou o aplicativo móvel, que é opcional, assim como a oferta da Apple e do Google.
Quanto mais pessoas utilizarem os aplicativos, mais garantia de sucesso.
Exatamente, mas isso só acontecerá se houver suficiente confiança de que os cidadãos serão ajudados e cuidados, em vez de punidos, se for descoberto que estão doentes.
Nos Estados Unidos, utiliza-se a tecnologia para controlar e mitigar os efeitos da pandemia?
Em meu país isso é impossível. Primeiro, porque não temos atendimento médico universal e, segundo, porque nos comportamos de maneira punitiva com aqueles que mais precisam do serviço: os excluídos. Para ser eficaz, o sistema deve ajudar as pessoas que, devido a características como raça, renda, idade e ocupação, estão expostas e morrem de maneira desproporcional. No entanto, muitos deles simplesmente não têm celulares.
E se não houver pessoas suficientes usando esses aplicativos, é impossível que sejam úteis.
O aplicativo é cego em relação a seus objetivos mais importantes, o que torna seu uso inútil. Ou ainda pior, apresenta uma história excessivamente otimista, que novamente leva a expectativas erradas e má decisão política.
Na Noruega, 25% dos cidadãos fizeram o download do aplicativo do governo que notifica os usuários se estiveram em contato com uma pessoa infectada. Na China e na Coreia do Sul também são usados sistemas desse tipo, com resultados positivos, de acordo com as autoridades. Que reflexão lhe suscitam essas iniciativas?
Acredito que esses são países com ampla confiança no governo. Nada disso poderia funcionar nos Estados Unidos. Suponhamos por um momento que todas essas pessoas tenham telefone, baixem o aplicativo e, portanto, saibam se estão infectadas. O que farão, então? Muitos não têm seguro, portanto os testes e o tratamento serão proibitivos devido ao seu alto custo. Isso poderia causar uma verdadeira rebelião nos Estados mais conservadores e amantes de armas, por exemplo.
Nos Estados Unidos, um aplicativo deste tipo apenas será útil para pessoas com renda média e alta e com um bom seguro de saúde, não para a maioria.
Cingapura cobriu o custo de todos os tratamentos e testes, que eram generalizados e acessíveis, e forneceu um auxílio-doença às pessoas que precisavam ficar em casa. Os Estados Unidos ainda têm um longo caminho a percorrer para se igualar a isso. Mesmo o melhor aplicativo para celular não resolverá problemas sistêmicos.
Na Europa, os supostos incentivos desses aplicativos - salvaguardar a saúde - parecem maiores que os custos - a privacidade. Por que é inconveniente que obtenham nossos dados, se fazem isso de maneira conjunta e anônima?
Os dados nunca estão realmente anonimizados, menos ainda se o que pretendemos é identificar pessoas doentes ou potencialmente doentes. A ciência de dados é realmente boa para localizar pessoas, se temos outros dados para cruzá-los e para rastreá-los através dos celulares, e definitivamente os temos.
Existe o risco de que o monitoramento realizado durante a desaceleração se instaure uma vez que tenhamos eliminado o vírus?
Absolutamente, ainda mais quando empresas como a Palantir estão no comando. A Palantir é conhecida por ajudar a NSA (Agência de Segurança Nacional) a procurar pessoas no exterior e ao ICE (Serviço de Imigração e Controle de Aduanas) a perseguir imigrantes nos Estados Unidos. Um artigo recente no Gizmodo argumenta que ofereceu seus serviços a diferentes países europeus, entre outros, possui um contrato com o sistema público de saúde do Reino Unido.
Como avalia que o mundo mudará com base na pandemia? Os dados irão adquirir maior importância?
Receio que após passar as primeiras ondas da Covid-19, o principal problema será a desigualdade e a instabilidade política e, ainda que seja verdade que a privacidade terá sido renunciada, nesse momento, o verdadeiro sofrimento virá com a pobreza e as desigualdades sociais. Ao mesmo tempo, acredito que a inteligência artificial terá uma influência ainda mais forte sobre como se distribuem os trabalhos. Ou seja, a vigilância totalmente legal no trabalho continuará sendo um grande problema e causa de desigualdade.
No mundo pré-pandemia, a China nos parecia uma ditadura digital que exercia controle rígido sobre seus cidadãos e limitava seus direitos fundamentais. No mundo pós-pandemia, acabaremos aceitando de bom grado ser geolocalizados?
Do meu ponto de vista, o foco do estado de vigilância chinês foi dizer a seus cidadãos: “Sim, estamos assumindo o controle de tudo, mas estamos fazendo isso para sua proteção”. Depois que isso acabar, esse argumento poderá parecer bastante correto, especialmente se comparado a outros governos que não podem proteger seus cidadãos. Resta saber se na Europa e na América estaremos dispostos a assinar esse tipo de contrato.
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“Ainda que a privacidade terá sido renunciada, o verdadeiro sofrimento virá com a pobreza”. Entrevista com Cathy O’Neil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU