14 Julho 2020
Ubíqua e inacessível, polissêmica e fantasmagórica, a ideia de informação se tornou o fio que parece entrelaçar tudo o que existe, tudo o que existiu e inclusive o que talvez nunca exista. Seres humanos, animais, vegetais, mas também objetos e máquinas, todos somos, em última instância, sistemas de dados.
Esse dogma é o resultado de um longo processo cultural que conjuga práticas sociais e discursos científicos, e cuja genealogia é reconstruída por Pablo Rodríguez em seu livro “Las palabras en las cosas” (Cactus).
A entrevista é de Javier Lorca, publicada por Página/12, 13-07-2020. A tradução é do Cepat.
Com o título do livro, Rodríguez – professor da Universidade de Buenos Aires - UBA e pesquisador do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas - CONICET – não só faz referência a Michel Foucault para pensar continuidades e transformações a respeito de sua obra, como também sugere, diretamente, que a linguagem se tornou autônoma do humano e se expandiu aos computadores, algoritmos, moléculas...
Como se construiu este processo que tem a ideia de informação como eixo? No livro, o define como uma nova episteme.
Episteme é um conceito que se refere a um código fundamental da cultura a partir do qual todos os soldadinhos se acomodam em um só regime, em uma matriz muito identificável. Foucault aplicava a ideia de “episteme moderna” às ciências humanas e sociais, ou seja, às ciências que surgiram no século XIX e que eram um discurso de saber acerca do humano. Não é que antes não houvesse discursos sobre o humano, mas, sim, que naquele momento determinados discursos científicos definem o que é o humano.
A partir da ideia de informação é possível notar que há um grande conjunto de ciências que se acomodam segundo um critério diferente. E não são só ciências, também há questões vinculadas às artes, por exemplo. A informação – na realidade, no livro falo de informação, comunicação, organização e sistema – é uma palavra que começa a ser aplicada a um montão de coisas diferentes: a uma molécula, a um cérebro, a um computador... A informação é candidata a ocupar um lugar central em uma episteme, na medida em que tenta explicar um grande conjunto de variáveis de ordens diferentes.
Quando começa esse processo?
Sua manifestação pode ser localizada nos anos 1940-1950. Quase nenhuma história das ciências conferiu a importância merecida às Conferências Macy, uma série de encontros científicos que foram realizados nos Estados Unidos, entre 1946 e 1953. Aí surge a ideia da cibernética – é o nome que recebe de Norbert Wiener – e, dentro da cibernética, o problema da informação. Desde então, surgem as relações com a biologia molecular, a computação - que surge nessa época -, as ciências cognitivas... Essa é a emergência forte da nova episteme.
Mas, na realidade, essa ideia de informação já estava prefigurada muito tempo antes. Por exemplo, na estatística, que constitui um tipo de saber no qual os signos se acomodam sós, ou seja, um tipo de saber onde se manifesta a possibilidade de que as representações das coisas adquiram um sentido próprio para além do que estão representando.
Foucault dizia que na episteme moderna a representação estava aprisionada na figura do homem. Mas, naquele mesmo período, em filigrana, já havia um conjunto de discursos e disposições que, depois, a cibernética revelou, como destampando a panela. É a ideia de que há uma ordem dos signos que é parcialmente independente do humano. Isso é o que a cibernética escancara.
Quais são as práticas sociais que caracterizam este novo ordenamento?
Hoje, nossa vida cotidiana está atravessada pelas tecnologias da informação, WhatsApp, redes sociais, geolocalizadores para nos movimentar... Há uma parte nada menor da vida social da maioria das pessoas que passa pela mediação de plataformas informáticas. Não discuto que existe a brecha digital, e que muita gente não está conectada. Mas para os que sim, estamos, a informação está absolutamente imbricada em nossa vida.
Até os anos 1980-1990, o imaginário acerca de tudo isto era o do virtual, sociedade virtual, aula virtual, segundo a qual se estava duplicando um mundo por outro. Mas agora, se conhecemos alguém através de uma plataforma, já não podemos dizer que há uma duplicação. Sim, podemos dizer que você coloca em um aplicativo o que antes demorava para fazer: conhecer alguém, ir a um bar (hoje, você tem o Tinder), ou trocar cassetes no Parque Rivadavia (hoje, você tem o Spotify). A todo momento estamos deixando nossos dados para que essas plataformas ou dispositivos nos digam o que temos que fazer. Estamos esperando que nos digam o que fazer, não que estejamos preocupados com isso.
E isto também nos leva à pergunta sobre se os nossos comportamentos não são também de alguma maneira algorítmicos. Alguém pode dizer que o Tinder é a objetivação e a tecnificação do desejo. Mas também quando conhecemos outra pessoa fazemos certos cálculos. Não é que sejamos seres puramente calculistas, mas as coisas que estão no algoritmo são humanas, porque esses algoritmos foram desenhados por seres humanos. O fato que hoje estamos nos colocando manifestamente a viver pela mediação desses algoritmos, dessas redes e dispositivos. Se não entendemos a noção de informação, isso não será entendido.
Há novas subjetividades próprias desta etapa?
Quando buscamos informação na web ou nas redes, essa busca não se produz em um mundo livre de dados disponíveis, mas está determinada pelas buscas passadas, por nosso perfil de usuário e pelos outros perfis. A informação que nos entregam como resultado está determinada por isso. Se isto fosse algo acessório para a vida social, seria um joguinho. Mas se isso é parte central de nossas vidas, se muitas pessoas dedicam muito tempo de suas vidas ao Facebook ou ao Instagram, por exemplo, isto deve afetar ao que chamamos de subjetivação, aos modos de produção de sujeitos. Se os modos de relação entre as pessoas passam por estes processamentos de dados, temos um processo de subjetivação diferente do que tínhamos.
No livro, utiliza o conceito de “dividual” para explicar esta transformação.
É um conceito utilizado por Deleuze, mas que tem uma história por trás, relacionada à ideia de que o indivíduo não é completamente indivíduo, mas que é divisível ou multiplicável por si mesmo. Isto é difícil para nós pensarmos porque ainda somos modernos, vivemos a partir da ideia de que há uma coincidência entre corpo, pessoa, indivíduo, sujeito. Hoje, as teorias de gênero colocam isso em discussão, mas, em geral, continuamos pensando assim.
No entanto, isso está se alterando, há uma espécie de fragmentação que se expressa por exemplo nas redes sociais. A construção do subjetivo sempre é social, mas hoje tratamos com nós mesmos e nos relacionamos com os outros como se todos fôssemos um grande pacote de dados. Saibamos disto ou não. Se eu edito a informação de meu perfil, estou consciente disso. Mas não estou pensando nisso toda vez que as redes me sugerem conteúdo ou contatos. Cada oferta de amizade que a rede nos oferece é o resultado de um grande processamento de dados, que inclui os dados próprios. Seus perfis nas redes são parte de você, sem ser você mesmo.
Neste processo de dividuação, o indivíduo se torna coisas diferentes, que podem ser remetidas a ele, mas não somente. Um caso desta dividuação são as unidades biológicas. A informação de uma análise genética, por exemplo, é a expressão de uma pessoa, mas não é a própria pessoa. Dizemos que há informação nas moléculas, e essa informação se manifesta em uma sequência, e essa sequência a retiramos de um tecido que, por sua vez, faz parte de um corpo. Aí temos quatro instâncias.
Se um laboratório diz “eu sou dono de tal sequência genética porque pude obtê-la”, um Estado pode lhe dizer que não, que se trata de um bem comum, como aconteceu com o sequenciamento do genoma humano. A sequência não é uma materialidade, não existe fora de um tecido, mas se um laboratório a leva, é como se levasse uma parte da pessoa de onde provém. O mesmo acontece com as células-mãe.
Todos estes exemplos nos dizem que um não se é unicamente um, mas que estamos espalhados em diferentes pacotes de dados, fragmentados em diferentes lugares. E todos esses dados são parte de nós, sem ser nós. Com tudo isso estabelecemos uma relação de interioridade e exterioridade, nos representam em algo e, ao mesmo tempo, nada de tudo isso é... minha mão. A nova episteme é solidária com determinadas práticas sociais para as quais, onde antes havia indivíduos, agora há conjuntos diferentes.
Que novas formas de controle e vigilância social fazem parte desta trama?
Essa é uma das questões mais complicadas da nova época. Até há algum tempo, era possível dizer: todos somos vigiados... Era uma espécie de paranoia que funcionava como sistema crítico. Mas hoje a vigilância se misturou com o manejo de questões práticas, como saber qual caminho ou qual meio de transporte tomo para ir a um lugar. É uma era de vigilância absoluta, mas como estamos completamente vigiados, não está claro quem vigia. Claro que há donos de infraestrutura, donos de servers e plataformas, ou seja, podemos identificar determinadas pessoas como aqueles que têm nossos dados, mas como cada passo de todas as nossas vidas está datificado, esses dados estão só parcialmente processados por humanos.
Na grande maioria dos casos, os dados são processados algoritmicamente, funcionando a partir da construção de perfis, alguns perfis construídos por nós mesmos em nossas redes sociais, outros construídos ligando dados como os das compras com cartão, a geolocalização dos lugares onde estamos, os consumos na web. Tudo isso é mais ou menos fácil de coletar. Mas há outra área muito mais complexa: temos tantos dados que, na realidade, não sabemos o que existe, por isso há a mineração de dados, que busca construir perfis que não conhecemos.
Como somos mediados por estas plataformas, podemos dizer que somos completamente vigiados, porque tudo o que nos é sugerido vem determinado por essas plataformas. Mas por trás dessas plataformas não há um senhor malvadíssimo, ao contrário, há um sistema sociotécnico, ou seja, delegamos uma parte não menor da vida social a tais tipos de processos técnicos, que são também processos sociais. Todos esses dados nos constituem. Porque ainda que alguém não queira entregar seus dados, não tenha celular, se vai à rua, é tomado pelas câmeras...
Do ponto de vista de uma fantasia como a de 1984, estamos muito mais no forno que antes. Mas, ao mesmo tempo, não está claro quem é o Big Brother, nem como funciona, porque está muito imiscuído na vida cotidiana e em nossos critérios de praticidade. Em 1984, havia alguém mau que vigiava para exercer poder. Hoje, esse poder é exercido por mecanismos sociotécnicos para os quais delegamos essa capacidade e, ao mesmo tempo, esses mecanismos sociotécnicos tem uma relativa independência de critério. A mineração de dados, os algoritmos que processam dados, lançam resultados desconhecidos para quem elaborou esses processos originalmente. Este é um fenômeno muito inquietante. E o mais inquietante é que, em um nível, não somos nada além de dados.
O capital estabelece formas de acumulação diferentes nesta nova configuração?
Há uma economia de dados e está colocada uma discussão acerca da teoria do valor clássica, porque se está gerando valor econômico com coisas que não possuem trabalho por trás ou, em todo caso, coisas que nos exigem redefinir o que é o trabalho. Mas, efetivamente, há aí um tipo de capital. A economia de plataformas supõe uma nova forma de exploração de algo que ainda não sabemos se chamaremos de mais-valia... Estamos gerando unidades econômicas a partir de coisas que não sentimos que sejam trabalho, que não são trocar tempo por um salário, porque estamos o tempo todo gerando dados que são mercadorias.
Se a todo tempo estamos gerando mercadorias, estamos diante de uma nova etapa de acumulação. Podemos dizer que toda a série plataformas-algoritmos-dados constitui uma nova acumulação primitiva? Não tenho um discurso fechado sobre isto. Há empresas que se compram e se vendem, há pessoas que se tornam milionárias ou ficam na rua por isto que, em um sentido material estrito, não é nada.
Por outro lado, temos o chamado biocapital, que implica tomar fenômenos viventes e transformá-los em produtivos por sua própria condição de viventes. Por exemplo, posso pegar agrupamentos moleculares e patentear uma sequência ou patentear um processo. É algo que está vivo e que é tomado como uma unidade produtiva. É parte de um processo de produção, ou seja, que já não faz parte do vivo, mas, sim, que faz parte do capital. E isto se relaciona ao dividual, justamente porque nós não somos só nós, nem a máquina é só a máquina, mas todos estamos espalhados por todos os lados...
Enquanto continuar existindo capitalismo, o capitalismo irá usufruir de tudo isso. Podemos explicar como atua utilizando as categorias do século XIX? Claramente, não. Tudo isto é ininteligível sem o problema da informação. Por sua vez, isto não quer dizer que não continuem existindo outros processos mais antigos... As fábricas continuam existindo. O mundo tal como era continua, mas também se está abrindo passagem a outro mundo.
Que formas de resistência social se desenvolvem ou podem se desenvolver neste cenário?
Hoje, não sabemos bem por onde passa a resistência. O que, sim, temos claro, e isto deveria deixar de ser tomado como um defeito, é que já não haverá um sujeito político como antes, no sentido de um sujeito identificável, com reivindicações estáveis, com definições claras sobre com quem tem que negociar. Durante um tempo, acreditou-se que as tecnologias permitiam um tipo de laço que a política tradicional não permitia – por exemplo, a ideia da “Primavera Árabe”. Mas logo se demonstrou que não se deve ser tão otimista.
Acredito que daqui para frente teremos sujeitos políticos muito instáveis, e o tipo de resistência que podem esboçar é muito variável. Se a resistência é contra algo global, o global é tão global que não se sabe por onde resistir. Isso faz com que quase todas as disputas se apresentem por questões locais. Os próprios agentes não têm, como antes, uma definição da história e do antagonismo, uma delimitação do conflito. Não é que tudo isso já não exista, ao contrário, existe cada vez mais, mas de um modo dividual: cada vez vemos mais resistências, mas muito dificilmente podem ser unificáveis.
Por um lado, é cada vez menos necessária organização para resistir. Mas, por outro lado, a resistência é cada vez menos orgânica e mais episódica. Nos mundos progressistas onde alguém se move, sempre fica melhor falar de um sujeito unificado, com uma organização estável e com uma condução que sabe para onde vai. Mas esse não pode ser o único critério com o qual julgar algo que ainda não entendemos como está sendo gerado. Não acredito que hoje uma organização frágil seja sinônimo de fraqueza política. Em outra época sim, agora talvez não.
Como incidem hoje, em todo este contexto, a pandemia e a quarentena? As relações sociais parecem ter se deslocado mais do que nunca para os dispositivos e as redes informáticas.
Acredito que o que ocorre nesta quarentena confirma que algumas das questões que trato no livro são centrais para entender as transformações operadas pela informação, tanto nas ciências, como na vida cotidiana. Uma destas questões é a relação entre um vírus e a viralização, ou seja, entre como se enfoca o estudo de um bicho que compõe de maneira estranha com os corpos e como se utiliza esse mesmo bicho como metáfora de uma circulação descontrolada.
O coronavírus circula de maneira descontrolada, então, detém-se a circulação dos corpos, mas isso só se torna possível graças a que, fechados, podemos viralizar todos os tipos de opiniões, comentários, piadas, palavras de amor e de ódio, etc. Obviamente, em outros tempos houve quarentenas sem viralizações, mas como entenderíamos esta quarentena sem as tecnologias de informação?
Por outro lado, as viralizações e as relações que se estabelecem através das redes sociais não são simplesmente uma imitação das interações face a face que teríamos na vida normal. No meio estão os dados, os algoritmos, as plataformas, todo um sistema tecnológico que faz mineração de dados, elabora perfis e conecta esses mapas de nós mesmos com mapas de outros. O dividual não é uma duplicação de si mesmo, ao contrário, é a interação que se estabelece entre individualidades que deixam de ser porque o meio que as conecta participa da definição de cada uma para as conectar: as sugestões de amizade, as publicidades, os links para textos, tudo isso é construído com base nos mesmos perfis que também editamos em nossas redes.
Como observa a adaptação de instituições como as educacionais ao distanciamento social?
As instituições tradicionais tiveram que se adaptar a uma virtualização forçada... Em meu lar de classe média, se pode desarranjar a rotina por ter a escola na tela, mas a adaptação é possível. Uma parte enorme da população não tem essa possibilidade por múltiplas razões. Contudo, mesmo quando se consegue essa “adaptação”, ocorrem coisas estranhas. Foucault dizia que a escola operava segundo uma lógica panóptica: as e os docentes falando e olhando da posição central, as e os estudantes se silenciando e devolvendo o olhar. Outro dia, escutei uma professora de minha filha dizer: “todos com as câmeras ligadas e os microfones desligados”. Eu pensei: como o panóptico continua sendo eficaz como técnica. No entanto, comentando isto em uma aula de pós-graduação na UBA, uma estudante me respondeu: “Atenção, porque nós também temos acesso à intimidade de sua casa”.
Estas diferentes interpretações demonstram como as sociedades de controle se constituem e como, para isso, se sobrepõem formas velhas e novas, mas também como nos vemos obrigados a redefinir o público e o privado, e é aí onde se vê como as novas formas de vigilância se relacionam com novos modelos subjetivos, onde a intimidade se encontra redefinida.
Esta quarentena escancara um conjunto de mutações que já estavam ocorrendo. Será necessário observar o quanto fica de tudo isto quando passar a pandemia, mas estou certo que não se voltará ao mesmo de antes, justamente porque isso “do antes” já era diferente em relação ao que eram as relações sociais há somente uma década...
A Internet explodiu nos anos 1990, os celulares nos anos 2000, e as redes sociais mais tarde, mas sua integração no mundo em mudança das plataformas, envolvendo milhares de milhões de pessoas e as sincronizando, tem muito menos tempo. E tão dramática foi a mudança que agora, com outra transformação mais dramática ainda, não sabemos bem ao que vamos nos ater quando nos disserem que teremos novamente uma “vida normal”.
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“Estamos gerando unidades econômicas a partir de coisas que não sentimos que sejam trabalho”. Entrevista com Pablo Rodríguez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU