21 Julho 2020
"'Com amor, Victor' é um lembrete aos que assistem a série para que tenham cautela em exacerbar tal choque de culturas. Em vez disso, o programa lembra que as pessoas podem desempenhar um papel na reconciliação, ao abrir caminhos de diálogo. Os tabus latinos contra a homossexualidade geralmente podem resultar em abuso e violência. E não deve surpreender que muitos afirmem que sua homofobia tem justificação no ensino católico", escreve Stephen Adubato, que estudou teologia moral na Seton Hall University e hoje leciona religião e filosofia na Escola Preparatória de São Bento, em Nova Jersey, em artigo publicado por America, 10-07-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
A maioria das narrativas sobre o amadurecimento pelo qual passam os gays inclui alguns pontos constantes: um adolescente (poucas histórias de lésbicas conseguiram destaque nas mídias convencionais) reconhece que ele não é como os outros garotos. Ele luta contra crises decorrentes de uma negação e da vergonha sentida, mas acaba aceitando sua sexualidade, enquanto tenta descobrir como vai se revelar para os pais e lidar com a necessidade de aceitação social.
A nova série do canal do streaming americano Hulu, “Com amor, Victor” (Love, Victor), e sua antecessora, “Com amor, Simon” (Love, Simon), continua na mesma linha que já é familiar aos espectadores. Mas, nesse caso, não devemos temer: Simon é “exatamente como nós”. Ele é um adolescente branco, suburbano, “com a exceção de ser gay”. Estas primeiras frases do programa distinguem Simon das caracterizações mais comuns de homens gays extravagantes. Da mesma forma, Victor não é o adolescente gay estereotipado efeminado, obcecado por séries, ao contrário do que se vê em programas como “Ugly Betty” ou Glee.
Com ousadia, “Com amor, Victor” tenta romper os estereótipos e representar a diversidade dos tipos de personalidade e experiências dentro da comunidade LGBTQ. A mudança que ultrapassa os limites do cenário suburbano branco e secular de Simon, indo para uma classe média-baixa, católica latina, contribui para uma transformação intrigante no enredo. Apesar de uma produção reduzida e do desenvolvimento superficial dos personagens, “Com amor, Victor” levanta questões importantes sobre como o desejo pelo mesmo sexo é interpretado ao longo das divisões religiosas e étnicas.
Conhecemos Victor Salazar (Michael Cimino) quando ele se muda com a família do Texas para a Geórgia. Por rara coincidência, ele frequentará a mesma escola que Simon Spier, que ficou conhecido depois de trocar beijos com outro menino em cima de uma roda gigante no festival de inverno da cidade. Victor contata Simon no Instagram, na esperança de receber conselhos sobre como lidar com o fato de ser gay na Creekwood High, escola onde estudam.
“Dane-se você, Simon”, escreve ele em uma mensagem direta na rede social, “dane-se por ter os pais mais perfeitos do mundo, que o aceitam, os amigos que dão o maior apoio (…) porque, para muitos de nós, não é assim tão fácil”. Logo descobrimos que, além de ter problemas conjugais, os pais de Victor são católicos latinos da classe trabalhadora conservadora – em forte contraste com os pais de Simon, que são etnicamente ambíguos, brancos, seculares e de classe média alta, os quais se mostram extremamente liberais.
Enquanto Simon só tem que se preocupar em conquistar a aceitação dos colegas, Victor também precisa enfrentar o problema de como convencer a família de que ele ainda é “ele”, independentemente da sua orientação sexual. Aqui temos um indício do porquê esse jovem vive um dilema doloroso.
Victor relembra um momento na igreja, quando a mãe, Isabel, tenta vesti-lo “pra ficar bem bonito” ao lado da irmã, quando o pai, Armando, comenta que ele parecia um pouco florido demais para quem deveria se interessar por mulheres. Na festa de aniversário de Victor, vemos que seu avô se preocupa com o fato de o irmão de Victor, Adrian, brincar com um “brinquedo de menina” e que provavelmente não lhe dará nenhum bisneto. Poucos minutos depois, Armando e o avô solicitam que Victor peça a dois amigos abertamente gays que deixem a festa, isso depois de eles terem se beijado na frente da família.
O foco da série sobre como é crescer gay em uma família de classe trabalhadora, latina e católica é a principal atração do programa, e também a sua maior fraqueza. O programa reafirma a experiência de inúmeros adolescentes que lutam por encontrar aceitação na família e que não veem suas narrativas representadas adequadamente na cultura pop. Cada vez mais tem havido livros, programas e filmes que apresentam as histórias de jovens gays que se assumem, mas raramente dão atenção às experiências de imigrantes não brancos.
Infelizmente, o programa dá pouco espaço para que a complexidade da identidade latina e do catolicismo surja e se desenvolva. Na realidade, ser latino vai além de ser homofóbico, comer bolo tres leches e pendurar piñatas. E, nesse sentido, a “cultura latina” consiste em uma grande variedade de identidades raciais, religiosas e nacionais. A nacionalidade ambígua de Victor (ele tem uma bandeira porto-riquenha no quarto, seus avós são da Colômbia e sua festa de aniversário é mexicana) sugere uma falta de apreço do produtor pela distinção das culturas do Caribe, da América Central e da América do Sul.
Ser católico é mais do que ser conservador e repetir um pietismo cafona (Isabel costuma dizer que “orou para Jesus” para que algum favor lhe fosse concedido e pede à família que a ajude “a decidir onde queremos que Jesus fique nos vigiando”, enquanto tira um crucifixo de uma caixa de mudanças). Esse tratamento simplista faz pouca justiça às ricas nuances que definem como é crescer latino e católico em uma cultura secular e principalmente branca.
Com certeza, é possível que a maioria dos jovens gays que crescem em uma família burguesa secular tenham mais facilidade. Quem pode culpar Victor por ter inveja? Mas o que a série deixa de reconhecer é que, além das atitudes geralmente homofóbicas de muitas famílias de classe trabalhadora católica latina, há muito mais em jogo para estas pessoas do que para alguém que cresce no ambiente de Simon. A família de Victor gira em torno dos valores da família, da fé e da cultura, de um modo que não ocorre na família de Simon. A ética autossuficiente e individualista dos brancos suscita, o que é compreensível, preocupações por aqueles cuja cultura coloca mais ênfase na dependência mútua e na tradição.
É verdade que a “liberdade” oferecida a Simon por sua família é superior à que a família de Victor lhe oferece? A caminhada de Victor, no sentido de encontrar-se consigo mesmo, parece prosseguir de acordo com um critério que ignora grandemente os papéis da família, da fé e da cultura. Isso dá ao programa um tom culturalmente elitista. A temporada termina nos deixando na esperança de ver se a família de Victor finalmente entenderá a situação e “evoluirá” o suficiente para deixar de lado os valores antiquados que defende.
Mas talvez chegar à compreensão sobre a identidade e os desejos de alguém não precise ser um confronto com a tradição e os valores das pessoas. Talvez esses valores conflitantes possam receber mais espaço para que suas particularidades surjam e sirvam para trocas mútuas de saberes.
Tomara que a série possa dar um impulso àquele diálogo que é tão necessário entre as famílias latinas. Como elas podem aceitar os filhos gays ao mesmo tempo que reafirmam os valores culturais e religiosos? Talvez haja uma maneira de se iniciar uma caminhada em direção à descoberta de si que não exalte a autoexpressão em detrimento dos valores culturais e éticos herdados. E talvez os produtores ousem imaginar narrativas de intimidade entre pessoas do mesmo sexo além da narrativa individualista de sempre, aquela de sair do armário, que se encaixa tão confortavelmente em ambientes burgueses brancos seculares, mas não tanto entre as famílias religiosas de imigrantes da classe trabalhadora.
"Com amor, Victor" é um lembrete aos que assistem a série para que tenham cautela em exacerbar tal choque de culturas. Em vez disso, o programa lembra que as pessoas podem desempenhar um papel na reconciliação, ao abrir caminhos de diálogo. Os tabus latinos contra a homossexualidade geralmente podem resultar em abuso e violência. E não deve surpreender que muitos afirmem que sua homofobia tem justificação no ensino católico.
Aqui, a Igreja pode intervir com uma lógica “tanto uma coisa, quanto outra”, afirmando a dignidade dos gays e acompanhando-os ao longo da caminhada enriquecedora e emocionante de viver a vida de acordo com o amor de Cristo.
A igreja pode também fomentar o diálogo intercultural que respeite a dignidade de ambos os lados no processo de assimilação, em vez de colocar um contra o outro.
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Pode a série ‘Com amor, Victor’ desafiar os estereótipos quanto a crescer gay? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU