05 Junho 2020
Se a política mundial se orientar para a abertura, a colaboração, a resolução comum dos problemas da humanidade, teremos uma possibilidade de superá-la. Se reagirmos nos fechando, se prevalecer a lógica devastadora do “primeiro nós”, nos prejudicaremos sozinhos, cairemos em uma reação irracional como aqueles que faziam procissões na Idade Média.
A opinião é do físico italiano Carlo Rovelli, professor no Centro de Física Teórica da Universidade de Marseille, na França, e diretor do grupo de pesquisa em gravidade quântica do Centro de Física Teórica de Luminy.
O artigo foi publicado em Corriere della Sera, 31-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A grande literatura ocidental começa com uma epidemia. Apolo desce irado sobre os campos do Aqueus no início da Ilíada (“Do vértice do céu baixa iracundo; vem semelhante à noite, e a cada passo tinem-lhe ao ombro as frechas. Ante a frota suspenso, a farpa do carcás descaixa, terrível o arco argênteo estala e zune: moles primeiramente a cães e a mulos, depois com vira acerba ataca os homens, de cadáveres sempre a arder fogueiras” [trad. Manoel Odorico Mendes]).
Uma epidemia abre a maior das tragédias, perturbando Édipo, Rei de Tebas (“o deus maléfico da peste devasta a cidade e dizima a raça de Cadmo; e o sombrio Hades se enche com os nossos gemidos e gritos de dor” [trad. J. B. de Mello e Souza]”).
O século de ouro de Atenas é devastado por uma das epidemias que mais permaneceram no imaginário do mundo, pela descrição que Tucídides faz dela e pela versão chocante que Lucrécio dá a ela no fechamento do seu poema (“transbordava de sangue a boca enegrecida, e se fechava a garganta, obstruída por úlceras e pelo mal, destilava sangue a língua, o hálito emitia um fétido odor, assim como fedem os cadáveres putrefatos... cadáveres jaziam empilhados e insepultos... pelas ruas era possível ver corpos horríveis pela podridão, cobertos de trapos e pela podridão do corpo...”).
Estima-se que a peste antonina provocou entre 5 e 30 milhões de mortes durante o Império. A peste de Justiniano, talvez mais e desagregou o tecido social (Paulo, o Diácono, assim descreve uma onda tardia: “Todos haviam fugido, e tudo estava envolto no silêncio mais profundo. Filhos haviam ido embora, deixando insepultos os cadáveres de seus pais; pais haviam se esquecido de seus deveres, abandonando seus filhos”); alguns historiadores a consideram como um fator do colapso da civilização urbana europeia do mundo antigo. No fim da Idade Média, a peste negra, em numerosas ondas sucessivas, matou um terço dos habitantes da Europa.
No meu mundo da Física, recorda-se que, no século XVII, Newton escreveu a sua grande obra durante um retiro no campo, porque uma epidemia devastava Londres. Na Itália, lembramos a peste em Milão, descrita por Manzoni. Em Marselha, onde eu trabalho, recorda-se a peste de 1720, que matou quase metade dos habitantes da cidade. Há exatamente um século, a gripe chamada de Espanhola provocou 50 milhões de mortes.
Líamos tudo isso nos textos de história e nos parecia coisa do passado. Ou, melhor, considerávamos quase como o símbolo da modernidade o fato de que o progresso, o saber científico, o domínio do homem sobre a Natureza nos tivessem tirado desses pesadelos do passado.
Hoje, a propagação da pandemia nos desperta dessa ilusão. O progresso é menos poderoso do que pensávamos. É uma lição de humildade a ser ter bem presente. Damo-nos conta da nossa fraqueza.
Na Itália, há uma sensação alegre de que o pior já passou, mas não sabemos se a doença está desacelerando ou se apenas passamos pela primeira de uma série de ondas sucessivas, como ocorria nas grandes epidemias do passado. Esperamos muito por uma vacina, mas, por enquanto, não a temos, e somente uma pequena minoria de nós talvez esteja agora imune.
O confronto com a devastação das epidemias do passado, no entanto, deve nos fazer refletir e nos mostra que não devemos subestimar os instrumentos que temos. Para se defender da epidemia, os Aqueus restituíram a um sacerdote de Apolo a filha estuprada por Agamenon. Ação boa, é claro, mas que não deve ter tido grande eficácia sobre a doença.
Édipo mandou o cunhado a Delfos para pedir luzes sobre como se livrar do mal, com o único resultado de se enfiar em uma confusão bem conhecida: a Pítia lhe responde que ele matou seu pai e se casou com sua mãe. Manzoni narra procissões contra a peste: exatamente aquilo que não se deve fazer contra a peste.
A humanidade foi por muito tempo impotente contra as epidemias. Não estamos na mesma situação. Não sabemos como ela evoluirá, mas, por enquanto, a pandemia provocou 400 mil mortes: muitas, mas ainda pouquíssimas em comparação com as grandes epidemias do passado.
Em Milão e em Nova York, ouvimos as sirenes das ambulâncias, mas não os gemidos de moribundos em cima de pilhas de cadáveres pelas ruas. A existência de um teste, os tratamentos intensivos nos hospitais, os antibióticos para as complicações bacterianas salvaram centenas de milhares de vidas. As decisões políticas sobre o distanciamento social, baseadas nos cálculos dos epidemiologistas, evitaram o colapso dos sistemas de saúde, reduzindo drasticamente o número de mortes. A esperança de uma vacina não voou pelos ares: é concreta.
Se, por um lado, não devemos cometer o erro de pensar que somos onipotentes, por outro também não devemos negar o valor dos muitos instrumentos médicos, científicos, culturais e econômicos de que dispomos e que os nossos pais não tinham. Esses instrumentos não são apanágio de um país ou de outro: foram desenvolvidos pela colaboração de toda a humanidade; o seu desenvolvimento continua globalmente.
O rapidíssimo reconhecimento do vírus, o desenvolvimento dos testes, os modelos necessários para controlar a epidemia são todos saberes globais, possibilitados pela imediata colaboração internacional. Os instrumentos com os quais nos defendemos, dos respiradores às máscaras, foram produzidas em países que abasteceram o mundo inteiro.
Se e quando encontrarmos uma vacina, não haverá um país que tenha a vacina e outros não, a menos que façamos tolices. Será a humanidade inteira que compartilhará uma vacina. Defendemo-nos melhor do que no passado, graças ao fato de a humanidade ter sabido colaborar.
Se o vírus tivesse chegado às nossas fronteiras, encontrando um país isolado e fechado em si mesmo, teria sido muito mais devastador, assim como foram devastadoras as epidemias que chegavam no passado. Os efeitos históricos das epidemias foram os mais variados e são difíceis de avaliar. Talvez algumas aceleraram colapsos de civilização. Talvez a peste do século XIV tenha favorecido o início da modernidade na Europa.
Esperamos que a pandemia atual permaneça minúscula se comparada com as grandes epidemias do passado; ninguém sabe como ela vai evoluir, e ninguém hoje sabe realmente quais e quantos efeitos ela está tendo sobre a humanidade. Mas, nos momentos em que se sente medo, existem dois instintos opostos: ajudar-nos uns aos outros ou nos fechar em pequenos grupos e nos defender dos outros. Eu acho que o futuro do mundo depende de qual desses dois instintos prevalecerá hoje.
A segunda atitude, o fechamento contra os outros, infelizmente é generalizado. Ouço rumores de que a epidemia se deve à globalização, e, por isso, a globalização diminuirá. Outros dizem que os países, ou as grandes regiões do mundo, devem se tornar autossuficientes e não depender dos outros, como se cada país pudesse realmente produzir tudo o que é essencial para todas as eventualidades. Levantam-se rumores fortes e raivosos no mundo para culpar os outros pelo que aconteceu, muitas vezes para evitar acusações pelos próprios erros cometidos. As tensões aumentam no planeta.
Se esse instinto de fechamento e conflito prevalecer, se prevalecer a lógica do “é melhor se salvar sozinho”, então essa epidemia será desastrosa para a humanidade. O primeiro país que desenvolver a vacina, por exemplo, vai querer mantê-la para si mesmo. Alguns já propuseram fazer isso.
A ruptura da interdependência econômica, da qual se fala em diversas partes do mundo, é abrir a porta para conflitos crescentes, para as guerras e para a pobreza generalizada. Para jogar na miséria os milhões de seres humanos que saíram dela nas últimas décadas na miséria.
Se a nossa lógica é “primeiro os italianos”, então não podemos esperar que alguém nos ajude no momento da dificuldade ou que alguém compartilhe conosco remédios, tratamentos, bens, a vacina. Se, em vez disso, essa crise, que é global, nos ajudar a entender como a humanidade compartilha riscos que são comuns, ameaças comuns e soluções comuns dos problemas, se ela reforçar a consciência de que devemos trabalhar juntos, estabelecer regras comuns, compartilhar, pôr os recursos em comum, aprender a confiar uns nos outros, então podemos continuar nos defendendo.
A Itália é um país pequeno com mais influência no mundo do que se costuma pensar. Ela se encontrou na desagradável posição de vanguarda do Ocidente ao enfrentar a crise. No mundo, ela foi observada com atenção, apreciada e seguida nas suas dificilíssimas escolhas. Espero que ela seja capaz de levantar uma voz forte e clara contra as muitas vozes assustadas que hoje no mundo pedem fechamentos.
A única estratégia que nos permite nos defender das crises é aumentar a colaboração global: política, econômica e científica. A pandemia em curso não acabou e não será a última crise séria que a humanidade deverá enfrentar. Outros alertas foram disparados, como os alertas que haviam sido disparados pelo risco de uma pandemia.
Se a política mundial se orientar para a abertura, a colaboração, a resolução comum dos problemas da humanidade, teremos uma possibilidade de superá-la. Se reagirmos nos fechando, se prevalecer a lógica devastadora do “primeiro nós”, nos prejudicaremos sozinhos, cairemos em uma reação irracional como aqueles que faziam procissões na Idade Média.
Não nos defendemos de um vírus fechando fronteiras, diminuindo os intercâmbios ou produzindo coisas por conta própria: vírus e bactérias também viajavam no tempo de Heitor e Aquiles.
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Fechar-se ao outro não adianta nada. Artigo de Carlo Rovelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU