01 Junho 2020
O pedido para que o italiano Enzo Bianchi se afaste da comunidade que ele mesmo criou, em Bose, coloca novamente a delicada questão da relação das comunidades com seus fundadores, e da boa gestão da transmissão da autoridade.
A reportagem é de Marie-Lucile Kubacki, publicada por La Vie, 29-05-2020. A tradução é de André Langer.
Na Itália, a Comunidade de Bose é quase tão mítica quanto a de Taizé na França. Assim, quando na noite de 27 de maio saiu a notícia de que o Vaticano pediu a Enzo Bianchi – assim como a uma religiosa e dois religiosos – para que deixasse o mosteiro e se transferisse para outro lugar, ela caiu como uma bomba. Um comunicado publicado no sítio da Comunidade de Bose explicita as causas dessa decisão por “uma situação tensa e problemática em nossa comunidade no que tange ao exercício da autoridade por parte do fundador, à gestão do governo e ao clima fraterno”.
Esta situação, longe de ser isolada, ilustra de fato o quão sensível é a transferência de poder nas comunidades, mesmo que essa questão possa ter sido eclipsada recentemente por esta outra, ainda mais dramática, dos abusos sexuais ou de poder, que lhe é, às vezes (mas nem sempre), correlata. E este debate, se surgiu mais nos últimos anos em comunidades fundadas na segunda metade do século XX, é histórico. Conta-se que Francisco de Assis, certo dia lutou para se concentrar em sua oração, porque estava obcecado com a ideia de que a cesta de vime que ele acabara de trançar estava danificada. Observando isso, ele decide queimar sua criação, entendendo o perigo de se identificar demais com sua obra. “Momento trágico em que a vida religiosa se aproxima do desespero. Onde o homem luta sozinho à noite com o Indescritível. Ele acreditava que bastaria fazer isso ou aquilo para agradar a Deus. Mas é a ele quem nós buscamos. O homem não é salvo por suas obras, por melhores que sejam. Ainda tem que se tornar ele mesmo obra de Deus”, escreveu o franciscano Éloi Leclerc, que dedicou um livro a essa experiência (Sagesse d'un pauvre, DDB, 2007).
“Esta transição sempre foi difícil, como mostram os exemplos de São Francisco e de Jeanne Jugan, fundadora das Irmãzinhas dos Pobres e que foi afastada em vida das responsabilidades da sua congregação, reconhece Noëlle Hausman, irmã do Santo Coração de Maria e diretora da revista Vies Consacrées. Mas nos últimos três séculos, isso se tornou mais caótico, porque valorizamos mais o indivíduo do que a comunidade. Isso pesa sobre a ‘vedetização’ de alguns fundadores. Ora, um fundador, um superior, deveria ser um irmão ou uma irmã entre os demais, destinado(a) a retornar à base após o seu ministério, porque na vida religiosa não há grau: é a fraternidade que deve prevalecer”.
A religiosa também alerta para a tendência de muitos crentes em procurar “grandes figuras” e “estrelas” a todo custo: “Muitas vezes, as figuras que interessam às pessoas são a Madre Teresa, a Irmã Emmanuelle ou a Irmã Cristina Scuccia, que participou do programa de TV The Voice na Itália, ao passo que a vida religiosa não é formada por vedetes. E quando há problemas com a tristeza entre os jovens das comunidades, eles não encontram grandes figuras, mas presenças reais, sem brilho. É sobre elas que repousa a lealdade de um instituto. Estou convencido de que os verdadeiros fundamentos não estão onde pensamos que estão”. Constatação compartilhada por Pierre-Yves Pecqueux, eudista e vice-secretário geral da Conferência dos Religiosos e Religiosas da França (Corref): “A busca por vedetes é uma coisa muito perigosa na Igreja: se você se colocar no centro, você se queima. E a própria Igreja é responsável por seus desvios: a maneira como um certo número de líderes foi escalado para o topo sem ter tempo para estabelecer referências é um erro monumental, que se paga com tudo o que deu errado”.
Mas além da questão da responsabilidade coletiva, há também aquela do comportamento do fundador. “O fundador não deve negar o fato de que recebeu um carisma, mas não deve amarrar as pessoas a si. O ponto delicado é que se trata de uma atitude pessoal. Não apegar as pessoas a si não impede a estima, uma legítima e clara afeição, bem ordenada, mas é uma linha de crista sobre a qual se deve permanecer, caso contrário se desliza facilmente para a encosta ‘gourouisante’ [relativo a guru] ou patriarcal – não sei como chamar. O fundador deve, portanto, ser muito despojado”, reflete François-Régis Wilhélem, padre do Instituto Notre-Dame de Vie e teólogo do Comitê Episcopal Francês para a Renovação e os Movimentos de Animação Espiritual.
Para estruturar as coisas e garantir que a evolução de uma comunidade não se baseie exclusivamente na consciência pessoal do fundador, a instituição exerce, em princípio, um controle, um “discernimento institucional”, que passa pela avaliação dos “estatutos” das comunidades – verificando especialmente sua adequação ao “direito canônico”, conjunto de leis e regulamentos para o governo da Igreja Católica e de seus fiéis. Às vezes percebidas como sufocantes, essas salvaguardas também são implementadas para preservar a liberdade de cada indivíduo e garantir a boa saúde da fundação.
O equilíbrio entre carisma e instituição é sutil e frágil. Por um lado, a necessidade de liberdade em relação à instituição para permitir o florescimento do carisma, a vocação própria da comunidade. Por outro, a necessidade da obediência à instituição, sob pena de cair perigosamente na excessiva personalização e no risco sectário. Mas onde colocar o cursor? “É preciso saber o que está no centro, responde imediatamente Pierre-Yves Pecqueux: é a mensagem do Evangelho e a pessoa de Cristo ou a do fundador? Se o fundador não tem as qualidades de um João Batista que se afasta para abrir o caminho para o Senhor, algo não está bem”.
E prossegue: “Pude observar coisas estranhas enquanto acompanhava irmãos que deixaram as comunidades onde tudo girava em torno do fundador: este último estava cercado por uma espécie de coroa, da qual todos queriam participar e pertencer. Isso desvirtuava do caminho da verdade para entrar em uma dinâmica de competição e ciúme. Havia o círculo dos queridinhos e, como a sedução fazia parte da dinâmica do fundador, o desejo de fazer parte dele era muito grande. E se você teve a infelicidade de fazer uma observação, isso era considerado um ataque pessoal ao fundador, e você era excluído do círculo”.
Esses desvios de autoridade foram estudados por um sociólogo belga, Léo Moulin, que, estudando as constituições das ordens religiosas, distinguiu figuras de poder. “Ele aponta quatro tipos de regimes absolutistas”, observa Noëlle Hausman, que detalha: o individualismo absoluto, isto é, “o hermetismo total sem qualquer ligação com nenhum bispo”; a solução anárquica, sem hierarquia, “como o primeiro ideal de São Francisco de Assis, que não funcionou e que o levou a aceitar a necessidade de um mínimo de regras e de hierarquia”; a base democrática total, onde “o governo e o controle permanente são assegurados por uma assembleia majoritária”; e a solução totalitária definida pelo princípio do líder carismático, aclamado, pela negação de qualquer regime jurídico e pela aniquilação da consciência individual em favor da lógica de grupo.
“Na época em que escreveu isso, Léo Moulin disse que essa solução não tinha sido comprovada. Depois disso, várias comunidades se encontraram na fórmula e podemos ver aonde isso leva, continua Hausman. Nenhum grupo duradouro existe sem hierarquia ou relações legais e, se não prestarmos atenção a essa lei de grupos, o grupo torna-se sectário” (Le monde vivant des religieux, Calmann-Lévy, 1964).
Assim, a instituição existe para garantir a fecundidade do carisma. “Mas isso não significa que aqueles que são chamados para o governo sejam necessariamente tão ‘brilhantes’ quanto o fundador, alerta François-Régis Wilhélem. É importante lembrar que o carisma não repousa apenas sobre o fundador. A fecundidade do carisma depende de cada pessoa da comunidade”. Teresa d’Ávila, por exemplo, disse às suas irmãs que todas deveriam se considerar como uma pedra fundamental para as irmãs que chegavam: todas eram responsáveis pela comunidade. “O erro é concentrar tudo em uma só pessoa”, conclui o padre. Assim, um indicador de boa saúde e de solidez em uma comunidade religiosa ou humana é sua capacidade de acolher um sucessor visto como menos carismático ou simplesmente diferente, consciente de que também está destinado a passar.
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Os fundadores e a espinhosa questão da transferência do poder - Instituto Humanitas Unisinos - IHU