30 Mai 2020
“A vitória mais surpreendente da oligarquia é a alienação, a perda da consciência coletiva que levou as pessoas a acreditarem que apenas o mercado manda, e que os homens e as mulheres não são sujeitos de sua própria história. Quando nós, seres humanos, nos submetemos às leis do mercado e as reproduzimos em nossa prática individual, isso é alienação. Se rompermos com essa limitação, avançaremos rapidamente no caminho da mudança”, afirma Jean Ziegler, vice-presidente do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas.
A entrevista é de Charlotte Vautier, publicada por Rebelión, 29-05-2020. A tradução é do Cepat.
Sr. Ziegler, hoje sabemos que as sociedades ocidentais dependem de um contínuo crescimento da produção e do consumo. Alguma vez viu o sistema capitalista tão debilitado como neste momento?
Em primeiro lugar, gostaria de esclarecer algo que me parece importante: o mundo vive sob a ditadura do capitalismo financeiro. Deixe-me dar um número do Banco Mundial: no ano passado, 500 empresas privadas transnacionais controlavam 52,8% de toda a riqueza produzida no planeta. Essas empresas transnacionais ditam suas leis até para os estados mais poderosos.
Agora, com a pandemia, esse sistema, a ordem mundial capitalista, mostrou sua fragilidade, nos últimos tempos nunca foi tão fraco. Na maioria dos países capitalistas ocidentais, descobriu que é totalmente dependente de nações da periferia para obter suprimentos que são vitais para a população. Faltam máscaras e medicamentos para combater o vírus porque são fabricados na Índia e na China.
O capital sempre vai aonde gera mais lucro, ou seja, onde os custos de produção são mais baixos. Portanto, o princípio de maximizar lucros está provando ser um princípio assassino... existem países onde haverá escassez de alimentos, porque muitos desses produtos básicos para a vida são importados.
Uma solução seria alcançar a autossuficiência nacional em produtos de saúde e alimentos básicos?
Sim. O Estado parece estar descobrindo seu poder normativo. O que precisa ser feito é fortalecer a saúde pública e o setor de alimentação, também é necessário melhorar os salários daqueles que garantem o bem-estar da população. Para sair da desastrosa lei da maximização do lucro, precisamos repatriar a produção e estabelecer redes internacionais de solidariedade.
Existem nações como o Níger que são devastadas pela fome, devido ao esgotamento de seu solo. Não possui um centavo para irrigar suas terras agrícolas, mas seu principal recurso, o urânio, é explorado pela empresa francesa Areva, em condições de pirataria. Isto, é claro, dever ser freado. A Europa não pode continuar aplicando políticas neocoloniais e criminosas.
No início da crise, o Papa Francisco pediu o cancelamento da dívida dos países mais pobres. Esta medida poderia ser decisiva, se chegasse a ser aplicada?
Uma vez terminada a pandemia, não sei se conseguiremos colocar as oligarquias financeiras na linha. A dívida externa dos 122 países do chamado Terceiro Mundo - em 31 de dezembro do ano passado - era de 2,1 trilhões de dólares. Em países como Mali e Senegal, todo o dinheiro que obtêm vai diretamente para pagar os juros da dívida.
A dívida é mortal, impede os Estados de investir em suas economias. O resultado é uma desnutrição permanente de 35,8% da população africana, segundo dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação.
A Forbes afirma que, com o confinamento, os bilionários perderam 10% de suas fortunas. Calculam que Donald Trump teria perdido um bilhão de dólares, cerca de um terço de sua fortuna. Esta oligarquia se verá realmente afetada ou sairá ilesa?
Acredito que tudo depende da atitude das pessoas. No Ocidente, a opinião pública poderia tentar mudar parte do sistema econômico através de eleições, greves gerais, manifestações...
Dou muitas conferências para falar sobre capitalismo. Quase sempre, no final, alguém levanta a mão e diz: “Tudo o que você diz está correto, mas eu, um simples cidadão, não posso fazer nada”.
A vitória mais surpreendente da oligarquia é a alienação, a perda da consciência coletiva que levou as pessoas a acreditarem que apenas o mercado manda, e que os homens e as mulheres não são sujeitos de sua própria história. Quando nós, seres humanos, nos submetemos às leis do mercado e as reproduzimos em nossa prática individual, isso é alienação. Se rompermos com essa limitação, avançaremos rapidamente no caminho da mudança.
Você foi relator das Nações Unidas para o Direito à Alimentação. Você pode me dar um exemplo concreto das consequências destrutivas do capitalismo? Que responsabilidade os países ricos têm nesse sistema que você chama de desumano?
Todos os dias, 25% da produção mundial de alimentos é destruída. Acaba nas latas de lixo dos países ricos. Os alimentos básicos, milho, trigo e arroz, representam cerca de 75% do consumo mundial e estão sujeitos a especulações no mercado de ações. Este é um problema central.
Deixe-me dar um exemplo: Na Bolsa de produtos agrícolas de Chicago, é possível especular com o arroz, o trigo e o milho. Os especuladores obtêm lucros astronômicos todos os anos com esses alimentos. O aumento do preço dos alimentos no mercado de ações está obviamente se reflete no preço local dos alimentos. Então, nos bairros populares do terceiro mundo, quando os preços aumentam, as mães não têm dinheiro suficiente para alimentar seus filhos. Muitas crianças perecem como resultado de uma situação.
Em outras palavras: a especulação no mercado de ações tem consequências mortais para os mais humildes do Terceiro Mundo. É devido a esse sistema, entre outras coisas, que a cada cinco segundos uma criança com menos de dez anos morre de fome. Quase um bilhão dos sete bilhões de seres humanos que habitam o planeta está seriamente desnutrido. Com esta crise, os mais pobres serão os mais afetados, também na França e na Europa.
As especulações poderiam ser proibidas amanhã de manhã, a Assembleia Nacional Francesa e o Congresso dos Estados Unidos poderiam introduzir um artigo que regulasse as bolsas de valores, simplesmente afirmando o seguinte: “A especulação financeira com produtos alimentares básicos, como arroz, trigo e o milho está proibida”.
Em um mês, milhões de seres humanos seriam salvos da morte pela fome. Mas o que acontece é que atualmente a lei do capital decide quem viverá e quem morrerá no planeta, apenas pressionando os botões de um computador. O mercado de ações mata, é criminoso.
Existem coisas na Terra que não estejam dominadas pelo valor de mercado?
Não, acho que o valor de mercado é a medida de tudo.
Existe a ideia de que sempre haverá dominantes e dominados. É utópico pensar que poderia ser de outra maneira?
Essa afirmação tão comum é uma visão totalmente fatalista. A história tem sentido. Como disse Jean Jaurès “o caminho está cheio de cadáveres, mas conduz à justiça”.
O capitalismo é um sistema criado por homens e dominado por alguns poucos homens. A Oxfam diz que os oito bilionários mais poderosos do mundo têm tanta riqueza como o que possui os 2,7 bilhões de seres humanos mais pobres. São somas de dinheiro difíceis de imaginar.
Essa ordem mundial canibal criou uma desigualdade como nunca antes vista no mundo, é abismal. As inovações produziram revoluções tecnológicas, mas, ao mesmo tempo, a ordem social e econômica é uma ordem assassina.
Hoje, pela primeira vez na história do mundo, existem bens suficientes para garantir o bem-estar material de todos os habitantes deste planeta. Mas a distribuição não é justa e nem equitativa. Uma ordem com igualdade e justiça social deve ser o horizonte da história.
Desigualdade, fome no mundo... Cada vez existem mais pessoas conscientes disso, querem agir, mas não sabem o que fazer. Esta crise poderia finalmente forçar a mudança?
Sim, acredito que sim, porque essa crise é radicalmente algo novo. O choque é muito profundo. Estamos ameaçados de morte por um inimigo que não conhecemos. As estruturas criadas pelo Estado estão se mostrando ineficazes. Por quê? Simplesmente porque os estados foram privados de sua função real, seu poder normativo.
As políticas de investimento público estavam revogadas pelo valor de mercado, pelo capital, por sua lei que domina toda a sociedade. E sua lei é a lei da maximização do lucro, dos lucros para alguns poucos. O capitalismo nunca beneficiará o interesse geral, vai contra a mecânica de seu funcionamento.
Isso provoca a angústia que sentimos todos os dias, porque se somos infectados pelo vírus, com os meios limitados que o estado possui hoje, corremos o risco de morrer. E esse choque brutal pode provocar a revolução.
Vou te dar o exemplo da Bastilha. Em 14 de julho de 1789, os artesãos de Faubourg Saint-Martin e Faubourg Saint-Antoine olharam para seus vizinhos e viram mulheres pálidas, crianças famintas e maridos trancados na prisão política da Bastilha. E na manhã de 14 de julho, essas pessoas simples disseram a si mesmas que as coisas não podiam continuar assim. Marcharam sobre a Bastilha, libertaram os prisioneiros, executaram o governador. Foi o começo da Revolução Francesa. Se na noite de 14 de julho, às margens do Sena, tivesse existido um jornalista que perguntasse aos insurgentes se queriam uma República, com certeza, as pessoas que arriscaram suas vidas não teriam sabido responder. Podemos acreditar que isso é um absurdo. Mas a história se faz caminhando.
Há uma frase de Antonio Machado que você cita em um de seus livros: “caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao caminhar”.
Exatamente. Então, o que vai acontecer? O vírus causará o fim da consciência alienada e, de alguma forma, os movimentos populares renascerão com força e demolirão esse sistema capitalista desumano.
Hoje, não podemos dizer com certeza qual caminho o povo tomará, mas que haverá um levante, com certeza.
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“Uma ordem com igualdade e justiça social deve ser o horizonte da história”. Entrevista com Jean Ziegler - Instituto Humanitas Unisinos - IHU