25 Mai 2020
"Hoje, sob a pressão do vírus, a única maneira de as nossas sociedades se salvarem passa pela dessocialização. E também pelo sacrifício de algumas liberdades pessoais. Mas até quando isso será possível sem perder o significado mais intenso de nossa existência, que é a vida de relação?", escreve Roberto Esposito, professor da Escola Normal Superior de Pisa e ex-vice-diretor do Instituto Italiano de Ciências Humanas, em artigo publicado por Repubblica, 23-05-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Desde o início da pandemia, não se fala de outra coisa. Imunidade pessoal ou de rebanho, natural ou induzida, temporária ou permanente. Aguardam-se testes em massa para saber se já fomos imunizados pelo vírus. Perguntamo-nos se o sangue daqueles que já foram infectados pode ser usado nos doentes para imunizá-los por sua vez. Aguarda-se para ver, em quem está curado, quanto tempo dura sua imunidade - desejando que ela dure para sempre.
Mas a imunização não se refere apenas à esfera médica. Mas também àquela social e política. O que são fechamento, confinamento, distanciamento, se não dispositivos imunitários transferidos do corpo do indivíduo para o da sociedade? E a máscara não é a metáfora, colada no rosto de todos, da exigência de imunidade? Até o aplicativo que muitos aguardam, e que alguns temem, é chamado de "Immuni". O que é, de onde vem, para onde está nos levando essa síndrome imunitária que parece unificar todas as línguas do nosso tempo?
Para responder a essas perguntas, precisamos olhar para algo que nos precede muito, marcando profundamente o que estamos acostumados a chamar de modernidade. Que também pode ser entendida como um longo processo de imunização contra os conflitos e perigos que caracterizavam as comunidades anteriores. Além disso, se prestarmos atenção à etimologia latina da palavra, perceberemos que immunitas é o contrário de communitas. Ambos derivam do termo munus, que significa ofício, obrigação, dom para com os outros. Mas enquanto os membros da communitas estão unidos por esse vínculo de doação mútua, quem é imune é exonerado da mesma. E, portanto, protegido do risco que toda relação social comporta em relação à identidade pessoal. É assim no plano político-jurídico, no qual a imunidade diplomática ou parlamentar isenta das obrigações da lei comum. E assim é no nível médico-biológico, no qual a imunização, natural ou adquirida, protege contra o risco de contrair a doença. A certa altura, essa exigência de proteção - que tem a preservação da vida no centro - se generaliza para todo o corpo social. O próprio estado, como o sistema jurídico, são grandes aparatos de imunização contra conflitos que ameaçam a existência da comunidade.
Essa exigência é, portanto, longe de ser recente. Isso não significa que tenha se tornado cada vez mais urgente, até alcançar o ápice em nosso tempo. A globalização, a imigração, o terrorismo - eventos muito diferentes entre si – potencializam ao máximo a ansiedade da imunização das sociedades contemporâneas, modificando nossos comportamentos desde a raiz. Basta pensar, para mencionar outro âmbito, nos enormes e muitas vezes inúteis esforços para proteger os sistemas informáticos dos vírus que os ameaçam. Ou mesmo nas companhias de seguros, que sempre trabalharam sobre a imunização do risco. Naturalmente, a pandemia leva essa necessidade imunitária ao extremo, tornando-a o epicentro real e simbólico de nossa experiência.
Nunca como hoje - sob o ataque do coronavírus - o paradigma imunitário se tornou a pedra angular do sistema, o pivô em torno do qual parece girar toda a existência. De qualquer lado - biológico, social, político – se questione a nossa vida, o imperativo permanece o mesmo: prevenir o contágio onde quer que esteja. Claro que se trata de uma exigência real.
Nunca como hoje - enquanto se aguarda a vacina, ou seja, uma imunidade induzida - a imunização por distanciamento é a única linha de resistência por trás da qual podemos e devemos nos barricar. Pelo menos até a ameaça se arrefecer. Como nenhum corpo individual, assim nenhum corpo social poderia sobreviver por muito tempo sem um sistema imunitário. Mas não deve ser ignorado o ponto limite além do qual esse mecanismo pode operar sem produzir danos irreparáveis. Não apenas no plano econômico. Mas naquele antropológico.
A imunidade é uma proteção, mas uma proteção negativa - que nos afasta do mal maior através de um mal menor. A própria vacinação - esperamos que chegue o mais rápido possível - protege introduzindo em nosso corpo um fragmento, controlado e tolerável, do mal do qual queremos nos defender. Aliás, o termo grego "fármaco" significa remédio e veneno ao mesmo tempo. Isso também vale para o plano social. Tudo se resume em respeitar as proporções - o delicado equilíbrio entre comunidade e imunidade. O fechamento é necessário. Mas até o ponto em que a negação não prevaleça sobre a proteção, minando o mesmo corpo que deveria defender. É o que acontece nas doenças autoimunes, quando o sistema imunológico cresce a ponto de se autodestruir. Cuidado - esse limiar pode não estar longe. Hoje, sob a pressão do vírus, a única maneira de as nossas sociedades se salvarem passa pela dessocialização. E também pelo sacrifício de algumas liberdades pessoais. Mas até quando isso será possível sem perder o significado mais intenso de nossa existência, que é a vida de relação? A mesma imunidade que serve para salvar a vida poderia esvaziá-la de sentido, sacrificando à sobrevivência toda forma de vida.
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O que realmente significa a palavra “imunidade”. Artigo de Roberto Esposito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU