Um dissídio sobre a autoridade, entre Agamben e Neri: direitos e deveres em conflito. Artigo de Andrea Grillo

Foto: Unsplash

25 Mai 2020

Na nossa situação “epidêmica”, parece que as coisas se inverteram: a autoridade política e de saúde limita drasticamente a possibilidade de movimento, e a liberdade do sujeito se encontra “incluída” em um exercício de autoridade outro e soberano. Uma espécie de “primum vivere” se impõe sobre tudo e mina qualquer outro “cuidado fundamental”: amizade, trabalho, escola, culto, turismo, caminhadas são geralmente suspensas. Tudo é subordinado à proteção da “saúde pública”.

 

O artigo é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non, 24-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o artigo.

 

O tempo da pandemia acelerou formas novas e antigas de experiência e de exercício da autoridade, que levaram a uma nova “polarização” das opiniões.

 

Recentemente, duas intervenções trouxeram à tona, com grande força, essa condição “extremizada” de percepção e de elaboração do problema. Por um lado, Giorgio Agamben, em uma série de intervenções iniciadas desde fevereiro, identifica a “autoridade” como inautenticidade e renuncia aos direitos do cidadão, do estudante e dos professores: até identificar, em um recente texto, a disponibilidade dos professores às “aulas a distância” com a ‘expressão de fidelidade ao regime fascista” de 1931.

 

Do lado oposto, Marcello Neri, em um texto do dia 22 de maio, adverte contra o “consumismo dos direitos”, que corrói todo “corpo intermediário” entre o sujeito dos direitos e a fonte pública dos deveres, tornando os próprios direitos tão viscerais quanto precários e autolesivos.

 

Acredito que, para além dos tons e das afirmações decididamente discutíveis que esses fronts apologéticos podem apresentar de vez em quando – e que, neste caso, ameaçam sobretudo o texto de Agamben –, trata-se de duas posições extremas, que solicitam uma reconsideração da relação entre autoridade e liberdade, e que tocam profundamente a própria forma da vida moderna e pós-moderna.

 

A fé também é instada a refletir diante das antigas questões que a condição de pandemia, repentinamente, trouxe de volta à tona e à singular urgência.

 

1. O inesperado e o incompreendido irrompem

 

O espaço vital se contraiu, a dimensão de clausura tornou-se normal, um “fora” marcado pela proibição de aglomeração e pela proibição de saída injustificada da própria casa é percebido como uma nova e quase imemorável experiência de autoridade – que, pelas suas formas drásticas, se aproxima do “toque de recolher” bélico – e nos leva a reler com olhos diferentes o “polo” oposto ou, no máximo, recíproco à autoridade: ou seja, a liberdade, que se torna vigiada, circunscrita, esvaziada, negada e não projeta mais o seu futuro, porque não o controla.

 

O exercício dos “direitos de liberdade” do sujeito torna-se sinônimo de risco, para si e para os outros. Não será, talvez, precisamente pelo fato de que o nosso modo de ler a “autoridade” se tornou tão simplificado nos últimos dois séculos que hoje custamos tanto a redescobrir as diversas formas com que a “autoridade” nos fala em todo este caso?

 

2. A vida não se deixa domesticar demais

 

Tentemos identificar bem a questão da autoridade. Poderíamos dizer que o “senso comum” identifica por autoridade aquela força, aquele poder, aquela palavra que tem a característica de “se impor”. E que se impõe tendo sempre uma relação direta com a possibilidade de infligir uma sanção. O “monopólio da violência” é uma das características da autoridade. Essa noção de autoridade foi construída de acordo com uma evidência política nova: a autoridade é exterior à liberdade, é o seu limite externo. É “outro de mim”.

No entanto, o sentido original do termo autoridade enriquece muito essa perspectiva, que é pobre demais: a autoridade é, mais originalmente, capacidade e poder de fazer crescer. Ter autoridade é um serviço para o amadurecimento e o crescimento. E é a forma da função libertadora do “outro para mim”.

 

Aqui, porém, surge um problema típico dos tempos tardo-modernos (a partir do século XIX), nos quais se começa a pensar a autoridade como oposta à liberdade, “outra” da liberdade. Mas, na nossa situação “epidêmica”, parece que as coisas se inverteram: a autoridade política e de saúde limita drasticamente a possibilidade de movimento, e a liberdade do sujeito se encontra “incluída” em um exercício de autoridade outro e soberano. Uma espécie de “primum vivere” se impõe sobre tudo e mina qualquer outro “cuidado fundamental”: amizade, trabalho, escola, culto, turismo, caminhadas são geralmente suspensas. Tudo é subordinado à proteção da “saúde pública”.

 

Esse primado do “permanecer vivo” – que não se identifica necessariamente com a “vida nua” – nos faz descobrir novamente uma “dependência da liberdade à autoridade” que talvez tínhamos esquecido ou removido. Daí nasce a pergunta: que papel tem o outro para minha liberdade?

 

3. A autoridade e as suas formas esquecidas

 

Os sistemas de privatização da vida, que o mundo contemporâneo desenvolveu com uma velocidade e com uma finesse surpreendentes, evidenciam um paradoxo. Como é que, precisamente no mundo que dizemos que é tão individualista, privatizado, no qual vivemos isolados e distantes, como tantas mônadas, o contágio corre tão rápido? O contágio nos fala de “outro mundo” e o revela a nós: de um mundo que vive de relações e que nós vivemos, mas que não sabemos entender. Ou, melhor, que reconstruímos, na nossa cabeça, apenas como um conjunto de direitos dos sujeitos individuais. Cada sujeito tem direito à saúde, por exemplo. Mas o contágio nos diz: a saúde do outro é mais importante do que a sua. E isso é um trauma. Porque nos acostumamos a recuperar o outro como uma espécie de “apêndice caritativa”, não como a estrutura fundamental do nosso “estar bem”.

Eis aqui um caso de “infração” do código compartilhado e que se mostra tão frágil: descubro que a saúde do outro é pelo menos tão importante quanto a minha. O que significa que cuidar da saúde do outro é o único modo para defender a minha saúde. A fúria do contágio, no seu aspecto devastador, esconde esse lado inesperado: em todo contagiado curado, está curada a infinita série de possíveis contagiados que nele teriam encontrado a oportunidade de adoecer. “Ficar em casa” não é apenas “nos salvar do outro”, mas ainda mais “salvar o outro de nós”.

 

4. Teologia do vírus, entre autoridade e liberdade

 

É falso que existe uma correlação entre “aquilo que a doença faz” e “aquilo que Deus quer”. O argumento apologético clássico, pelo menos dos nossos últimos 200 anos, insiste, de modo quase obsessivo, nessa correlação: somos limitados, somos impotentes, somos redimensionados pelo vírus, assim aprendemos algo sobre Deus. Mas é exatamente isso?

Não existe, sob esse argumento, o mesmo mecanismo que, bem no fundo, faz do vírus um instrumento de Deus? Que instrumentaliza o vírus em função teológica e Deus em função social? Uma apologética do homem “viciado em liberdade”, que recebe o tapa do vírus e, paternalisticamente, se redimensiona, absolutamente não me convence. Não pode ser assim. A nossa renúncia social à liberdade hoje é, por sua vez, o fruto de uma acurada elaboração da liberdade. E o divino não está na liberdade perdida, mas sim na liberdade reorganizada. Que experimenta a autoridade em níveis mais complexos e mais articulados.

A pandemia nos coloca diante de uma maior complexidade do mundo, do eu e de Deus, que não compreendemos “recuando”, voltando a uma apologética do limite ou a uma teodiceia antiliberal, mas apenas avançando, atravessando a terra da liberdade que novamente se torna deserto, mas que tenta reencontrar e reconstruir a estrada e a cidade. E sabe que só pode haver “estradas comuns”.

Assim, o vírus pode ter “autoridade” se nos permite descobrir, de formas surpreendentes, quantas relações vivemos habitualmente, sem que sequer nos demos conta disso ou, até, em um mundo que faz de tudo para que o esqueçamos.

 

E eis, então, uma “conjugação” da autoridade que soa nova para nós: se o fato de “não adoecer” depende não simplesmente da nossa moralidade, do nosso “comportarmo-nos bem”, mas sim da saúde dos outros – essa é a verdade escondida em todo contágio –, a gestão pública do “bem comum” não pode mais ser considerada o resultado da composição “livre” das iniciativas dos indivíduos. O liberalismo perde, assim, toda autoridade. Entre liberdade e liberalismo, cria-se uma distância nova, uma estranheza inesperada.

Mas, neste nosso tempo, quem realmente exerce a autoridade? A sociedade parou, exceto a saúde, a ordem pública, a “cadeia alimentar” e os serviços básicos (água, luz, gás, estradas, ferrovias, telefone, televisão...). Comer, beber, ser cuidado e ser defendido. Acrescenta-se a isso tudo aquilo que se pode fazer “a distância”: pagar uma dívida, explicar uma lição, solicitar um certificado, fazer uma lição de casa e até tocar uma sinfonia. Certamente, com limites. Esse retorno aos “bens primários” é sempre instrutivo.

 

Entre essas necessidades primárias da vida, no entanto, há também a morte. Uma sociedade que luta pela vida também deve “saber morrer”. Não no sentido homérico da virtude, mas sim no sentido cristão da companhia e da partilha daquilo que é indisponível, porque está antes de mim e depois de mim.

 

5. Três sujeitos de autoridade: o outro, o eu e Deus

 

Portanto, voltamos a três experiências elementares de autoridade:

- o outro de mim que se impõe, como autoridade política;

- o outro para mim que me dispõe, como autoridade ética;

- o outro acima e abaixo de mim, que me compõe, como autoridade da graça.

 

No entanto, as experiências política, ética e religiosa da autoridade não são totalmente transparentes entre si, nem mesmo totalmente comunicantes. Não se pode dizer integralmente uma nos termos da outra.

E é aí que o regime de pandemia nos surpreende. Porque nos mostra, de uma forma quase imemorável, proximidades impensadas ou distâncias assustadoras entre essas três experiências, das quais todos radicalmente não só precisamos, mas desejamos de modo irreprimível. A longo prazo, nenhuma contenção pode resistir a essa irreprimível dinâmica da autoridade, que é necessidade e desejo de imposição, de disposição e de composição. Isso corresponde, singularmente, a uma experiência de liberdade, perfeitamente paralela às três experiências de autoridade. O outro de mim que se impõe não apenas me esmaga, mas me permite ser eu mesmo; o outro para mim, que “me forma” e “me dispõe”, me alcança agora pelas vias mais complexas, menos diretas, mediadas pela mídia, até onde pode. O outro acima e abaixo de mim, o intimior intimo meo e o omnipotens, o “me compor”, se esconde e se revela, como sempre, mas sob formas novas. E libera a minha capacidade de reconhecer os dons com uma força diferente, certamente mais frágil, mas talvez mais autêntica e menos mediada.

 

A condição extrema desse tempo “recluso” reordenou as prioridades e as experiências, da autoridade do outro e da liberdade do eu. O outro é, ao mesmo tempo, mantido à distância e reassumido como horizonte do desejo. O eu é confiado a si mesmo de modo mais radical e mantido à distância muito mais duramente.

Deus, como síntese de si e do outro, parece desaparecer do quadro e, ao mesmo tempo, retornar como horizonte, por vias inesperadas e surpreendentes: mais como brisa leve do que como furacão ou terremoto ou fogo devorador.

 

6. Uma reconsideração final

 

À luz do breve percurso percorrido, parece-me que se devam considerar as advertências levantadas por Agamben e por Neri, na sua oposta polaridade, como uma “correção recíproca” do olhar.

Por um lado, o exercício da autoridade de acordo com o “estado de exceção” é um risco, mas pode ser justificado por condições contingentes: a suspensão do ensino “em presença” também interrompe muitas boas práticas irrenunciáveis em longo prazo, mas renunciáveis em curto ou médio prazo, em vista de um bem maior. Não são um “requiem”, mas sim um “nunc dimittis”. A exceção parcial pode nos fazer reelaborar com maior força a regra geral da universidade e da cidade universitária.

 

Por outro lado, o consumismo dos direitos, na sua mera exterioridade sem autoridade que não a própria, também deve considerar que o “consumo dos direitos” é figura qualificadora da sociedade aberta, na qual o registro apologético do chamado ao “dever” está sempre exposto à captura moralista, tão típica da tradição eclesial dos séculos XIX e XX.

Em outras palavras, a reivindicação do “espaço intermediário”, assegurado pelas “comunidades” – espaço menos do que público e mais do que privado – deve saber preservar justamente as novas evidências privadas e públicas, que não se deixam compreender simplesmente no registro negativo da “autorreferencialidade” ou da “exterioridade”. Há um perfil do bem comum que só pode ser garantido pelo público e pelo privado, até mesmo “contra” as lógicas comunitárias.

 

Por isso, o apelo exasperado dos direitos originais contra os deveres opressivos, ou dos deveres fundamentais contra os direitos dispersivos, reconstrói o panorama civil e eclesial de acordo com novos mapas surpreendentes. No mapa geográfico da Igreja em pandemia, vimos que as razões de Agamben podem ser usadas para fazer objeção de consciência à Comunhão na mão (em defesa de um suposto direito à Comunhão “na língua”) e as sacrossantas razões de Neri podem ser facilmente inclinadas a uma crítica de público e privado, com a evocação de um modelo de “communitas” cujo centro não é a “pessoa concreta”, mas sim um modelo “velho” de relação entre Estado e Igreja.

Talvez, para ambas as posições, o ideal “anti-idólatra” polarizado – ou seja, a luta contra a opressão da biopolítica e a luta contra a formalização público-privada da democracia – venha de esquemas teológicos nos quais a pandemia nos pede um trabalho ulterior.

 

Em certo sentido, e com muito respeito, um ideal hipermoderno (em Agamben) e antimoderno (em Neri) constituem registros de clássica “advertência”, que a condição de pandemia parece ter desgastado e condenado a uma crise que exige a elaboração de novas categorias.

 

Leia mais