"Agora, o sujeito mascarado é o cidadão exemplar, e aquele que se recusa ou esquece de utilizar a máscara passa a ser visto como um sujeito perigoso, mau cidadão, desrespeitoso com as leis. A pandemia mascarada derrubou, qual um furacão social, um modelo jurídico-político de controle social, simbolizado pela proibição das máscaras nos espaços públicos. Em seu lugar, se impõe de forma abrupta e irrestrita a utilização da máscara como novo símbolo da cidadania", escreve Castor M.M. Bartolomé Ruiz, doutor em Filosofia, professor titular do Programa de Pós-Graduação de Filosofia da Unisinos, coordenador da Cátedra Unesco-Unisinos de Direitos Humanos e Violência, Governo e Governança e coordenador do Grupo de Pesquisa CNPq Ética, Biopolítica e Alteridade.
Durante a pandemia publicaram-se uma série de artigos sobre a utilização da exceção na pandemia. Notadamente, Giorgio Agamben tem publicado vários artigos críticos em relação às formas de exceção na pandemia, os quais suscitaram diversas e calorosas reações a respeito de suas posições. O objetivo deste texto não é tomar posição nesse debate, mas contribuir com uma reflexão, talvez periférica ou preliminar, a respeito da relação entre exceção e pandemia.
A pandemia impôs o estado de exceção como norma. O normal, na pandemia, é a exceção. Quase todos os países afetados, que são a maioria, decidiram decretar medidas de exceção, como meio para controlar, minimamente, a pandemia. A denominação utilizada para os decretos de exceção é muito variada: decretos de emergência, decretos de calamidade pública, estado de exceção sanitária, simplesmente estado de exceção, e até foi decretado estado de sítio em algumas cidades. É importante olhar além da diversidade de fórmulas jurídicas através das quais se impôs a exceção na pandemia, a fim de entender as implicações deste dispositivo biopolítico de controle de pessoas e populações. Para tanto, propomos analisar neste texto: 1. o que é a exceção?; 2. como afeta a exceção à pandemia; 3. como a exceção pode se tornar a norma; 4. a pandemia mascarada.
Como é sabido, o dispositivo da exceção opera uma suspensão dos direitos fundamentais, não sua negação. Ela não nega os direitos, só suspende sua validade. Na suspensão dos direitos, estes ficam vigentes na pura letra da lei, porém não têm validade porque sua eficácia está suspensa. A exceção não nega os direitos, só os suspende. Este artifício da suspensão permite que a exceção seja uma figura do Estado de direito, porque ela não nega os direitos fundamentais, só interrompe sua validade durante o tempo da exceção. De modo artificioso, e por não negar intrinsecamente os direitos fundamentais, a exceção é incorporada ao Estado de direito como parte do direito, embora ela suspenda a validade desse mesmo direito em circunstâncias excecionais.
Então, se a exceção erode tão drasticamente os direitos fundamentais ao suspender sua validade, por que ela é contemplada como figura do Estado de direito e das democracias contemporâneas? A resposta é que há ocasiões excecionais, em caso de necessidades extremas, que é necessário suspender direitos fundamentais para aumentar o poder de decisão de uma autoridade constituída e, através desse aumento extraordinário de poderes que a exceção lhe outorga, ela possa com maior eficácia atalhar a solução dessa necessidade extrema. É a necessidade que justifica social e juridicamente a exceção.
A exceção, pelo artificio da suspensão dos direitos, provoca uma dupla distorção do poder. De um lado, a exceção aumenta os poderes da autoridade constituída que, ao suspender os direitos, imediatamente transfere para si um poder excecional de governar por vontade soberana com decretos que não necessitam atravessar as instâncias das democracias formais. Na exceção, o governante se torna “soberano”, já que concentra sobre si o poder de decidir arbitrariamente sobre o vazio de direitos que a exceção provocou. A exceção, ao suspender os direitos, cria um vazio jurídico, uma zona de anomia, a qual é imediatamente ocupada pelo poder soberano do governante de turno. Este adquire a capacidade de emitir decretos lei, que são decretos de exceção que invadem, deste modo, o vazio jurídico da exceção com a decisão soberana.
Mas, a exceção também produz um outro efeito sobre a vida daqueles que a sofrem através da suspensão de direitos fundamentais. Ao decretar a exceção, a vida de quem sofre o decreto perde, de imediato, direitos fundamentais. Com isso, sua vida cai numa zona de anomia, tornando-a uma vida fragilizada, vulnerável à vontade soberana do governante que decretou a exceção. A esta vida vulnerável à vontade soberana no estado de exceção Walter Benjamin chamava-a de vida nua, Agamben a denomina de Homo Sacer. A condição de vida vulnerável e fragilizada, sem direitos, permite que ela seja também uma vida mais facilmente controlável. Na exceção, a vida nua está exposta à decisão arbitrária do governante que age por vontade soberana e por isso é uma vida amedrontada. O amedrontamento, o medo, é uma das consequências perseguidas pelos decretos de exceção. A vida nua, que sobrevive no amedrontamento, que tem medo de ser multada, castigada, presa e até perseguida, essa vida será uma vida que se submeterá docilmente aos decretos soberanos. A vida amedrontada pelo medo é mais submissa à vontade dos governantes. Por isso, a exceção é, essencialmente, uma tecnologia biopolítica de governo de pessoas e populações.
Se a exceção tem esse impacto tão agressivo sobre a vida das pessoas, por que se aceita socialmente a exceção? Ou, quando deve ser aceita socialmente a exceção? A exceção é um dispositivo biopolítico paradoxal. Esse caráter paradoxal possibilita que ele seja social e juridicamente aceito, porque em ocasiões ele é necessário. Uma das primeiras consequências do caráter paradoxal da exceção é que, apesar do vazio jurídico que provoca, em ocasiões se torna necessário como meio para solucionar situações críticas e graves na dinâmica das sociedades, por isso é excecional. Se a exceção fosse um dispositivo intrinsecamente perverso, como a escravidão ou a tortura, bastaria suprimi-lo de todas as constituições e fórmulas jurídicas e com isso desapareceria. Porém, o paradoxal é que há ocasiões em que a exceção é necessária.
A atual pandemia do coronavírus trouxe uma realidade extremamente complexa de ser entendida, gerenciada e enfrentada. Uma das principais características deste vírus é seu alto contágio e, em muitos casos, alta letalidade. A rapidez do contágio permite uma disseminação descontrolada e crescente em escala geométrica. Segundo o consenso da maioria dos infectologistas e epidemiologistas, como única alternativa para neutralizar, minimamente, esse alto contágio, até se encontrar uma vacina, seria manter um isolamento individual. Mas como fazer isso? Todos os países entenderam que a única fórmula eficaz era decretar o isolamento mediante medidas impositivas, excecionais. Com base nesse entendimento, os decretos de exceção proliferaram por todo o planeta como a técnica mais plausível de enfrentar a pandemia.
Se entendemos que a exceção é intrinsecamente paradoxal, a pandemia parece ser um desses momentos de extrema necessidade em que a exceção se torna necessária como único meio de evitar uma catástrofe de mortes em grande escala. A suspensão de direitos fundamentais como ir e vir, a quarentena compulsória imposta em muitos países, o fechamento de atividades comerciais e lúdicas, a obrigação de utilizar máscaras, a exigência de isolamento social, a imposição do distanciamento, o fechamento de fronteiras, entre outros, são atos de exceção que impactaram enormemente a vida de milhões de pessoas ao longo do planeta. As estatísticas mostram que esses dispositivos excecionais evitaram milhares, talvez milhões de mortes, pois países e governantes que não os adotaram tiveram e estão tendo mais altas taxas de letalidade na pandemia.
O paradoxal da exceção é que sendo necessária em ocasiões (excecionais), e dada sua eficiência no governo da conduta das pessoas, há um forte tendência histórica a fazer da exceção uma norma, ou seja, a tornar os dispositivos de exceção técnicas habituais de governo da vida das pessoas. O paradoxo da exceção habita já no próprio discurso científico que o embala.
Todas essas medidas excecionais, mais uma vez, foram determinadas pelas verdades aceitas do discurso científico. Nossa cultura tecno-científica consolidou uma espécie de fé religiosa no discurso científico, proferido por seus sacerdotes, os médicos-cientistas de turno. Mas, por ser um discurso científico, nos resulta difícil de perceber que as verdades deste discurso também têm limites. Um dos problemas desta pandemia é que não conseguimos avaliar os limites do discurso médico-biológico sobre o modo como é concebida a vida humana reduzida a mera biologia, sem considerar que a vida humana é mais que biologia, é uma forma-de-vida, uma existência que integra como vida tudo o que faz parte do seu viver. Agamben, em seu artigo “Uma pergunta” chamou certeiramente atenção sobre o reducionismo biologista da vida na pandemia, que exigiu como verdade médica que os pacientes sofressem e morressem em pura solidão, que fossem enterrados anonimamente, provocando uma dor dupla: a da morte simbólica do sentido da vida. Hoje se percebe que muitos destes procedimentos foram impostos por inexperiência ou por medo, e trazem questionamentos para nossa dócil submissão às supostas verdades do discurso da ciência como se fossem verdades absolutas.
Para alertar da necessidade de uma leitura crítica dos discursos científicos sobre a vida humana, lembremos que os principais assessores dos campos de extermínio nazistas eram cientistas, e que em todos os porões de tortura em América Latina havia médicos qualificados que orientavam os procedimentos corretos de torturar sem matar, e que os presos de Guantánamo são torturados, até hoje, com orientação de psicólogos. A ciência não é um discurso neutro nem abstrato, suas verdades têm muitas nuanças a serem exploradas. A ciência, neste caso a ciência médica da pandêmica, pode ser um discurso instrumentalizado para legitimar novos dispositivos biopolíticos de controle social. Aqui fica um campo aberto para discussões futuras.
A condição paradoxal da exceção indica que o problema não reside em decretar a exceção em caso de necessidade, senão que a condição paradoxal da exceção percorre uma linha cinza na qual se pode decidir arbitrariamente quando há uma necessidade ou não de exceção. Como há uma larga margem para decidir o que é necessidade urgente ou quando há realmente uma necessidade que justifique a exceção, a decisão sobre quando é necessária a exceção é uma decisão também do poder soberano. Ou seja, que se pode decidir com certa arbitrariedade quando há realmente uma necessidade da exceção ou não. Nesse caso, a decisão sobre a exceção pode esconder outro tipo de motivações, entre elas conseguir esse poder excecional que possibilita um controle de pessoas e populações para consolidar um domínio autoritário sobre eles. A exceção é o dispositivo biopolítico mais eficiente para instaurar novas formas de autoritarismo.
Esta margem cinza da exceção é a que diferencia as posições críticas de Agamben em relação aos dispositivos de exceção da pandemia, das posições negacionistas da pandemia como as dos presidentes dos EEUU, Donald Trump, ou do Brasil, Jair Messias Bolsonaro. Agamben, em vários artigos, tomou posturas críticas a respeito dos dispositivos da exceção implantados na pandemia por considerá-los exagerados e desnecessários. Sem entrar no mérito de seus argumentos, consideramos pertinente marcar a diferença entre esta postura crítica de Agamben e a postura negacionista de Trump ou Bolsonaro. Estes simplesmente negam que a pandemia seja uma doença grave porque querem preservar a lucratividade econômica do sistema capitalista. O negacionismo argumenta que a opção é entre a “bolsa” ou a vida, num sentido literal, e eles optaram por defender a bolsa a custa de milhões de vidas humanas.
A condição paradoxal da exceção possibilita sua maleabilidade, podendo ser instrumentalizada como tecnologia biopolítica de controle social, muito além da pandemia. A desconfiança da utilização da exceção de forma tão ampla e generalizada em tempos de pandemia advém da impossibilidade de evitar a utilização da exceção como dispositivo biopolítico de controle social para outros muitos fins, além do controle da pandemia.
Uma vez decretada a exceção e outorgados poderes especiais a um governante, retirando a vigência de direitos fundamentais da vida das pessoas, não há como prever que esses poderes soberanos se limitem estritamente aos objetivos a pandemia. Essa desconfiança crítica da utilização da exceção se justifica, tanto pela história passada, como pela realidade presente. A história mostra que uma boa parte dos dispositivos de poder modernos foram oriundos de técnicas biopolíticas utilizadas para controle de doenças. A pandemia tem legitimado a utilização de um conjunto de sofisticados dispositivos tecnológicos de controle da vida dos cidadãos. Inúmeros países têm exigido a todas as pessoas que deram positivo do coronavírus, que baixassem em seus celulares um aplicativo a partir do qual se mantém um controle estrito de seus movimentos, quando essa pessoa chega perto de outras, imediatamente se mandam mensagens advertindo às pessoas que um elemento perigoso está se aproximando. Em Cingapura, por exemplo, foi desenvolvido o aplicativo TraceTogether, que rastreia os movimentos dos contatos próximos de cada um, e avisa quando um contato contraiu a infecção.
Como houve medidas de confinamento estrito, independentemente de estar ou não contaminado com o coronavírus, o mesmo aplicativo poderia disparar uma mensagem de alarma em uma central de controle, advertindo que um determinado indivíduo tinha atravessado uma determinada distância permitida de seu círculo de distanciamento. A China lançou o aplicativo HealthCheck, que é instalado pelos sistemas de conversação mais habituais utilizados na China como WeChat e Alipay, e gera um código de saúde em cores graduais verde, laranja e vermelho; a liberdade de movimento das pessoas depende da cor que aparecer no seu celular. Também se desenvolveram programas e tecnologias para verificar em tempo real e em grande escala a mobilidade de grupos populacionais.
Estas, entre outras técnicas biopolíticas de controle social, só puderam se experimentar em grande escala porque houve um consentimento generalizado de sua necessidade em tempos de pandemia. Ao mesmo tempo, a pandemia possibilitou comprovar a eficiência dessas medidas como técnicas de controle social da cidadania. Não é possível verificar o alcance futuro destas medidas de exceção, uma vez terminada a pandemia. Historicamente se sabe que as atuais técnicas de policiamento da população são oriundas das técnicas utilizadas para o controle dos apestados do século XVII. Antes do século XVII não havia polícias que controlavam as populações, depois das pestes se comprovou que as técnicas de policiamento dos apestados eram muito úteis para policiar também o comportamento dos cidadãos. A técnica do registro das impressões digitais foi criada pelo médico Francis Galton (que também idealizou o conceito de eugenia social), no final do século XIX, para controlar presos muito perigosos, e uma vez comprovada sua eficiência foi aplicada como técnica de controle obrigatório para todos os cidadãos.
A pandemia legitimou um desenvolvimento de sofisticadas tecnologias de controle de vida e dos movimentos das pessoas, cuja eficiência foi comprovada em escala planetária. A implementação desses controles sociais tão estritos só foi possível porque houve medidas de exceção que legitimaram socialmente sua implantação e experimentação. A pandemia, independentemente de outras valorações, está sendo um grande laboratório de experimentação de técnicas biopolíticas de controle social, que em tempos de “normalidade” não poderiam ser implantadas. Uma vez realizado o experimento laboratorial da eficácia do controle social das novas tecnologias, fica a suspeita fundada de que num futuro próximo só restará encontrar argumentos que legitimem aplicá-las como dispositivos normais da convivência cidadã para maior segurança de todos. A segurança foi o dispositivo que desde o século XVII serviu para legitimar a implantação de sucessivas tecnologias biopolíticas de controle social. Em nome da segurança a exceção se torna norma, e o excecional é vivido como nova normalidade.
Não deverá nos surpreender demasiado se a nova normalidade da pós-pandemia, anunciada por todos os lados, normaliza as tecnologias de exceção como novas técnicas por sua vez normalizadoras dos comportamentos sociais, em prol da maior segurança de todos, obviamente. Essa prospecção não é tão imprevisível se pensamos que já durante a pandemia muitos governantes investidos de poderes excecionais aproveitaram para decretar medidas colaterais contra adversários políticos ou inimigos sociais. Assim o presidente Trump, aproveitando os poderes que o decreto de Estado de Emergência lhe outorgava, decretou arbitrariamente, e por primeira vez na história dos EEUU, a proibição de entrada de imigrantes durante um período de tempo. O presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, decretou que a polícia e militares disparassem a matar contra todos aqueles que desobedecessem as ordens. O governo do Chile aproveitou a pandemia para decretar rapidamente a exceção que proibisse todas as manifestações políticas, inclusive em alguns bairros e cidades foi decretado estado de sítio, já que o governo estava em uma situação crítica de ter que convocar uma nova constituinte. O governo do Egito utilizou os poderes excecionais conseguidos pelo decreto da pandemia para promover uma perseguição sistemática contra os opositores políticos, impedidos de mobilização pública. Na Hungria, o parlamento aprovou uma lei de exceção que outorgou poderes extraordinários sem limites de tempo e sem controle parlamentar ao presidente de extrema direita Viktor Orban. A Índia decretou uma lei para utilizar uma tinta indelével em todos os que derem positivo do coronavírus, marcando-os socialmente como apestados. Inúmeros governos, como o de Polônia, estão aproveitando a pandemia para decretar leis excecionais que permitam o acesso aos dados pessoais dos celulares e das redes sociais, rastreando o comportamento dos usuários. No Brasil se aprovou um orçamento de guerra, como medida excecional da pandemia. Esse orçamento de guerra viabiliza, entre outras coisas, que o Banco Central possa adquirir dívida privada, ou seja, que os bancos ou outros agentes do capitalismo financeiro poderão vender dívidas podres ao setor público, recebendo dinheiro de todos os cidadãos e entregando papéis podres que ocasionarão um grande prejuízo público.
Um dos episódios mais simbólicos da normalização da exceção como dispositivo de controle social é a utilização das máscaras. Talvez porque sempre estejamos sendo empurrados ao esquecimento, para melhor controle de comportamentos, deveremos lembrar como em tempos muito recentes foram decretadas duras medidas de exceção contra a utilização das máscaras em público. Por que era isso? O Brasil criou uma legislação específica contra a utilização das máscaras e até dos capacetes, a partir das manifestações políticas ocorridas em 2013 que levaram o país a uma grave crise social. A utilização de máscaras era vista como um símbolo de baderneiros sociais que atentavam contra a ordem estabelecida. Por isso, sua proibição era uma exigência necessária para ter o controle dos rostos dos manifestantes. As novas tecnologias de identificação facial possibilitam o controle de cada indivíduo em grandes concentrações, para isso é necessário proibir a utilização de máscaras. Essa problemática não é exclusiva do Brasil. A França, desde 2010, decretou a proibição da utilização das máscaras nos espaços públicos. A Espanha também criou uma legislação específica ao respeito, quando do grande movimento de protestos sociais chamado 11M (11 de março). EEUU decretou a proibição das máscaras por motivo dos protestos de Ocupa Wall Street. Canadá, em 2013, também introduziu a proibição das máscaras nas manifestações públicas. Em setembro de 2019, Chile aprovou a proibição das máscaras nos espaços públicos, porque havia uma onda de manifestações por todo o país que exigia a renúncia do presidente Piñera. Alemanha desde 2002 proíbe a utilização de máscaras nos atos sociais. Reino Unido, por motivo das manifestações em 2011 contra as medidas de austeridade, decretou a proibição da utilização de máscaras nos espaços públicos. Estes exemplos são uma pequena amostra de quanto a máscara se tornou o símbolo da subversão moderna, perseguido como perigoso em inúmeros países. Em muitos casos, a proibição, sendo uma lei parlamentar comum, vinha associada a medidas de exceção.
Resulta irônico perceber como, em poucas semanas, a pandemia derrubou de forma geral e irrestrita todas as legislações contra as máscaras. No lugar da proibição, as novas medidas de controle social da pandemia exigem a utilização da máscara. A máscara, agora, é um símbolo de cidadania e de bom comportamento. Antes, quem ia mascarado era um sujeito perigoso que deveria ser vigiado e até preso. Agora, o sujeito mascarado é o cidadão exemplar, e aquele que se recusa ou esquece de utilizar a máscara passa a ser visto como um sujeito perigoso, mau cidadão, desrespeitoso com as leis. A pandemia mascarada derrubou, qual um furação social, um modelo jurídico-político de controle social, simbolizado pela proibição das máscaras nos espaços públicos. Em seu lugar, se impõe de forma abrupta e irrestrita a utilização da máscara como novo símbolo da cidadania.
Talvez não possamos extrapolar muito além do simbolismo irônico o mascaramento generalizado exigido pela pandemia, como contraponto à obsessão social por controlar o rosto dos manifestantes nos espaços públicos. Mas também é verdade que a proibição da máscara era consequência dos modelos de luta social em grandes manifestações, enquanto a pandemia impôs o isolamento social e o distanciamento como a nova forma política de conviver. No isolamento e no distanciamento da pandemia, a máscara não representa mais um perigo político. Será que a nova normalidade vai conseguir impor o distanciamento e isolamento como ideal de nova relação política de toda a cidadania?
Os sofisticados dispositivos tecnológicos de controle mostraram que não precisam da visualização do rosto para manter uma estreita vigilância dos comportamentos, mas, talvez, a máscara da pandemia esconda a nova onda de dispositivos que na “nova normalidade” possibilitarão um controle mais capilar dos cidadãos. Nesse mascaramento de dispositivos de controle desenvolvidos no laboratório da pandemia podemos destacar, como exemplo, o novo acordo entre o Ministério de Ciência e Tecnologia do Brasil e as operadoras de telefonia que prevê a cessão dos dados de geolocalização dos aparelhos celulares para identificar as aglomerações de pessoas. Ou, a notícia publicada pelo historiador Harari no Financial Times, que o governo de Israel autorizou utilizar os mesmos programas de rastreamento de terroristas para localizar suspeitos de contágios. Ou, que a Coreia do Sul exigiu de seus cidadãos requisitos mínimos para rastrear os contatos, agora em dez minutos localizam a qualquer cidadão. A pandemia está mascarando os ensaios de controle biopolítico como se fossem exigências necessárias para saúde pública.
Há uma indefinição estratégica entre o que é saúde pública e o controle social. Essa zona cinzenta de indefinição possibilita mascarar os dispositivos tecnológicos de vigilância como se fossem exigências necessárias para controle da pandemia. O ponto crítico que a pandemia parece estar mascarando é a eficácia da própria pandemia como modelo de controle social. Há uma alta probabilidade que de agora em diante se instaure uma espécie de “estado de pandemia permanente”, que viria a ser um substituto semântico e político do estado de exceção normalizado. A maioria das pessoas se sentem presas ao discurso científico, tendo que acreditar dogmaticamente nas verdades por ele produzidas, como se fossem novos transcendentais da sacralização da vida sobre os quais os únicos que têm domínio e conhecimento são os médicos, biólogos, infectologistas, etc. Custa perceber o limiar no qual o próprio discurso médico-científico se transfere para a biopolítica através dos novos dispositivos securitários. Assim como no século XIX a biologia foi a ciência que alicerçou nas universidades o darwinismo social e as políticas eugenésicas do melhoramento científico das raças para ajudar na suposta evolução natural das espécies, agora o discurso científico da pandemia pode ser instrumentalizado como novo marco político da biossegurança.
A pandemia parece oferecer o marco perfeito de um discurso científico que legitime um novo “estado securitário de pandemia permanente”. O terreno está propício para que a exceção se torne norma. O mascaramento da pandemia tenta ocultar que a proibição ou exigência de determinados comportamentos continuam vinculados à “doutrina” da segurança e sua utilização de dispositivos de exceção para o controle social de pessoas e populações. Este seja, talvez, o limiar crítico ao que deveremos prestar uma atenção redobrada no futuro que se nos apresenta.