08 Mai 2020
D. Bruno-Marie Duffé (Lyon, 1951) é uma personalidade de reconhecido prestígio mundial, especialista em questões de ética médica, imigrantes, direitos humanos, mediação, economia ou inclusiva ação humanista e secretário do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, o dicastério preferido do próprio Papa. Nesta entrevista exclusiva assegura que, depois da pandemia, será firmado um novo contrato social, no qual, seguindo a estrela de Francisco, “o menos pode ser mais”. A seu ver, se abrirá no mundo “um novo tempo de espiritualidade” e uma Igreja que caminhará, cada vez mais, “em direção a uma comunidade de irmãos”, com “novas formas de ministério” e nas quais “as reformas do Papa serão cada vez mais úteis e determinantes”.
A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada por Religión Digital, 06-05-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Como a sociedade está percebendo o envolvimento da Igreja e o papel que desempenha na pandemia? Está cumprindo sua função social?
Antes de tudo, temos que especificar o que chamamos de Igreja e o envolvimento da Igreja. É claro que a Igreja (Católica) se apresenta e vive, em nosso tempo, de maneiras diferentes. Devemos falar da relação de proximidade em uma paróquia, um movimento de reflexão ou oração. Mas também devemos falar da Igreja como uma referência moral em nosso mundo ou do papa Francisco como uma autoridade espiritual de comunhão... cada dimensão da Igreja oferece uma presença particular no mundo de hoje. E pode-se dizer que, nesse contexto de pandemia, o envolvimento da Igreja começou com o cuidado e a proximidade com as famílias, nos bairros, com as crianças ou os idosos. A dimensão espiritual e a dimensão social da Igreja parecem muito próximas e poderíamos fazer uma referência às primeiras comunidades do cristianismo, quando se diz que os cristãos se reuniam em suas casas para orar, compartilhar pão e seus bens entre aqueles que precisavam de ajuda. (Cf. Atos dos Apóstolos, 2, 42). Nesse sentido, com a pandemia, vivemos uma experiência que nos faz revisitar nossos fundamentos comunitários.
Por que a Igreja não conseguiu, enquanto instituição, visibilizar bem sua luta contra a pandemia e não pode, e nem tentou, romper o teto dos grandes meios de comunicação, especialmente as televisões?
Não sei se entendi bem sua pergunta. O que quer dizer: “visibilizar sua luta contra a pandemia” e “romper o teto dos meios de comunicação”? A Igreja não tem o papel de organizar uma luta sanitária, como fez no passado, com os hospitais, hospícios... A missão da Igreja é primordialmente o apoio que pode dar a todos os atores principais do cuidado e da solidariedade. Muitas organizações – rede de Cáritas, por exemplo – mobilizam-se cotidianamente, junto a outros ativistas humanitários. Isso fala mais que os discursos, porque essa foi a maneira de Jesus viver como próximo aos que sofrem.
Ademais, há muitos cristãos presentes e ativos nos trabalhos e responsabilidades do mundo da saúde. E é preciso falar da presença dos que acompanham aos e as que morrem, às vezes distantes de suas famílias. Quero dizer também que o testemunho e as mensagens do papa Francisco verdadeiramente romperam com o teto dos meios de comunicação, para expressar seu afeto tanto à humanidade doente como aos que cuidam dos doentes até “dar sua vida” por eles. O Papa disse que esses cuidadores “são o Evangelho da vida”. As chamadas do Papa para investir em saúde e solidariedade o dinheiro destinado à compra de armas e para anular a dívida dos países mais pobres não podem deixar ninguém indiferente. A imagem deste Papa, só, na Praça São Pedro, na sexta-feira santa, fala por si só: na noite da Paixão e da solidão, faz-se presente o Bom Pastor, e a Igreja com ele.
Crês que a Igreja institucional formará parte do novo contrato social que parece estar se tecendo?
Muitos atores da sociedade internacional e das instituições políticas estão esperando – nos dois significados do verbo “esperar” – conselhos e, às vezes, uma luz moral para construir – ou reconstruir – o contrato social nesse momento. Mas isso não é novidade. Quando o papa João XXIII falou da paz (Cf. “Pacem in terris”, 1963), incluindo os direitos humanos e contra as armas... Quando Paulo VI falou do desenvolvimento integral como a outra maneira de pensar sobre o futuro da comunidade humana (cf. “Populorum progressio”, 1967)... Quando Francisco fala de um novo modelo de desenvolvimento que respeita a terra, a dignidade dos mais pobres e a biodiversidade (cf. “Laudato si”, 2015), a Igreja , com seus pastores, oferece sua contribuição para a elaboração de um contrato social pacífico. O maior desafio é mudar nossa maneira de viver, romper com o individualismo e passar do “ainda mais” (que esgota a natureza e a humanidade) para uma vida mais sóbria, com vontade de compartilhar e ser feliz com pouco. “Menos pode ser mais”, diz Francisco. É a condição de um Menos pode ser mais e um compromisso com o futuro da vida em nosso planeta.
A crise do coronavírus está fazendo aflorar o lado religioso de muita gente, até então escondido? Os indiferentes religiosos voltarão ao catolicismo ou irão definitivamente em busca de novas espiritualidades?
É preciso escutar cada pessoa em sua sede espiritual pessoal. Algumas pessoas buscam uma espiritualidade que lhes permita viver um novo relacionamento com os elementos da natureza e um novo equilíbrio físico e mental. Devemos ouvir isso e propor uma espiritualidade de comunhão entre todos os seres vivos, Deus e consigo mesmo. Não acho que existem muitos indiferentes, porque as questões de sofrimento, vulnerabilidade e morte tocam a todos. O catolicismo não tem uma explicação para todos os enigmas do nosso mundo. Oferece confiança e esperança. Deus criador quer dar amor a todos os seres vivos que ele criou e que deseja associar à sua criação, para continuar. Jesus, o Filho de Deus, quer dar uma vida plena aos homens, seus irmãos.
O Espírito Santo, que é a inspiração e o sopro de Deus Pai, é oferecido a todos que têm coração e inteligência abertos. Portanto, temos que levar em consideração a sede espiritual e religiosa daqueles que vivem conosco e simplesmente compartilhar com eles nossa fé e nossa humanidade. Nossa atenção ao outro fala de nossa convicção interior. Agora, parece que vamos viver um novo tempo de espiritualidade, porque você não pode viver - ou sobreviver - apenas para consumir. Todos procuramos um motivo para viver e é vital respirar novamente. Por esse motivo, “ecologia integral” inclui saúde, cuidados com o meio ambiente e a terra, mas também com a vida emocional e espiritual.
O medo da morte que recorre o corpo social encontrou na Igreja um sentido, o consolo e a esperança? Sem possibilidade de realizar funerais, perdeu a Igreja o último rito de passagem que lhe restava?
Os ritos são de grande importância na vida pessoal e coletiva. Eles permitem que você expresse coisas que as palavras nem sempre podem dizer. O símbolo da flor que entregamos é muito mais do que uma demonstração do amor que sentimos por uma pessoa. O pão e o vinho compartilhados na memória de Jesus e com suas palavras eles expressam todo o Evangelho. Portanto, os ritos são essenciais. Mas cada ritual tem uma história e pode ser vivido com rituais simples: uma mensagem, uma carta, um poema, um desenho oferecido por uma criança... tudo isso permite, em qualquer circunstância, viver um relacionamento com o que não é visto, com uma vida mais forte que a morte. Para isso, a Igreja deve desenvolver uma educação e pedagogia dos ritos, a partir da referência aos sete sacramentos. São todos rituais de vida e passagem. Eles precisam de pouco para significar: um pouco de água, um pouco de luz, mãos abertas, um coração sensível, uma palavra de perdão que vem de Deus e que podemos oferecer um ao outro... Há muitas pessoas que aguardam essa pedagogia e essa iniciação aos ritos.
A internet (outrora demonizada por muitos clérigos) está consagrada como um grande meio de humanização e de evangelização?
A internet é um instrumento que pode fazer coisas bonitas ou produzir coisas terríveis. Não é o instrumento que é mau por si mesmo, mas sim seus efeitos de morte (violências ou abusos), que podem machucar crianças ou adultos. De fato, a Internet pode permitir relações e fraternidade e lugar contra a solidão. Pode se tornar um grande meio de humanização e de evangelização, como foram a escritura, a pintura ou o livro no passado. A condição para que seus efeitos sejam positivos é o diálogo e o respeito da liberdade de consciência das pessoas. Um padre propôs na Internet uma leitura dialogada do Evangelho. Foi uma experiência bela e rica. Neste âmbito, necessitamos um projeto claro, com atenção, etapas e referências corretas à tradição bíblica.
Como será a Igreja do pós-coronavírus? Que características terá? Para que linhas de fundo apontará? Afetará as reformas do papa Francisco?
A pandemia deixará muitas coisas na consciência: descobertas, tristezas, experiências pessoais, trabalho real. Não é fácil saber o que nossa memória pessoal e coletiva manterá a partir desse momento que nos faz pensar sobre nossa condição e o significado último de nossa existência. A Igreja terá que ouvir muito cada pessoa e oferecer um espaço e um tempo para falar e orar juntos. Obviamente, as intuições do papa Francisco serão verificadas: somos chamados a viver como uma Igreja pobre com os pobres, porque as consequências econômicas e sociais da pandemia serão muito duras e difíceis. Não podemos nos contentar em pregar sem viver como testemunhas de um Evangelho existencial, que não é teórico ou apenas moral. As reformas do Papa serão cada vez mais úteis e decisivas para a Igreja, porque o espírito dessas reformas pode ser apresentado com esses quatro verbos, que refletem a prioridade da missão: encontrar(-se), acolher(-se), escutar(-se) e oferecer(-se) incentivo e paz. Precisamos da força do Espírito que possa aconselhar a cada um o que ele tem a dizer e viver. Parece que o mais importante é discernir entre o que é vital e o que é superficial ou supérfluo. Por fim, a Igreja viverá, como todo o mundo, um novo começo e uma conversão para o que realmente tem significado e valor: a vida que recebemos e a vida que podemos dar.
A Igreja poderá seguir mantendo sua atual estrutura econômica, territorial e funcional?
Parece evidente que estamos caminhando para uma nova organização e para uma estrutura mais simples, baseada na comunidade, mais próxima das pessoas, seguindo o espírito do que o papa Francisco quer promover: uma Igreja que se concentra novamente em sua missão, ou seja, no “encontro” e no “diálogo” com os mais pobres e com os que cuidam da “Casa Comum”. Teremos em mente as prioridades desta missão, que é anunciar o coração do Evangelho: que cada um é irmão/irmã e sua vida é um tesouro para a comunidade humana. Não teremos os meios do passado, mas compartilharemos o que recebemos. Francisco de Assis, que inspirou a carta encíclica Laudato si', também inspirará uma nova maneira de viver, com atenção a cada um, sem outro poder senão a alegria de compartilhar uma humanidade comum.
Propor e sustentar comunidades mais próximas daqueles que procuram um modo de vida modesto, ecológico e sóbrio. A referência à Eucaristia: pão compartilhado como corpo do Jesus vivo, e ao perdão, como capacidade de lembrar a misericórdia de Deus, serão os desafios de uma nova era, fundada na Palavra, na Promessa e no Perdão. Isso levará tempo para encontrar estruturas econômicas, territoriais e funcionais, mas com a “sinodalidade”, que é a vontade de “caminhar juntos” e que será a inspiração central em todos os níveis da realidade eclesial. Atenção, solidariedade e sinodalidade, para ser sinais de um Cristo que está perto de todos.
A pandemia despertou no laicato a consciência do seu ser “povo sacerdotal” e, portanto, a exigência de assumir ministérios ordenados?
Não sei se a pandemia despertou a consciência dos leigos para serem “pessoas sacerdotais”. Esta tem sido uma evolução fundamental há 50 anos e a contribuição essencial do Concílio Vaticano II – com reflexão sobre a vocação do “Povo de Deus”. Mas podemos afirmar que, atualmente, estamos dando mais um passo na nova definição dos atores da missão na Igreja. É preciso dizer que o cristianismo não é uma religião de sacerdotes, mas uma experiência de irmãos e irmãs, unidos pelo próprio Cristo. No final do evangelho de Mateus, Jesus diz aos seus discípulos: “Estarei convosco até o fim do mundo” (Mt 28). Portanto, estamos em um novo começo da Igreja, que está vivendo uma experiência de paixão e ressurreição, de morte e de vida. Se somos principalmente uma comunidade de irmãos e irmãs, devemos pensar em novas formas de ministério para o serviço, para a presidência da Eucaristia – que funda a própria Igreja – e para a missão de solidariedade com aqueles que não têm nada em nossa sociedade.
“Sacerdotal” significa “o que faz sagrado”. Apenas uma coisa é sagrada: a vida recebida de Deus e a dignidade de cada um. Vivendo a experiência da pandemia, vivemos novas formas – domésticas – de comunidade. Isso pode nos inspirar para o futuro. Precisamos de uma Igreja de comunidades de proximidade e “ministros e ministras servidores” da fraternidade. A ordenação deve ser pensada a partir da experiência da comunidade de pessoas próximas a Jesus, homens e mulheres, e das primeiras comunidades, que eram sinais concretos do Evangelho e que o papa Francisco deseja atualizar: encontrar, escutar, compartilhar e construir “uma casa comum”, para que cada um tenha “um teto, uma terra, um trabalho”.
A práxis sacramental terá que ser revisada, especialmente da eucaristia e da penitência?
Não há necessidade de revisar. Devemos viver e atualizar o significado da Eucaristia e do perdão. Esses dois sacramentos – isto é, “sinais para a vida” – temos que vivê-los concretamente: temos que aprender a viver a comunhão – pão e vinho compartilhados – e perdão – uma palavra de amor mais forte que as nossas violências... Essa é a conversão para a qual somos chamados.
Cada novo começo na história da Igreja foi feito com uma nova descoberta do Evangelho, do perdão e da Eucaristia, porque são os três fundamentos da comunidade de amor, com Cristo. Depois vem a organização, mas a primeira conversão é necessária, como aconteceu na tarde de Páscoa, quando Jesus visitou seus amigos.
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“Vamos viver um tempo novo de espiritualidade, porque não se pode viver ou sobreviver unicamente para consumir”, afirma o monsenhor Bruno-Marie Duffé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU