30 Abril 2020
Agricultura e pecuária pressionam a Amazônia há décadas e são fruto do modelo adotado pelo regime militar para “desenvolver” a região, que já perdeu área de floresta equivalente a mais de duas Alemanhas.
A reportagem é de Clarissa Neher, publicada por Deutsche Welle, 28-04-2020.
A Floresta Amazônica passou por diversas tentativas de colonização ao longo da história do Brasil, mas foi durante o regime militar que o “desenvolvimento” da Amazônia se tornou uma prioridade para o governo, sob o lema “integrar para não entregar”. A ocupação do bioma impulsionou o avanço de fronteiras agrícolas por regiões antigamente cobertas por florestas.
Até a década de 1970, apenas uma área pouco maior do que a de Portugal, que tem cerca de 92 mil quilômetros quadrados, havia sido desmatada na região. Com o discurso de expandir e modernizar, o regime militar impulsionou obras de infraestrutura que se tornaram responsáveis pela devastação do bioma. A construção de estradas na floresta abriu caminho tanto para o chamado progresso como para o desmatamento, que, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em 2018 já atingia uma área superior a duas Alemanhas: 783 mil quilômetros quadrados na Amazônia Legal.
Cinco décadas depois, Sorriso, no Mato Grosso, se tornou a capital da soja e do agronegócio, e o pasto passou a ser a cobertura que ocupa 80% da área desmatada desde então.
A expansão agropecuária na região ocorreu como um efeito dominó, diz o geógrafo Hervé Théry, da Universidade de São Paulo (USP). O modelo mais comum começa com a abertura da floresta por madeireiros, que levam árvores de maior valor econômico. Em seguida, chegam os pecuaristas e pequenos agricultores.
“Os dois grupos são culpados pelo desmatamento, porém, os grandes têm muito mais meios e fazem mais estragos. Os pequenos se instalam para produzir alimentos para a família e para vender. Depois de um tempo, a fertilidade da terra diminui e eles precisam ir para outro lugar. Geralmente, colocam capim e vendem para os pecuaristas”, explica Théry.
Gráficos comparam cobertura florestal na Amazônia entre 1985 e 2017. (Fonte: Map Biomas Alerta/Landsat)
Os últimos a chegar neste modelo são os sojicultores, que compram áreas desmatadas utilizadas anteriormente para a criação de gado. Ao longo dos anos, as fronteiras deste ciclo são pressionadas cada vez mais para o norte.
Um dos primeiros atores neste processo de expansão sobre a floresta, a pecuária está presente na Amazônia desde o século 17, quando foi introduzida por ordens religiosas. Apesar de ter uma presença histórica no bioma, de acordo com a geógrafa Susanna Hecht, do Instituto Superior de Estudos Internacionais e de Desenvolvimento, em Genebra, na Suíça, a pecuária inicialmente era voltada para fornecer alimento e, apenas após golpe militar de 1964, passou a ser utilizada para a ocupação de terras.
Em suas políticas de desenvolvimento da Amazônia, o regime militar ofereceu uma série de incentivos legais e fiscais para a expansão da atividade econômica no bioma. Grandes empresas também foram beneficiadas. Um exemplo emblemático foi a fazenda-modelo da montadora alemã Volkswagen no sul do Pará, denunciada na imprensa internacional pelo desmatamento causado na região no final da década de 1970.
Devido à necessidade de pouca mão de obra, à facilidade de implementação e a uma logística mais simples para seu escoamento, a pecuária se tornou a atividade ideal na política de integração do regime militar, explica Hecht. “Historicamente, a pecuária assumiu um papel importante de incorporação de terra, tomando terras públicas e as transformando em propriedades privadas, além de ser um mecanismo de especulação de terra”, pontua.
Anos depois, chegou a vez da soja entrar na Amazônia. Isso só foi possível graças ao avanço de pesquisas agronômicas no desenvolvimento de sementes e técnicas que possibilitaram o cultivo do grão em regiões tropicais. A expansão da commodity começou no sul do país e seguiu avançando para o norte, entrando primeiro no Cerrado e, posteriormente, no bioma amazônico.
“A demanda contínua na década de 1990 e início dos anos 2000 criou uma dinâmica de desmatamento em que a soja substituiu os pastos existentes, estimulando novos desmatamentos para a criação de gado na Amazônia”, afirma a cientista política Regine Schönenberg, do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlim.
Além do aumento da demanda mundial pelo grão, melhorias na rede de infraestrutura e, principalmente na BR-163, conhecida como rodovia da soja, que liga o Mato Grosso a Santarém, no Pará, impulsionaram a expansão da atividade na região.
Por serem os últimos a chegar neste ciclo, os produtores de soja argumentam que não contribuem para o desmatamento. Na opinião do geógrafo Antonio Ioris, da Universidade de Cardiff, essa retórica é uma falácia devido à sinergia entre os setores.
“Em termos retóricos, pega bem para o setor de grãos dizer que não desmata. Nessa lógica, eles tentam se eximir de responsabilidades. Mas, ainda que muitas vezes não seja o sojicultor que desmata a floresta, o pecuarista desmata sabendo que a terra vai ganhar valor e que poderá vendê-la para o sojicultor”, explica Ioris.
Nesse ciclo, pesquisadores destacam um dos principais fatores que contribuem para continuidade deste processo: a grilagem e posterior legalização destas terras. “Pode demorar um pouco mais ou um pouco menos, mas no final das contas essa terra acaba sendo regularizada, e quem está lá ou seus familiares passam a ser os proprietários”, afirma a geógrafa Neli Aparecida de Mello-Théry, da USP.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O papel de gado e soja no ciclo de desmatamento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU